terça-feira, 7 de junho de 2011

Fecha a última fábrica de máquina de escrever mecânica do mundo

Revista Piauí, Ed. 57



Fim de linha

Fecha a última fábrica de máquina de escrever mecânica do mundo

Por Dorrit Harazim

Jawaharlal Nehru, imortalizado pelo seu povo como Pandit, “professor”, foi o primeiro governante da Índia depois da traumática ruptura com o Império Britânico, em 1947. Para Nehru, que dirigiu o país até morrer, em 1964, a inauguração da primeira fábrica de máquinas de escrever representou a arrancada da jovem nação rumo à industrialização, ao futuro.
Naqueles longínquos anos 50, o polo industrial da Godrej & Boyce Manufacturing Company, erguido na cidade de Mumbai, veio se juntar a colossos ocidentais do ramo, como a Remington, a Hammond, a Underwood, a Adler-Royal, a alemã Olympia e a italiana Olivetti.
A fábrica indiana produzia 50 mil máquinas ao ano e abastecia Indonésia, Filipinas, Sri Lanka, Angola, Moçambique e Marrocos, países ávidos por teclados não europeus. Prático, eficiente e de fácil manejo, o invento conseguiu sobreviver até o mês passado, driblando as versões elétricas e sobrevivendo aos computadores de mesa, aos laptops e, mais recentemente, aos IPads.
É compreensível que seu último bastião tenha sido a Índia, país de industrialização desigual e capenga. Embora integrando o time das nações ditas emergentes, agrupadas na sigla Bric (Brasil, Rússia, Índia, China e que agora incluiu a África do Sul), e invejada pelas suas taxas de crescimento efervescentes, a Índia ainda tem perto de 400 milhões de pessoas sem acesso a energia regular e confiável. Daí que boa parte dos cartórios, repartições públicas e delegacias do país continuasse, até há pouco, a trabalhar na pré-história tecnológica.
No mês passado, com o anúncio do fechamento da última fábrica mundial de máquinas de escrever manuais, voltou-se a celebrar a arrancada da Índia rumo ao futuro.
A unidade instalada em Shirwal já havia sido desativada dois anos antes e transmutada em fábrica de geladeiras. Com o fechamento da unidade de Mumbai, colecionadores luditas agora se estapeiam para conseguir comprar as 200 últimas unidades do inventário.
A invenção da máquina de escrever costuma ser atribuída ao inglês Henry Mills, em 1713. Era destinada a cegos, chegou a ser patenteada, teve o aval da rainha Ana Stuart, mas jamais saiu do papel. A partir daí, a intermediação da mecânica no milenar ofício de escrever empunhando pincéis, penas, tintas, lápis, carvão e tantos outros artefatos manuais foi dando saltos. Houve uma primeira versão com teclado de autoria do italiano Pellegrino Turri, várias versões que só comportavam caracteres maiúsculos, modelos que lembravam máquinas de costura (com pedal e gabinete), pianolas ou construções de metal de formas desvairadas.
Houve até mesmo o audacioso projeto de um brasileiro, Francisco João de Azevedo, da Paraíba do Norte (atual João Pessoa), cujo protótipo foi apresentado na Exposição Industrial e Agrícola de Pernambuco, de 1861. A invenção lhe teria sido surrupiada pelo tipógrafo americano Christopher Latham Sholes. Embora jamais tenha sido patenteado, e nunca chegou a ser fabricado, o invento do professor de matemática brasileiro permanece no panteão nacional da máquina de escrever mecânica.
O fato é que Sholes aperfeiçoou a engenhoca de forma a que as hastes com os caracteres não se embaralhassem umas às outras. E solucionou a necessidade de haver letras minúsculas e maiúsculas. Ele acabou vendendo a patente à fábrica de armamentos Remington, à época ociosa devido ao fim da Guerra Civil Americana (1861–65).
As Remington, por seu lado, passaram a ser fabricadas em série, seu preço caiu e se espalharam pelo mundo letrado. Desde que Mark Twain estreou como o primeiro escritor a batucar seus textos em quatro fileiras de teclas, a literatura adotou o invento como companheiro inseparável.
O ruído da alavanca sendo acionada com urgência, do caractere tocando obedientemente na fita, do carro se movendo da esquerda para a direita, das teclas pressionadas ora com hesitação, ora com majestosa certeza – tudo, numa máquina de escrever mecânica, fazia barulho, mas nada era estridente. O som servia de companhia ao usuário.
“Até hoje sinto prazer em usar uma máquina de escrever manual para determinadas ocasiões”, conta o americano Richard Polt, professor de filosofia em Cincinnati e um dos mais renomados colecionadores do mundo. “Frequentemente, desligo o computador para escrever o primeiro esboço de algum trabalho mais sério numa máquina mecânica. É a maneira mais garantida de não cair na tentação de abrir meus e-mails ou ficar me distraindo com outras coisas na internet. O bom das máquinas antigas é que você só pode fazer uma única coisa com elas: escrever.”
Polt edita a ETCetera, publicação para aficionados, e mantém um site na internet –The Classic Typewriter Page – que abriga material de consolo para quem sofre de abstinência de conquistas passadas. “Máquinas de escrever manuais são para os ousados, os audaciosos, os que arriscam. Os perfeccionistas, em suma. Por quê? Uma vez que uma tecla é acionada, não há mais volta. Se você errar, só lhe restará recolher-se à sua vergonha e tentar camuflar o erro”, escreveu um frequentador assíduo.
Rino Breebaart, outro escriba das antigas, apontou para a banalidade de um texto digitalizado no computador: “O sentido de esforço na criação e na produção se perde – na versão final você simplesmente homogeneíza e limpa tudo, apagando qualquer marca de hesitação, dúvida ou embate físico.”
No Brasil, o paulistano Fernando Costa estoca uma coleção de quase 100 máquinas antigas, adquiridas ao longo de duas décadas de garimpo. Nas estantes de seu apartamento, que mantém aberto à visitação pública, convivem belíssimas Hammond modelo 1 com uma Sholes & Glidden da qual muito se orgulha. O exemplar mais antigo de seu tesouro data de aproximadamente 1870.
No presente, a carreira das sucessoras do original mecânico – as máquinas elétricas – é bem menos cintilante. Contatado para explicar por que desmente que o fechamento da Godrej & Boyce significa o fim de uma era, o americano Edward Michael, gerente de vendas da fábrica Swintec, de Nova Jersey, esclarece: o que acabou foram apenas os dinossauros mecânicos. Mas as linhas de montagem de máquinas de escrever elétricas e eletrônicas continuam a pleno vapor. “Para atender a demanda, temos fornecedores na China, Japão e Indonésia, entre outros”, disse o executivo da Swintec.
Sua principal clientela é cativa. Literalmente: vive atrás das grades. Os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo: 2,3 milhões de detentos. Ou seja, 745 para cada grupo de 100 mil habitantes. Proibidos de usar computador, ou mesmo máquinas de escrever eletrônicas com mais de 7 quilobytes de memória, como em Nova York, ou 64 quilobytes, no estado de Washington, a população carcerária americana é garantia de longa vida para uma indústria tão confinada quanto os seus usuários.

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