Carioca obcecado
Carlos Lessa: 'A única saída é seguir sonhando'
Arnaldo Bloch (arnaldo@oglobo.com.br)
RIO - Apenas uma murada divide a casa de Carlos Lessa - um dos economistas mais respeitados do Brasil - dos limites do Cerro Corá, morro no Cosme Velho que ainda não tem UPP. Quando comprou o terreno de dimensões modestas (para o estereótipo que se faz de um homem que já ocupou cargos como a presidência do BNDES), o preço estava lá embaixo. Imediatamente, assumiu a associação de moradores do bairro e pôs em cargos-chave habitantes da favela, onde o chamam de professor - única atividade, entre dezenas, que exerceu sem cessar desde os seus vinte anos e ainda exerce, por teimosia. Chegou a reitor da UFRJ. Entre seus ex-alunos: José Serra e Dilma Roussef.
No solo do jardim oblíquo da casa, Lessa plantou mudas de espécies variadas e aleatórias, cujo florescer se estende encosta acima, dando ao conjunto um ar de Burle-Marx.
- Paisagismo é cascata. Fui eu que fiz sem ajuda profissional. É só plantar um pouco de cada. Nasce fácil e fica bonito e harmonioso - despista o homem que estuda tudo que o interessa, da fórmula matemática da curvatura que define uma concha à descoberta de que a embalagem do leite em caixa custa mais que o próprio líquido - o que o levou a defender a volta do leite barriga-mole, em saco.
- Os Klabins vieram me pedir encarecidamente que parasse com aquela história, se não, iam à falência! - recorda-se, com um riso moleque tão estrepitoso quanto afável.
O joelho é estourado, informa, mas não o suficiente para recusar-se a subir alguns degraus da escadinha ornada, próxima a uns brotos de pau-brasil, e posar para as fotos. Impede, contudo, de subir o morro vizinho, como fazia, ou caminhar por comunidades que apadrinhou, longe, longe, como em Santa Cruz.
- O povo gostava porque eu ia de terno. Sentiam-se prestigiados por me vestir bem para estar com eles. Os garotos de esquerda iam esfarrapados. Era falso, pura fantasia. Eles não eram aquilo.
Sentado sobre os degraus, Lessa junta as mãos e relaxa os olhos. Parece um buda num jardim oriental. Contempla o passado. Final dos anos 50. O jovem professor lotado no Conselho Nacional de Economia, mais fiel aos livros que à realidade, é convidado pelo prefeito de Recife, Miguel Arraes, para fazer um diagnóstico das comunidades pobres da cidade. Até então, tinha a noção de que, no Brasil, as coisas funcionavam bem.
- Meu pai era um médico culto e severo que estudava História e tinha uma biblioteca fabulosa. Só de ler as lombadas, pois não podia tocar nos volumes, já me eduquei e adquiri amor pelo Brasil. Minha mãe se dava com pessoas de cor e recebia gente sem recursos para almoçar em casa. Essa naturalidade fez com que eu tomasse a exceção por regra e distorceu minha visão do que era nossa sociedade.
Nas favelas do Recife, a pedido de Arraes, ele viu as pessoas vivendo em palafitas sobre manguezais em condições indescritíveis. Foi o grande choque. Uma sociedade que deixa existir algo assim - pensou - tem um erro fundamental. A novela era de que todos se davam bem, na cadência do futebol e das escolas de samba. De repente não era nada disso: a realidade era aquela: as palafitas, os alagados de Salvador, a Maré. Em suma, o país era assim.
Plataforma em defesa da jaca
Curiosamente, tal percepção não derivou para a militância de esquerda. Impactado pelos relatos de Arthur Koestler sobre os expurgos stalinistas, já se convencera de que a ditadura do proletariado jamais se conciliaria com seu espírito democrático.
- Além disso, o pessoal da esquerda me vinha com essa ideia do povo como protagonista da História. Como é que esse sujeito que mal come vai ser protagonista? As esquerdas não sabiam o que era o Brasil, enquanto as elites fechavam os olhos. Convenci-me, e penso assim até hoje, que uma sociedade que deixa uma parcela enorme da sua gente nessas condições e lava as mãos, tem uma elite de má, de péssima qualidade.
Com a palavra: Carlos Lessa fala de Lula, Dilma, Serra, FH e outros assuntos
Mas como dissociar os termos elite/povão do uso e abuso retórico que deles se fez nos últimos anos?
- Não me interessa. Acho nossa elite ruim, perversa, e nossa contra-elite incapaz de forjar um futuro. Já nosso povo é fascinante. Um povo que, sem qualquer consciência proletária, faz, desde a escravidão, da sobrevivência um exercício de improviso. Que na beira de estrada usa mecânica medieval para forjar peças fora de linha. É um povo que merece ser sujeito de sua própria história. Por isso sou neonacionalista: creio numa contribuição original do Brasil para o futuro da civilização humana.
Por onde passou, Lessa bateu-se. No exílio voluntário no Chile após o golpe, funcionário das Nações Unidas, insurgiu-se contra o pensamento dos demógrafos, acusando-os de exterminadores do futuro. Calado à força, deu aulas em casa por insistência de alunos entusiasmados. De volta, virou a UFF de cabeça para baixo e demitiu-se para evitar que baixasse polícia. Lá adiante, no PMDB, liderou passeatas. No Finsocial (indicado por Ulysses) lutou por projetos fora de pauta e testou eletrificação simplificada e saneamento condominial (alô, favelas...). Nos anos Lula, viveu uma queda-de-braço com Palocci e Meirelles na presidência do BNDES e foi demitido.
Mesmo fora do âmbito público, briga por causas aparentemente macarrônicas, mas que sempre resvalam na essência. Nem que seja a essência de uma jaca. Foi numa feira dessa de livros, convidado para debater qual era a fruta carioca por excelência.
- Cheguei atrasado e um sujeito estava defendendo a maçã. Um maluco. Eu então pedi a palavra e disse que era a jaca. Por quê? "Porque é redonda, é grande, tem odores". Obtive uma aclamação geral. Mas não consegui ganhar a disputa, porque o movimento ambientalista está matando as jaqueiras. É uma espécie não nativa. Eles retiram a casca pra ela morrer na Floresta da Tijuca. É dessas besteiras que um certo ambientalismo produz. A jaca está há 300 anos na Mata Atlântica. O coco é do pacífico. Banana é da África.
Descobriu que sua água estava sendo oficialmente roubada pela municipalidade numa casinha que tem em São Pedro da Aldeia e, enrolado pelos guichês, incapaz de marcar uma perícia, furou um poço e virou herói.
- Espalhei que ia ser prefeito, os jornais publicaram, mas era só provocação.
Quando faz pausa em seus estudos ou embates para almoçar ou jantar, converte a energia de suas angústias numa pulsão lúdica voltada para a mesa que divide com sua mulher, Marta, com quem tem três filhos, e a cozinheira Ereis, que conheceu num curso de culinária. Comer mesmo, come pouco e devagar: um câncer reduziu-lhe a capacidade de engolir, sendo que lições antigas de sua mãe ("não desperdiçar") levam-no a ir até o final, fazendo da refeição um longo exercício em que convivem a fruição do sabor e o sacrifício do dever. Mas não se furta a preparar, ele mesmo, o salmão marinado da entrada.
- É muito simples. Se você quiser, dou a receita.
A "receita simples" envolve endro, semente de aroeira, cascarilha de laranja e várias lavagens e imersões que consomem dois dias para fazer e pelo menos dez minutos para explicar. Depois relata o dia em que, após uma chuva, aconteceu de haver uma revoada de içás (um tipo de formiga bojuda) no jardim.
- Catei umas quarenta e fritei direitinho. Bunda de formiga voadora é uma delícia. Os japoneses caipiras em São Paulo gostam muito. Parece um torresminho sofisticado. O que não admito é chuchu. Se fosse um ditador, mandaria a Embrapa fulminar com pragas todas as plantações. Mas não tenho vocação autoritária.
O caleidoscópio de Lessa parece assumir configurações infinitas. No bojo de um projeto de revitalização do Centro, foi comprando o casario da Rua do Rosário (inclusive uma cabeça de porco que fora bordel no entre-guerras) e verteu o logradouro em point carioca, sem um tostão em troca.
- Tive muita sorte na vida. Tenho uma aposentadoria das Nações Unidas e recebi pequenas heranças. Não enriqueci, não virei consultor de empresas privadas, como o Palocci gosta de dizer que é o padrão. Mas soube gerir meu dinheiro, nunca caí em conversa de bancário. Não tive tanto sucesso em relação aos meus sonhos. Mas sempre me mantive como no mito de Sísifo: a única saída é seguir sonhando.
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