domingo, 26 de abril de 2015

Impeachment hoje serve a corruptores e corruptos



http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/1621134-entrevista-eleonora.shtml




Folha.com, 26/04/2015



Impeachment hoje serve a corruptores e corruptos, diz sociólogo



ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO



A operação Lava Jato está expondo o coração do capitalismo brasileiro, que é inteiramente corrupto. Ela fere interesses empresariais e políticos que usam o Estado em seu benefício. Quem defende o impeachment hoje quer que essa limpeza acabe. Por isso, o impeachment serve aos corruptores e corruptos.

A visão é do sociólogo Adalberto Cardoso, 53, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Para ele, é ingenuidade não identificar interesses externos na crise política.

"O impeachment interessa às forças que querem mudanças na Petrobras: grandes companhias de petróleo, agentes nacionais que têm a ganhar com a saída da Petrobras da exploração de petróleo", diz.

Doutor pela USP, Cardoso afirma que o projeto sobre terceirização leva as relações de trabalho para o século 19. Na sua análise, as mobilizações da semana passada mudaram a qualidade do debate sobre o tema, e votar a favor da mudança na CLT é suicídio político.

Autor de dez livros –entre eles "A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil" (FGV, 2010) e "Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro" (FGV, 2013)–, ele avalia que o projeto sofrerá mudanças. A seguir, trechos da entrevista concedida por telefone.


​Adalberto Cardoso, 53, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ


Folha - Como o sr. avalia os desdobramentos da crise política após a prisão do tesoureiro do PT?

Adalberto Cardoso - O combate à corrupção é necessário. A corrupção é uma prática empresarial antiga no Brasil, basta lembrar dos usineiros. O que vivemos hoje é parte de um processo de limpeza e, espero, de correção dessa herança histórica de conluio entre o público e o privado. As elites e vários agentes sociais não sabem separar o púbico e o privado. O Estado sempre funcionou a serviço das elites econômicas.
Quando há um amplo combate à corrupção, o potencial de crise é muito grande. O que a Lava Jato está expondo é a forma como o capitalismo se organiza no Brasil. O capitalismo no Brasil é constituído de forças com capacidade de corromper os poderes públicos para que a sua atividade possa caminhar sem problemas. Há uma burocracia infernal, os custos operacionais são grandes.

A cada passo a empresa tromba com uma agência estatal. Aí corrompe essa agência para que sua atividade possa continuar. É a maneira mais fácil e rápida. Existe uma simbiose muito grande entre agências estatais e grandes corporações e grupos econômicos, que usam o Estado como agente seu.

A Lava Jato está mexendo com profundos interesses empresariais e políticos. Aqueles que estão clamando pelo impeachment estão querendo impedir que essa limpeza continue. O impeachment hoje serve aos corruptores e aos corruptos. A história recente mostra que há um certo viés na ação anticorrupção, principalmente no Paraná.

Só petista ou próximo ao PT vai para cadeia. Há uma profunda revisão do que é o nosso capitalismo e o agente desse processo é o governo. Nenhum outro governo jamais fez isso. Está agindo sobre o coração do capitalismo brasileiro, que é inteiramente corrupto.

É essa imbricação entre o público e o privado que está sendo desvendada hoje. Infelizmente, pelo viés antigovernista dos agentes da PF, não se investigou nada da época do FHC. Sergio Moro é um juiz ligado de muitas maneiras ao PSDB. Sua esposa é assessora do PSDB. Por um viés da radicalização política, está se colocando na cadeia membros do PT. Esse processo vai ter um impacto de longo prazo no partido.


Como o sr. analisa as posições que apontam interesses externos nesse ambiente, especialmente em relação à Petrobras e ao pré-sal?

Seria ingenuidade imaginar que não há interesses internacionais envolvidos nessa questão. Trata-se da segunda maior jazida do planeta. Existem interesses geopolíticos de norte-americanos, russos, venezuelanos, árabes. Só haveria mudança na Petrobras se houvesse nova eleição e o PSDB ganhasse de novo. Nesse caso, se acabaria o monopólio de exploração, as regras mudariam.

O impeachment interessa às forças que querem mudanças na Petrobras: grandes companhias de petróleo, agentes internacionais que têm a ganhar com a saída da Petrobras da exploração de petróleo. Parte desses agentes quer tirar Dilma. Esse tema vai voltar como o mais importante da eleição de 2018.


Há uma ação coordenada vinda de fora?

Interessa a determinadas forças internacionais a desestabilização política do Brasil. O petróleo é um ativo num ambiente altamente explosivo, um recurso importante de poder. O Brasil está se tornando independente em petróleo. Daqui a pouco, será exportador. É obvio que os EUA estão olhando para isso. Não tem como não estar.


Como o sr. analisa a ação do Congresso?

Eduardo Cunha está agindo como manda Maquiavel: fazendo maldades de uma vez. Em parte porque não sabe se há sustentabilidade para essa agenda que resolveu abrir: redução da maioridade penal, terceirização, armas.


Mas os protestos na semana passada contra o projeto de terceirização não provocaram um recuo, com o adiamento da votação?

Eduardo Cunha percebeu que cometeu um erro no caso da terceirização. Uma coisa é tirar da gaveta temas conservadores da agenda dos costumes – proibição do aborto, redução da maioridade penal. É diferente de mexer em direito das pessoas, principalmente no direito do trabalho.

A CLT, que tem 72 anos, faz parte do que o Brasil é. Foi uma conquista dos trabalhadores, fruto de lutas, greves ao longo de décadas. Os trabalhadores nascem sabendo que terão direito. Cunha tocou num ponto muito sensível de uma maneira muito atabalhoada e gerou a reação que gerou.


Por que houve recuo no amplo apoio recuo ao projeto?

É um suicídio político para qualquer partido [apoiar o projeto]. No caso do PMDB é mais grave porque ele foi o patrono da Constituição de 1988. O projeto da terceirização é um tiro no peito da Constituição de 88, pois destrói direitos sociais e do trabalho no Brasil. O custo para os partidos será muito alto se isso passar e isso foi percebido. Paulo Pereira da Silva deu um tiro na cabeça com esse projeto.


Com as manifestações da última quarta o projeto tem menos chance de passar?

Não tenho dúvida. Houve uma mudança na qualidade do debate. A sociedade reagiu ao projeto. A CUT, os sindicatos e partidos conseguiram botar mais gente na rua no que nos protestos de 12 de março. Os políticos que não levarem isso em consideração estão dando um tiro no pé.


Essa mobilização pode virar o jogo e galvanizar a esquerda?

No parlamento, essa é uma possibilidade real. não sei se uma reentrada no debate das posições de esquerda. Existe a possibilidade de pacificação no parlamento, principalmente na Câmara. O presidente do Senado disse que a lei como está não passa na casa. O PMDB não é só o que se diz na mídia. É um partido de alguma maneira comprometido com as causas sociais. Ele, em parte, herdou a história da luta contra a ditadura e da construção da democracia. Ainda que dois de seus líderes estejam sob investigação judicial, não quer dizer que o partido tenha abdicado inteiramente da sua história de apoio às lutas sociais. Abrir mão disso é um risco muito alto para esse partido também. Outros movimentos por parte de Dilma, como chamar Michel Temer e flexibilizar o ajuste fiscal, podem ajudar na pacificação. Não vai pacificar Cunha, que tem uma agenda conservadora do lado dos costumes e vai continuar tentando implementá-la.


O projeto da terceirização vai fracassar?

Metade da Câmara é composta por empresários, que apoiam o projeto e têm muito a ganhar com ele, sem exceção. Ele precariza as relações de trabalho e gera redução de custos. Vai haver uma pressão muito grande por parte do lobby empresarial e financeiro. Mas haverá também povo na rua fazendo barulho. Político preocupado com sua sobrevivência ouve a rua. Político preocupado com sua reeleição ouve quem paga a campanha. Isso vai criar uma tensão séria no Congresso.

Suspeito que vai haver uma amenização do projeto, mas não acho que a questão da terceirização foi para o brejo. Foi para o brejo tal como está. A regulamentação da contratação de terceiros vai passar com algum outro formato. Esse formato do atual projeto leva as relações de trabalho no Brasil para o século 19, um momento na história do mundo ocidental que não havia proteção para o trabalhador.


A presidente deveria ter anunciado que vetará o projeto?

Ela já deveria ter feito isso.


Por que não o fez? Faz pare da guinada da presidente?

Não chamaria de guinada. Muitos se esquecem das maquiagens feitas nos anos anteriores. A contabilidade criativa foi aceita pelos agentes econômicos porque eles estavam ganhando com isso. O governo estava emprestando muito dinheiro via BNDES, injetando muitos recursos na economia para ver se estimulava o investimento. Desonerou a folha de pagamento e deu subsídio a empresas. O governo perdeu R$ 28 bilhões por conta da desoneração da folha.

Isso significou a transferência líquida de R$ 28 bilhões da mão do Tesouro para as empresas. O déficit gerado nas contas foi para sustentar a economia e transferir recursos públicos para o empresariado.
Para ver se investiam; nem assim investiram. As empresas entesouraram o dinheiro, aplicaram no mercado financeiro e ficaram esperando para ver se ela iria perder a eleição. O que o Joaquim Levy fez foi acabar com a maquiagem das contas públicas. O ajuste era inevitável.


A presidente não fala sobre terceirização para não se indispor com o empresariado?

Não acho. Ela sabe que, em alguns setores da economia, o trabalho terceirizado dá mais eficiência e pode ser necessário. O que é inaceitável – e deveria ser inaceitável para um governo do PT – é a terceirização das atividades fim. Há um ponto central. Um artigo no fim do projeto anistia os empresários que hoje estão em situação ilegal. Ficam anistiados todos que hoje contratam ilegalmente mão-de-obra terceirizada, inclusive os que têm trabalho escravo.

Se o projeto for aprovado, no dia seguinte esses contratos vão ser rescindidos sem que os contratados tenham direito a qualquer tipo de recurso. Isso é um descalabro tão claro que qualquer um diz que o projeto está querendo destruir o Brasil.

Dilma deve ter claro que o projeto como esta é inaceitável. No meu mundo ideal, não haveria terceirização. Haveria proteção do trabalhador, e os empresários que busquem redução de custos em outro lugar. Não naqueles que produzem a riqueza, que são os trabalhadores.


Como explicar a queda abrupta na aprovação da presidente?

O ajuste fiscal é profundo, mas ainda não atingiu o cotidiano das pessoas. O que atingiu foi a inflação e a queda na popularidade tem mais a ver com isso e com a construção de um ambiente político que diz que o Brasil acabou. Estrangeiros que chegam aqui não entendem esse clima de fim de mundo. A população não é imune a esse tipo de propaganda.


Qual a responsabilidade no governo nesse quadro?

Existe uma incapacidade de liderança política do governo, que poderia estar tentando liderar a construção de uma visão alternativa. Mas hoje, nesse ambiente de fim de mundo, a possibilidade de fazer isso é muito pequena. Tudo o que a Dilma diz cai nesse ambiente e é triturado. A voz dela não é ouvida. Se fala em petralhas, ladrões, esse é o clima.

A mídia tem uma importância brutal e central nisso. O clima pós-eleitoral ainda não acabou e a oposição ainda não aceitou que perdeu a eleição.


Como o sr. analisa o futuro do PT?

Tudo vai depender do que vai acontecer nos próximos meses. Se a questão do impeachment evoluir – o que não considero o cenário mais provável – o PT vai sofrer um revés que levará anos para se refazer. Há um outro cenário de sangramento contínuo de Dilma, com ela ficando totalmente submissa ao Congresso, um esvaziamento da presidência.

O cenário mais provável é de uma crise este ano, estabilização em 2016, retomada em 2017 e o Brasil chegar bombando em 2018, como aconteceu em 2010. Isso com o ajuste produzindo os efeitos que os economistas dizem que ele vai produzir: mudança da expectativa dos empresários, retomada de investimentos pelo Estado, mais infraestrutura, retomada do emprego, de melhoria dos salários, inflação mais controlada. Um governo mais bem avaliado, com possibilidade de fazer sucessor.


Com Lula?

A tentativa hoje é destruir o governo, o PT e o Lula. Destruir essa alternativa eleitoral. O que está em jogo no país é um processo de desconstrução de uma alternativa eleitoral de esquerda. Querem destruir o PT como alternativa de poder no Brasil.

O PT paga um preço alto por fazer o que os partidos de esquerda fazem: distribuição de renda, melhoria de vida para os mais pobres, redução da desigualdade social. Uma parte do Brasil está reagindo de forma muito pesada contra isso. São empresários, os que votaram na oposição e não aceitam o resultado eleitoral, a imprensa.


O PT não agiu contra si próprio?

O PT tem culpa nisso. Isso decore dos paradoxos do sucesso de qualquer organização que chega ao poder central. O PT foi efetivo ao dar ao capitalismo condições mais dignas de funcionamento, proporcionando melhores condições de vida para as pessoas. O PT nunca foi partido revolucionário.


A liderança de Lula foi abalada?

Ninguém está imune ao processo de desconstrução. Mas Lula é o Lula. Hoje ele sofre as consequências do dessoreamento do projeto político do PT em função da crise econômica e política. Se cenário da retomada se concretizar, Lula pode voltar a ser o que era.

Ele estará no segundo turno de qualquer eleição e tem muito o que mostrar. Se for candidato, é um dos mais fortes em 2018. A única alternativa da oposição é continuar batendo no impeachment.


Qual sua visão sobre Aécio?

Aécio voltou com a agenda do impeachment, que parte do PSDB estava abandonando, por duas razões. Primeiro, porque Eduardo Cunha tomou a dianteira da agenda da oposição e de direita de maneira muito eficiente nos últimos meses. Em segundo lugar, porque os que foram às ruas no domingo começaram a chamar Aécio de "cagão", porque ele não vinha [às ruas].
A única bandeira que ele tem nesse debate é a do impeachment. No PSDB já foi dito que eles não podem cometer o mesmo erro de 2005, quando não levaram adiante o processo. Estão escaldados. Perderam em 2006 e em 2010. Acharam que o Lula iria sangrar até o final, mas o Brasil voltou a crescer e o Lula saiu com 80% de aprovação. Isso pode acontecer de novo.
Eles olham para trás e dizem que cometeram um erro. Dizem que Dilma não é o Lula, que o Congresso não vai sustentar Dilma como sustentou Lula e querem levar até o fim esse negócio. A agenda do impeachment, que o Aécio diz que não é golpista, nesse caso é. É uma agenda de quem ainda não aceitou o resultado do processo eleitoral.


Como o sr. define esse momento historicamente. Há paralelos?

O momento é único. Comparam com Jango, mas é muito diferente. Lá havia paralisia decisória no Congresso, com uma presidência muito fraca, e com os militares sendo a força de oposição mais importante. Hoje não há isso. Não temos conspiração militar. O clima hoje é de fim de mundo em razão da corrupção. Isso matou Vargas.

É um momento de muita incerteza. É único também porque nunca tivemos instituições democráticas tão sólidas. Temos um Judiciário autônomo como nunca tivemos, um parlamento que é representativo do que é o Brasil, que é conservador.

Temos uma crise desse tamanho – com perda da capacidade do PT de liderar o centro político, com pedidos de impeachment – e ela não está desestabilizando o sistema político. Pelo contrário, a crise reforça os aspectos virtuosos da nossa democracia. Isso também é uma novidade. Antes, crises assim levavam a golpismo militar. Agora se tem golpismo, mas institucional.

Nesse ambiente contaminado, o PT e a esquerda perderam a capacidade de liderar o centro. Lula conseguiu fazer isso. Dilma o fez até 2013, quando ela perdeu o centro, capturado pela direita. Cunha puxou o centro para o seu lado.


Como chegamos até aqui?

Essa situação de radicalização decorre, em parte, de um processo mais longo de desgaste, não só eleitoral, mas da capacidade de condução política do PT. Começou há mais tempo, mas os movimentos de junho de 2013 são emblemáticos e mudaram a pauta do Brasil. Até ali, o governo tinha uma aprovação acachapante e o controle da agenda política.

O caldeirão continuou fervendo em 2013 e 2014 e explodiu na eleição. Os temas continuaram se radicalizando nas redes sociais. O caminho do meio, de conciliação de políticas contrárias, foi perdido.


Por quê?

As mídias sociais permitem um certo tipo de radicalização que na esfera política não tinha como prosperar no Brasil. As mídias sociais e a imprensa abdicaram da construção de um caminho do meio, tomaram partido, e isso ajudou no processo de radicalização.

O governo foi se sentindo mais acuado; suas forças de apoio também radicalizaram suas posições, o que levou a uma campanha eleitoral muito radicalizada. Não esperava que a agressividade de ambos os lados chegasse ao nível que chegou, de ameaças à própria democracia. Foi exagerada a forma como a campanha de Dilma destruiu a Marina.

Aécio também fez uma campanha radicalizada para a direita, porque o centro foi ocupado pela Marina. Chegamos a 1º de janeiro saídos de uma campanha eleitoral muito sangrenta. O Congresso foi impondo à Dilma seguidas e grandes derrotas. A primeira foi a eleição de Eduardo Cunha, um inimigo declarado do PT.




http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Principios-Fundamentais/A-Lava-Jato-e-o-arbitrio-%0Aprivado-individual-e-egoico-u20B/40/33335




Carta Maior, 24/04/2015


 

A Lava Jato e o arbítrio privado, individual e egóico


 
Por Rogério Dultra dos Santos



O juiz lava-jato, em seus procedimentos e decisões, tem a pretensão de funcionar como um burocrata que maneja o instrumental técnico do direito sem manifestar envolvimento pessoal ou individual. Figura no processo como uma engrenagem especializada: apesar de representar uma autoridade, um poder político, ao manter a aparência de distanciamento e ausência de “interesse” no caso examinado, deseja ser visto, em geral e especialmente, como destituído de responsabilidade ou intencionalidade política. A aplicação da lei toma, sob sua jurisdição, a forma de um resultado exclusivamente técnico, onde prevalece a avaliação derivada do conhecimento do direito e onde desaparece a vontade e a escolha na conformação da decisão.

O processo judicial e o decidir do juiz lava-jato não são apresentados como a resultante de uma escolha política, determinada pela visão de mundo vinculada e personalizada na autoridade de quem decide, influenciada por elementos de classe, por percepções, afetividades e afinidades conscientes ou inconscientes. A decisão expressa na sentença, nos mandados de prisão preventiva ou na escolha pela delação é vista e compreendida, pelo contrário, como uma derivação da regularidade racional das normas.

A suposta aplicação impessoal e equidistante do direito, efetuada pelo juiz lava-jato, opera uma sacralização do processo e uma purificação do próprio aplicador da lei que funcionam como uma verdadeira canonização, uma blindagem do juízo à critica. As decisões deste juiz são tidas, assim, como neutras e indiferentes a valores. Há uma verdadeira fé na neutralidade do processo judicial. Uma fé que – interessantemente –, não se explica pelos seus resultados ampla e sistematicamente enviesados.

A estrutura discursiva que legitima o operar do juiz lava-jato não elimina a disputa política inerente ao mundo real, neutralizada nas fórmulas decisórias do direito e expressas nas lides judiciais. O conflito político, próprio da vida social, é apenas ocultado. Subjaz ao caráter técnico e asséptico da decisão, da manutenção do réu preso, da decretação da prisão, de todo ato judicial, a sua resultante política. Isto porque o direito enquanto instrumento técnico, neutro e cego a valores, está necessariamente subordinado à direção e aos valores de quem decide. Curiosamente, enquanto os instrumentos técnicos não têm a capacidade de decidir, a decisão porta a direção.

A interpretação que põe e orienta concretamente a norma jurídica lhe é externa. Isto significa que o sentido do direito é determinado a partir de fora. Então, a vinculação entre aplicação técnica do direito e uma finalidade moral ou ética automaticamente alcançada é uma conexão irreal e/ou ingênua. Toda e qualquer finalidade ética e moral é pessoalmente desejada por quem aplica o direito, e este é aplicado de forma a que esta finalidade específica seja alcançada.

O sentido do direito é determinado por quem o aplica. A conseqüência deste fato sociologicamente apreciável é que quem conduz o direito no sentido que deseja reclama para si o poder que deriva de sua aplicação. Assim, o juiz lava-jato não é um servo do direito. É o seu senhor. E um senhor que comanda este instrumento cego de acordo com as suas necessidades, percepções e interesses, sejam eles conscientes ou não.

A luta pelo direito é a luta para saber quem será capaz de dominá-lo politicamente, porque o seu domínio político representará a possibilidade da divinização da visão de mundo de quem o controla. O domínio político através do direito se realiza como sacralização da vontade de quem decide e como canonização da decisão em si.

Neste sentido, o juiz lava-jato, que inicia o seu processo de ascensão política como um burocrata, como uma engrenagem técnica do ordenamento jurídico, pode figurar sem problemas como o portador da verdade. A imparcialidade da burocracia judicial transforma-se, num passe de mágica, na potência heróica do dirigente político, assentado na função de juiz.

Este processo opera uma espécie de rebaixamento do próprio direito. Este deixa de ser um instrumento de afirmação do poder republicano e da vontade popular expressos na constituição e se transforma, nos espaços reservados do foro, em arbítrio privado, individual e egóico.

Paradoxalmente, a veiculação de que as decisões judiciais são universais, abstratas, impessoais e, portanto, “justas” é uma abstração provocada por quem tem interesse em não se comprometer com o que se faz e o que se fez. As conseqüências possíveis de um proceder técnico não são de responsabilidade de ninguém. Se as prisões, as delações, os procedimentos e acusações forem invalidados posteriormente, “a culpa é do processo”.

Irresponsável pelos atos e inimputável pelas conseqüências, o juiz lava-jato pode se permitir construir e reconstruir, a seu bel-prazer, o processo e os procedimentos. Quantas vezes quiser. E por quanto tempo desejar. O direito se transforma, em suas mãos, em uma novela fantástica, manipulada pelo discurso jurídico e pela autoridade da razão aclamada.

Ao mesmo tempo em que não se compromete politicamente com a realidade concreta, o juiz lava-jato transforma-se no demiurgo do futuro através da construção discursiva de uma república imaginária, pura, existente no espaço exclusivo de sua fantasia. Isto significa que ele torna-se eticamente responsável apenas por si mesmo. Emancipado das amarras do processo (e da realidade) por suas interpretações e isolado, por elas, da necessidade de explicar-se pelos seus atos, toma de Deus o lugar do absoluto.

E neste lugar, para além de qualquer controle – inclusive o democrático –, pode reivindicar que a sua forma de conduzir a república é a única coisa que interessa. A estabilidade institucional, a permanência da democracia, o controle político do processo representativo, tudo o que pode perecer a partir das conseqüências de seus atos é compreendido, interpretado e aceito sem conflito, posto que a passividade constitui a essência de quem se entende ou se justifica publicamente como um simples burocrata. E esta é a essência do mal.

Este modelo de juiz, o juiz lava-jato, representa filosoficamente a essência do mal porque o mundo lhe aparece como simples ocasião para o seu deleite individual. O burocrata aqui se despe revelando-se como um perverso. A sua perversidade específica é considerar que o direito, enquanto regra e estabilidade – o direito como garantia, como devido processo –, deve estar submetido à variação de seus interesses secretos. A impessoalidade da norma contrasta – e mesmo nega – a vontade de poder deste indivíduo que a opera.

O indivíduo-burocrata transforma-se em juiz-Deus-Estado. Sua subjetividade é catapultada à posição política de norma condutora da interpretação da vida social. A ideia de corpo social se desfaz na subjetividade de seu agente-condutor. E o futuro da democracia torna-se pobre, sórdido, embrutecido e curto.

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