JusBrasil, 07/04/2015
A Caixa de Pandora da maioridade penal foi aberta: viva o delírio de abutres, homens de lata, idiotas e hipócritas!
Por Salah Khaled Jr
Meus piores temores se concretizaram. O impensável aconteceu. A Caixa de Pandora foi aberta. A “Comissão de Constituição e Justiça” – que claramente não entende nada de Constituição e muito menos de justiça – abriu as comportas para que o maior retrocesso político-criminal das últimas décadas fosse contemplado como possibilidade concreta. É triste, mas não é surpreendente. Os abutres sentem cheiro de sangue. Sabem que uma população adestrada após décadas de exposição continuada à criminologia midiática anseia por esse tipo de medida. Em outras palavras, há muito a ganhar. É tempo de construir capital político. Trata-se de uma oportunidade que não pode ser perdida, ainda mais em tempos de perda credibilidade não só dos políticos em geral, mas da própria ideia de representatividade.
Só tem um pequeno detalhe. Não que eu seja um intérprete privilegiado, mas penso que é um dado que merece alguma consideração: Constituição não é carniça e direito fundamental não é cadáver apodrecendo no deserto, prestes a ser devorado pelos abutres de plantão. Isso parece tão óbvio que nem precisaria ser dito. E como é rigorosamente óbvio, exigível e necessário, parece também evidente que todos os juristas – que de algum modo suponho eu devem fidelidade ao Direito – deveriam estar engajados na luta contra a catástrofe que se insinua sobre a juventude vulnerável brasileira. Devemos cerrar fileiras. Apontar as baterias antiaéreas e derrubar os abutres dos céus. Que o Direito seja a nossa munição contra eles e contra a fúria impulsionada pelos empreendedores morais.
Quisera eu fosse tão simples assim. Fiz o que pude quando escrevi o “Manifesto contra a redução da maioridade penal”. Treze mil compartilhamentos demonstram que a maioria de nós está com a cabeça – e o coração – no lugar certo. Mas infelizmente, não são poucos os juristas que orgulhosamente se dedicam ao avanço da barbárie.
“As cláusulas pétreas devem ser interpretadas de forma restritiva“.
“Não vejo óbice para que a maioridade penal seja reduzida, já que com isso o direito não é eliminado, apenas restringido“.
“O Direito deve acompanhar a sociedade. O jovem de hoje não é mais o mesmo da década de 40“.
A capacidade que o pensamento jurídico conservador demonstra para dissimular a barbárie como técnica nunca deixa de me espantar. Fico impressionado quando constato que juristas dos mais diversos matizes ideológicos reproduzem velhos lugares comuns do pensamento bem comportado para justificar o injustificável. Não sei como suportam a própria pequenez e mesquinharia. Louvam como se sagrado fosse o poder punitivo que deveriam conter por exigência da democracia. São homens de lata. Desprovidos de coração, esses juristas sem alma não cansam de mostrar o quanto são insensíveis ao sofrimento alheio. Compactuam com abutres. Se deitam com o que de pior temos em nossa classe política. Comemoram o poder punitivo juntamente com oportunistas e achacadores e dormem tranquilos, apesar de terem plena consciência do mal que fazem.
Mas não é deles que parte esse frenesi punitivista, embora eles vergonhosamente se dediquem a sua legitimação, conferindo-lhe roupagem jurídica. Se a questão alcançou uma dimensão tão grande é porque boa parte da população efetivamente dá credito a ela. Deposita sua esperança de dias mais seguros e tranquilos no potencial mágico da pena para promover o bem.
O Brasil não é mais um país de técnicos de futebol. Virou um país de penalistas e especialistas em segurança pública. Qualquer um discursa no bar com a autoridade de quem dedicou a vida inteira ao tema. Os idiotas desfilam pelas ruas como se fossem detentores de um Nobel. Discursam sobre os mais variados assuntos e ostentam a sua sabedoria de botequim como se fosse a mais pura expressão da verdade sobre os rumos adequados da política criminal nacional.
Já que virou um legítimo vale tudo, espero que procurem o borracheiro da esquina caso sejam diagnosticados com câncer. Ou melhor ainda: que façam o tratamento com aspirina. Com certeza pessoas que dominam tantos aspectos de assuntos complexos não esmorecerão diante de situações como essas. Continuarão a utilizar tão vastos conhecimentos em benefício de si próprios.
A vida seria engraçada se não fosse trágica. Talvez você ache pesado que eu diga que os pseudo-penalistas devem procurar o borracheiro caso venham a ter câncer. E que devem se tratar com aspirina. Gozado que nenhum desses “especialistas em segurança pública” acha “pesado” enjaular adolescentes por furto de boné nos calabouços medievais que são as nossas prisões. No do outro jamais arde, não é mesmo? Se tivessem uma fração dessa sensibilidade tão aguda para com os outros, talvez não saíssem por aí defendendo o avanço da barbárie. Não é por acaso que muitos exploram o mercado em permanente expansão que é a “arte de escrever para idiotas” ( http://emporio-do-direito. jusbrasil.com.br/noticias/ 178922716/a-arte-de-escrever- para-idiotas ).
Mas ainda há um último tipo que eu gostaria de referir. Afinal, somos um país cristão. Tem um pessoal simpático que está inclusive propondo uma PEC para dizer que todo poder emana de Deus e não do povo, não é mesmo?
Faz sentido que um cristão seja sedento de sangue? Não sei em que Deus você acredita, mas se de fato Ele existe, acho pouco provável que aprovaria a exposição da juventude vulnerável ao suplício que é o nosso aparato penitenciário. A dinâmica massacradora é ancestral, como disse Zaffaroni. São um bando de hipócritas. Comportam-se como a multidão que pediu sangue a Pilatos. Cristo disse “perdoai-os Senhor, eles não sabem o que fazem”.
Para Zaffaroni, o tumulto era a criminologia midiática da época, exercendo pressão sobre Pilatos, como é exercida a pressão midiática sobre os políticos contemporâneos. Ele aponta que não era preciso que Jesus tivesse onisciência para saber que seria traído, considerando-se o enorme poder da criminologia midiática e sua capacidade para difundir o medo. Movidos pelo medo, tomamos decisões apressadas, descuidadas e, em última análise, potencialmente catastróficas para quem se encontra em situação de vulnerabilidade, taxado de (e tratado como) inimigo. Trata-se de um mecanismo ancestral de produção de massacres através da instalação satisfatória do pânico moral e da produção de um medo irracional, que rotineiramente fabrica bodes expiatórios: eles, os inimigos que se deve enjaular ou, melhor ainda, exterminar. A criminologia midiática instala um mundo paranoide. Sua capacidade para etiquetar alguém como bode expiatório é tão grande que pôde amedrontar Pedro até o limite de negar Cristo.
Que Deus tenha piedade de nós. E desprezo por quem justifica essa barbárie.
Não compactue com abutres. Veja como o seu deputado se posiciona. Não seja um homem de lata: faça o que é direito e lute pelo Direito. Não se comporte como um idiota. Procure ao menos se informar. A redução da maioridade penal não resiste a qualquer debate minimamente sério. A internet está repleta de textos que liquidam com os argumentos grosseiros de quem considera a medida aceitável. Se você é cristão, seja um cristão coerente. Não veicule o ódio pela nossa juventude vulnerável.
Eu fui professor de ensino médio durante oito anos. Dei aula de história, sociologia e filosofia e tive o privilégio de conviver com mais adolescentes do que a maioria dos adultos jamais terá. Gosto de pensar que essa convivência me tornou um homem muito melhor do que eu era. Aposte em nossa juventude. Dê uma chance a ela. Nós temos que ampliar os mecanismos de proteção e não restringir os já existentes.
E se em último caso – mas em último caso mesmo – você for um verme que considera que direitos humanos são apenas para humanos direitos, ao menos reflita diante de um dado inegável: a reincidência de quem experimenta o aparato penitenciário é de 70% enquanto no sistema socioeducativo é de menos de 20%. Não é de modo algum o melhor caminho para a sua segurança e a segurança da sua família.
Pense nisso.
DIGA NÃO! NÃO PASSARÃO!
Salah Hassan Khaled Junior é doutor e mestre em Ciências Criminais, mestre em História e especialista em História do Brasil. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande, professor permanente do PPG em Direito e Justiça Social.
Manifesto contra a redução da maioridade penal
Por Salah Hassan Khaled Junior
Existem ocasiões em que as palavras não bastam. Muito foi dito sobre a insuficiência do discurso para representar o Holocausto. Como traduzir o horror em palavras? Como corresponder ao cataclisma narrativamente, quando sempre restará algo para além das forças do que pode ser dito em uma folha de papel ou de qualquer outra forma?
Adorno chegou a dizer que escrever um poema após Auschwitz seria um ato bárbaro: a arte não poderia mais pretender ser inocentemente alegre. Toda poesia escrita após o Holocausto deve carregar o peso de um luto. O extermínio massivo e industrial do outro fez com que a relação entre linguagem e experiência fosse transformada. O mundo teria que ser repensado à luz da catástrofe que o desfigurou para sempre. “Nunca mais” é uma expressão que não deve ser interpretada de forma leviana. Não devemos dar outra chance para que a “banalidade do mal” (Hannah Arendt) possa prosperar de forma irrestrita e catastrófica, o que certamente pode ocorrer novamente caso encontre espaço institucional para isso.
Mas o que resta ao intelectual quando pressente uma catástrofe que sinistramente se avizinha? Ele deve gritar com todas as forças – soar o alarme de incêndio (Löwy) –, dar vazão a sua angústia e esperar – quem sabe até mesmo rezar – para que ela ressoe em corações sensíveis como o seu. Não foram poucos os que gritaram no passado e não obtiveram a atenção que mereciam, apesar da gravidade das circunstâncias. Walter Benjamin foi um dos espíritos mais sensíveis de seu tempo. Percebeu o potencial para a destruição que carregavam as ilusões modernas do progresso como poucos que o precederam. As Teses Sobre o Conceito de História (1940) demonstram claramente a lucidez que tanto lhe provocava aflição: a instalação do processo de genocídio industrial dos inimigos eleitos pelo Nacional-Socialismo Alemão já estava em curso. Benjamin não viveu para ter ciência da catástrofe que havia intuído: acabou se suicidando enquanto fugia dos nazistas.
Tenho certeza de que alguns irão considerar exagerado começar um texto intitulado “Manifesto contra a redução da maioridade penal” referindo o Holocausto. Quem sabe serei mal interpretado e alguma mente pequena pensará que eu me equiparo a Benjamin, o que certamente não é o caso. Não somente por eu ser um intelectual de brilho infinitamente menor, mas porque não é necessária uma mente excepcional como a de Benjamin para compreender o que está em jogo com a malfadada PEC 171/1993. Todas as peças do quebra-cabeça estão dispostas. Basta não fechar os olhos deliberadamente e estar disposto a enxergar. A comparação é pertinente, sim. Quem pensa que não desconhece – ou pior ainda desdenha – a violência genética da qual nosso país está impregnado. Vivemos nosso próprio Holocausto, ainda que ele tenha se perpetuado por séculos a fio e não tenha assumido feição industrial como na Alemanha. Quem não percebe isso provavelmente é adepto de uma visão romântica e idealizada da história do próprio país em que vive. Justamente a visão que critiquei em Ordem e Progresso: a invenção do Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia (Lumen Juris, 2014).
Fomos inventados para o ódio e extermínio do outro em nome do ganho financeiro. O Brasil não foi “descoberto” ou mesmo “achado”: é uma atribuição externa de sentido dada pelos colonizadores europeus. Embora pudessem atribuir a si mesmos propósitos nobres – como a cristianização – os portugueses logo desenvolveram uma relação de espoliação com seus domínios. Não trouxeram a civilização para os trópicos: reinventaram a escravidão como forma de viabilizar um gigantesco projeto de sangramento de gente e violação da terra. Massacraram uma cultura inteira e desencadearam um processo genocida gigantesco: estima-se que a atual população indígena brasileira representa menos do que 10% da original. Não contentes com isso, importaram outra população e a gastaram na produção do que jamais poderia consumir, como se combustível fosse (Darcy Ribeiro). Fizeram desses corpos o elemento central de uma feitoria ultramarina articulada em torno de um comércio triangular que visava a máxima extração de riquezas de uma terra violentada sem quaisquer pudores.
1822 não modificou esse cenário. Quando começamos a escrever a nossa própria história – na metade do século XIX – dissemos que os negros e os índios nos diferenciavam dos portugueses, mas que ambos estavam fadados ao desaparecimento. O brasileiro seria um novo sujeito, uma versão aperfeiçoada dos portugueses, que integraria a “raça cor de cobre e etiópica”. Os “diferentes” seriam absorvidos pela “maioria branca”, o que não deixa de ser irônico para uma população tão miscigenada. Não contentes com essa enojante esperança de assimilação, abrimos nossas portas para a imigração massiva de europeus, acreditando que isso contribuiria de forma decisiva para o anseio de “branqueamento da raça”.
De fato, abolimos a escravidão. Mas a abolição foi tão criminosa quanto a própria escravidão e colocou os antigos escravos e seus descendentes em uma situação de inferioridade social e desvantagem competitiva que de algum modo se perpetua até hoje, por mais que alguns ainda subscrevam ao perverso ideal de “democracia racial”. Devastamos matas enormes e morros gigantescos e continuamos a nos ufanar da superioridade do Brasil em inúmeros quesitos. Saímos pelas ruas afora protestando com indumentária verde amarela, quando tão poucos parecem saber que as cores remetem ao verde e amarelo da bandeira imperial, enquanto o ideal republicano do positivismo consolidado na bandeira republicana – Ordem e Progresso – é típico de uma visão verticalizada de mundo, na qual o povo obedece e segue as elites.
Nosso sistema penal continuamente louva o trágico passado colonial: os negros permanecem sendo alvo privilegiado da seletividade inerente ao processo de criminalização secundária. Não porque cometam mais crimes, ou porque os negros sejam propensos ao cometimento deles. Não se trata de causa da criminalidade, mas de causa de criminalização: ser negro e pobre faz com que a pessoa se conforme ao imaginário repleto de estereótipos da criminalidade, que reflete as velhas imagens lombrosianas, adaptadas ao nosso contexto tropical. Não que o sistema penal persiga somente negros pobres. Como se sabe, ele persegue fundamentalmente os praticantes das chamadas obras toscas da criminalidade (Zaffaroni), ou seja, pessoas que não dispõem dos meios necessários para a prática de crimes sofisticados, como os que eu e você cometemos. Todos somos criminosos, como qualquer estudante de Criminologia sabe. Mas o braço forte da Lei alcança apenas alguns, apesar de termos criado um catálogo tão extenso de mandamentos e proibições penais que ninguém – absolutamente ninguém – ficaria do lado de fora se fosse integralmente cumprido. Descolado do mundo do texto para a realidade, o programa igualitário demonstra seu apetite e predileção por certas pessoas: facilmente se transforma em máquina predatória de pessoas em situação de risco, fazendo da abstração legal uma distante memória.
Por outro lado, nosso sistema penitenciário é absolutamente ilegal em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Não há um único apenado em todo país que cumpra a pena legalmente prevista. Nossos presídios são máquinas de trituração da vida humana, que impõem um sofrimento que não encontra qualquer amparo na Lei de Execução Penal, quem dirá na Constituição Federal. Qualquer nível de dor acima do imposto pela legislação é ilegal. Isso não parece óbvio? No entanto, convivemos com a realidade de violação de direitos humanos que rotineiramente ocorre nessas instituições. Naturalizamos as ruínas que fazem parte dessa paisagem diária e fazemos de conta que o problema não é nosso: direitos humanos para humanos direitos, dirão alguns. Aceitamos que um poder estritamente executivo – sem qualquer limitação jurídica – seja exercido de forma completamente arbitrária sobre pessoas que não perdem a condição de humanas somente porque lá estão recolhidas e segregadas.
O aparato penitenciário é território inóspito, não colonizado pelo Direito. Submete os que lá estão a um processo de profunda degradação, ainda que algumas almas dedicadas à reprodução ideológica do sistema penal sustentem que a função da pena consiste na ressocialização. Não é por acaso que em outra oportunidade denominei de holocausto nosso de cada dia a realidade operativa da pena privativa de liberdade brasileira. Muitos se iludem pensando que presídios estão repletos de assassinos e estupradores, quando a realidade é muito diferente. Basta olhar as estatísticas, publicamente disponíveis.
Para além de qualquer discussão no âmbito normativo é preciso que se tenha ciência de que é para lá que estaremos enviando nossos adolescentes, na vã esperança de que isso possa contribuir para combater a escalada da violência e nos dar mais segurança. A redução da maioridade penal não é apenas para homicídios: é sistêmica, ou seja, atingiria a totalidade dos crimes legalmente previstos, ainda que supostamente seja legitimada pelo combate a adolescentes homicidas (cuja proporção é inexpressiva diante dos homicídios cometidos por adultos, diga-se de passagem). Presídios superlotados certamente são um detalhe que não merece consideração. A lógica parece ser – com o perdão da expressão – a do “o que é um peido para quem já está cagado?” Superlotado já está e superlotado continuará estando. Não serão alguns adolescentes presos por furto de boné que agravarão a situação. Tudo se resolve em números para quem enxerga nos presídios verdadeiros depósitos – ou matadouros – de gente.
Tudo em nome da campanha empreendida pelos cruzados morais, que insistentemente inventam e vendem uma realidade inexistente de guerra contra o crime, convocando a todos nós para lutar em nome de missões que o Direito Penal não tem como cumprir. É isso mesmo que queremos fazer? Permitir que o sistema penal alcance diretamente nossa juventude? Reafirmar nossa vocação histórica para a destruição do outro, do diferente, do vulnerável? Qual é o próximo passo? Chancelar os presídios privados e com isso garantir o encarceramento massivo de jovens vulneráveis? O sistema penal se expande como epidemia e atinge principalmente os indivíduos com defesas mais baixas. Vamos compactuar com a demanda por presos que um sistema prisional privado inevitavelmente geraria? Vamos reafirmar nossa tradição escravista e permitir que jovens tenham suas forças extraídas para a produção do que não terão como consumir, sem qualquer necessidade de observância da legislação trabalhista? Ou vamos nos contentar em tratá-los como bichos nos calabouços estatais, para que eventualmente saiam mordendo? Vamos abandonar de vez a possibilidade de tratamento sadio dos problemas que envolvem adolescentes em conflito e novamente apostar em soluções que reforçam a verticalidade social, desdenhando de soluções horizontais construídas sob a perspectiva da justiça social e solidariedade, como a justiça restaurativa?
A Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude, a OAB e a UNICEF e inúmeras outras entidades já demonstraram seu repúdio diante da PEC 171/1993. Todos os países que reduziram a maioridade penal não diminuíram a violência. A proposta de redução da idade penal é inconstitucional: o marco constitucional é cláusula pétrea, insuscetível de modificação por via de emenda. Pouco importa que o artigo 228 da CF/88 esteja fora do rol exemplificativo do artigo 5º da CF/88. O próprio STF já se posicionou favoravelmente nesse sentido, considerando que existem direitos fundamentais que não estão necessariamente inseridos nele, sem falar nas inúmeras disposições internacionais que obrigam o Brasil a implementar medidas efetivas de proteção à criança e ao adolescente. Mas não podemos apostar no STF. Seria um curso de ação arriscado demais. Não com as inovações mirabolantes que já surgiram na história recente do Supremo. Não estou disposto a pagar pra ver. É preciso reunir forças e barrar essa proposta o quanto antes.
Por isso eu peço: não finja que não é com você. Seja um jurista engajado. Compreenda que a nossa posição exige a tomada de um horizonte político combativo (o que não significa de modo algum uma atitude partidária). Compreenda de uma vez por todas que as escolhas legislativas são feitas por um poder que não é jurídico e que não podemos compactuar com as iniciativas descabidas que partem desse poder. Temos que ampliar o poder jurídico como resistência democrática diante da arbitrariedade dos atos de poder estatal. Nada foi responsável pela destruição de tantos bens jurídicos nos últimos séculos como o poder punitivo. Precisamos reforçar o dique e impedir seu avanço. Essa é uma condição necessária para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.
O alarme foi soado. Mas como disse no início, palavras não bastam. Não dão conta da tempestade que se aproxima. É preciso que você sinta também essa angústia. Que se identifique com ela. E que ela se traduza em iniciativas pelo país afora. Estamos diante de uma das grandes batalhas do nosso tempo. Não fique de fora. Todos devemos carregar o fardo de um sistema penal que é a expressão de uma barbárie e lutar pela redução de danos que ele inevitavelmente provocará.
Faça você também a sua. Interprete minhas palavras como um chamado às armas, se preciso for. O sentido de um manifesto não pode ser outro que o de intervir na realidade. Palavras realmente não fazem jus ao perigo que se avizinha. Mas eu tinha que tentar. Não é o meu melhor, mas é o que pude fazer nas circunstâncias que se apresentaram. Espero que baste para ganhar você que estava em dúvida e para motivar você que já tinha o coração no lugar certo antes de ler essas palavras. Temos uma vantagem: as redes sociais. Elas permitem que os espaços de resistência sejam ampliados como jamais foram antes. Tornam possível o encontro entre pessoas com agendas compatíveis. Trata-se de usar este espaço para o bem. É o que tantos de nós tentam a cada semana, mesmo que para isso o formalismo acadêmico tenha que ser deixado de lado muitas vezes em nome da maximização da interlocução. Pagamos o preço dessa escolha nos círculos em que prospera o pensamento bem comportado. Mas eu não me importo com o estigma de ser sensível demais diante da realidade. E você?
Finalmente, encerro o texto mostrando o monstro. Quisera eu poder dar uma estocada decisiva e indefensável contra ele, dando cabo de vez da criatura. Mas não é tão fácil assim. O demônio não se curva diante da pena de quem escreve. Se eu tivesse que descrevê-lo, diria que é uma barbárie disfarçada de técnica. Uma monstruosidade sem cheiro, sem cor e sem sabor. Uma maldade banalizada como técnica normativa, que anseia pelo amparo institucional que lhe dará vida. Uma aberração jurídica animada pela crença na capacidade preventiva da pena e pela aspiração de ganhos políticos por parte dos empreendedores morais de plantão.
Diga NÃO! NÃO PASSARÃO!
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor da Faculdade de Direito e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014. É Conselheiro Editorial do Justificando.
JusBrasil, 07/04/2015
Reduzir maioridade penal é retrocesso ao processo civilizatório
Consultor Jurídico
Foi em 1830 que se instaurou no Brasil com o advento do primeiro Código Criminal do Império, a tradição Europeia de punição aos infratores de delitos. Esse contexto estendeu-se por décadas, tendo havido, inclusive, a inobservância da inimputabilidade do menor.
Apenas em 1890, no dia 11 de outubro, com a promulgação do Decreto 847, sob o comando do Chefe de Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil — General Manoel Deodoro da Fonseca — constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação, tendo ouvido o ministro dos Negócios da Justiça, houve o reconhecimento e a urgente necessidade de reformar o regime penal, oportunidade em que incluiu-se a preocupação específica à maioridade penal quanto à inimputabilidade.
Com o surgimento de tal perspectiva jurídico penal, aquele governo, que não era democrático, determinou a inimputabilidade absoluta aos menores de nove anos completos onde o objetivo principal e primário estava centrado na garantia e proteção do menor.
Proteger menores de idade sempre foi uma preocupação dos juristas, médicos e de toda a sociedade. Tanto assim, que no começo do século XX já se travava incansável luta de proteção aos poucos direitos dos menores de idade e foi nesse contexto que nasceu o primeiro Código de proteção aos menores. Foi em 12 de outubro de 1927 que criou-se, por meio do Decreto 17.943, o Código que ficou conhecido como Código Mello Matos, que ganhou esse nome por ter sido desenvolvido por uma comissão de juristas cujo líder era o Jurista José Cândido de Mello Matos. O Decreto visava precipuamente a proteção da criança, do adolescente e do infanto-juvenil que até então eram desprotegidos pela lei.
Ao longo de toda a história jurídica brasileira, incontáveis leis foram editadas e que direta ou indiretamente protegiam a criança e o adolescente, até chegarmos à Constituição de 1988, que trouxe em seu bojo a cláusula pétrea que visava proteger de forma indiscutível o menor, tendo esta, recentemente, sido jogada no ralo comum pelo Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional.
É importante analisar que a imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais atribuídas ao agente à capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível. Desta forma, a Constituinte, quando da elaboração da Carta Cidadã, entendeu como critério determinante que o menor de 18 anos não possui maturidade suficiente para responder pelos seus atos, mesmo que o seu reconhecimento dependa de aptidão biopsíquica para conhecer a ilicitude do fato quando cometido por ele para determinar esse entendimento.
Desta forma, segundo o artigo 228 da Constituição, os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, sujeitos às normas da legislação especial, ou seja, o texto deixou claro que ao menor não se aplicará o Código Penal e sim uma legislação especial e tal contexto constitucional está no bojo das cláusulas pétreas garantidas pelo artigo 60 da Constituição Federal.
Ademais, é importante ressaltar que as inimputabilidades devem ser analisadas com base em uma série de elementos como os fatores biológicos, psicológicos e biopsicológicos, respeitados as diferenças entre adultos e menores, já que o período juvenil, enquanto fenômeno biológico e fenômeno psicológico na adolescência, está-se em período de conclusão final da puberdade.
Indiscutível que as Cláusulas Pétreas não se limitam ao artigo 5º da Carta Constitucional, já que estão descritas em diversos artigos da Constituição Federal. Da mesma forma que é indiscutível que a Constituição Federal, redigida em um contexto democrático, impôs obrigações à família, à sociedade e ao Estado quanto à promoção da dignidade da pessoa humana para a criança e o adolescente na categoria de cidadãos. Repita-se, a Lei Maior prestigia a promoção da dignidade, a igualdade e a solidariedade.
A modificação acerca do atual entendimento constitucional da maioridade penal não é possível, mesmo porque, tem natureza de cláusula pétrea, como o Brasil, num âmbito maior, tornou-se signatário do Pacto de São José da Costa Rica, o que significa, dizer que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto São José da Costa Rica — quando aprovado com observância de tais requisitos, ganhou para o Brasil, pleno status de garantia constitucional.
E, uma vez assinado o acordo e respeitando as obrigações ali contidas, o Brasil passou respeitar, ainda mais, o fato de que os adolescentes que cometam atos equiparados a ilícitos devem ser processados separadamente dos adultos, de modo que caso isso não ocorra, o Brasil estará contrariando diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado pelo tratado, que garante aos jovens tratamento diferenciado, isentando-os de serem responsabilizados na esfera criminal.
Os adolescentes brasileiros são muito mais vítimas de crimes do que autores e no Brasil, se existe um risco, este reside na violência da periferia das grandes e médias cidades, já que dados mostram que 65% dos menores infratores vivem em família desorganizada, junto com a mãe abandonada pelo marido, que por vezes tem filhos de outras uniões também desfeitas e que luta para dar sobrevivência à sua prole.
Punir, pura e simplesmente o menor não gerará diminuição da incidência da violência no Brasil e estudar a proteção destinada às crianças, que procede da própria evolução dos direitos humanos, é uma obrigação social, por que não dizer, uma obrigação jurídica. Ser criança já não é apenas uma passagem para se alcançar o status de adulto, hoje, a criança é um sujeito de direitos, não um mero objeto de ações governamentais.
Desta forma, reduzir a maioridade penal representará um retrocesso ao processo civilizatório de desenvolvimento quanto à defesa, garantia e promoção do direito dos jovens no Brasil, de modo que não se pode enfrentar o problema aumentando a repressão, e devemos considerar que o Brasil tem um histórico socioeconômico de desigualdade e violência, o que só poderia gerar mais violência.
Essa onda de maioridade penal surgiu com base no pensamento social brasileiro de que aqui jaz a impunidade, mas o que não se questiona é que somos a segunda nação mundial em população carcerária. Não há é a correta punição. O Brasil pune, mas pune mal.
Gasta-se fortunas para punir no Brasil, mas se investissem esse dinheiro em escolas de tempo integral, à médio e longo prazo, sairia mais barato e com resultados muito melhores. Não faz sentido gastar tanto para colher frutos tão estragados.
Vale lembrar que a proposta de emenda constitucional 171/1993, recém aprovada pela CCJ não teve qualquer estudo jurídico, pelo contrário, no bojo das exposições de motivo fala-se basicamente em velho testamento, profeta Ezequiel, Davi e Golias, coloca-se de lado toda laicidade brasileira para tratar de questões bíblicas. O respeito às questões religiosas deve e deverão sempre existir, mas no âmbito da religiosidade e não da Constituição Federal que tornou o Brasil laico. A PEC foi elaborada em 1993 e não é embasada por análises, números e qualquer estatística ou dado jurídico. Repita-se, a principal fonte que sustenta a proposta é a bíblia.
De autoria do ex-deputado Benedito Domingos (PP-DF), o texto já tem 22 anos de existência e tem agradado e muito a bancada evangélica da Câmara, tendo ganhado força com o apoio dos parlamentares ex-militares que lá se encontram. Quanto à punição dos menores, o ECA já prevê seis medidas educativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Recomenda que a medida seja aplicada de acordo com a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias do fato e a gravidade da infração.
Na esmagadora maioria, os adolescentes, que são privados de sua liberdade, não ficam em instituições preparadas para sua reeducação, pois acabam ficando em ambientes que reproduzem uma prisão comum. Além do mais, o ECA já prevê que o adolescente pode ficar até 9 anos em medidas socioeducativas, sendo três anos interno, três em semiliberdade e três em liberdade assistida, com o Estado acompanhando e ajudando a se reinserir na sociedade, ou seja, não adianta só endurecer as leis se o próprio Estado não as cumpre!
O adolescente marginalizado não surge ao acaso. Ele é fruto de um estado de injustiça social que gera e agrava a pobreza em que sobrevive grande parte da população.
A criminalidade aumenta ou diminui de acordo com as condições sociais e históricas em que os homens vivem, de modo que reduzir a maioridade e não resolver tais questões é transferir o problema. Para um Estado que buscar escusar de suas responsabilidades, torna-se mais fácil prender do que educar.
A educação é pedra fundamental para qualquer pessoa se tornar um cidadão, mas no Brasil, tornar-se um cidadão em sua plenitude é matéria difícil de ser concretizada, pois muitos jovens pobres são excluídos deste processo. Assim, puni-los com o encarceramento é tirar sua chance de se tornar um cidadão consciente de direitos e deveres, é assumir a própria incompetência do Estado em lhes assegurar esse direito básico que é a educação.
A violência e a desigualdade social não serão resolvidas com adoção de leis penais mais severas. O processo exige que sejam tomadas medidas capazes de romper com a banalização da violência e seu ciclo. Ações no campo da educação demonstram-se positivas na diminuição da vulnerabilidade de centenas de adolescentes ao crime e à violência.
Antes de debater a maioridade penal o Brasil deveria debater quem manda nas milícias; quem manda no narcotráfico; quem manda no tráfico de armas; quem manda nos grupos de extermínios; quem manda nas máquinas caça-níquel; quem explode caixas eletrônicos; quem trafica órgãos humanos; quem explora o tráfico de seres humanos; quem manda nas fronteiras; quem controla o desmatamento; quem controla o contrabando e o descaminho; quem controla a sonegação. Talvez, e só talvez, quando estas questões estiverem respondidas e resolvidas estejamos preparados para debater a redução da maioridade penal. O resto é ilusão, falácia, tapete, esconderijo de incompetência, ausência de responsabilidades, mídia, marketing, armadilha de caça de voto.
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