terça-feira, 14 de abril de 2015

Diminuição da idade penal: Covardia humana e cinismo









Carta Maior, 14/04/2015




Diminuição da idade penal: Covardia humana e cinismo



Por Gaudencio Frigotto*



Numa mesma semana juntam-se duas decisões de dois poderes -  um que elabora as leis (sempre supostamente justas) e outro que cuida do cumprimento das leis, mas que, quando é em causa própria, faz as suas próprias leis.
 
A primeira refere-se à notícia dos que zelam pela “justeza das leis”. O Supremo Tribunal Federal, aprovou em causa própria, com efeito em cascata para todos os tribunais, o aumento em 83% em suas  diárias nacionais e internacionais. A diária nacional será de R$ 1.125,00  e as internacionais de US 727,46  que equivalem, no cambio atual, a R$2.328,00.  Ou seja, uma diária nacional equivale, aproximadamente, a um salário mínimo e meio e a internacional a mais de três salários mínimos nacionais.
 
O descalabro e a perda de limite de qualquer bom senso é que estes senhores sabem que de acordo com os dados do IBGE de 2010, 60% dos brasileiros viviam com menos de um salário mínimo; 25% de um a dois salários mínimos e 15% acima de dois, sendo que destes apenas 2% ganhavam entre 10 e 20 salários mínimos e 1% acima de 20 salários. Mas isto não é tudo: soma-se também a ajuda alimentação, refeição, moradia, etc. Extraordinário senso de justiça! Estaríamos diante de um poder soberano, acima da sociedade?  A quem recorrer diante deste abuso flagrante?
 
A outra notícia é que a Comissão da Câmara de Constituição e Justiça, por 42 votos a 17, aprovou a diminuição da idade peal de 18 para 16 anos. Aqui os argumentos são tautológicos. A grande mídia empresarial, em sua pauta diária, focaliza seletivamente a criminalidade tendo, como mostra Noam Chomsky, a violência e o medo como formas de dominação política. Ganha a audiência da classe média, ainda que não só dela, que passa a acreditar que a origem da violência no Brasil decorre do fato de “os bandidos” se aproveitarem de jovens com menos de 18 anos para seus crimes porque são protegidos pela lei. E de fato se aproveitam.
 
Mas seria esta a fonte primeira da violência em nossa sociedade?  A grande mídia empresarial ou os que produzem e cuidam das leis acreditam que estes jovens usados assim o são porque nasceram para o crime?  Leram alguma análise de pesquisadores, das centenas que existem no Brasil e no mundo, sobre as determinações econômico sociais, políticas e culturais da violência?
 
Qual a base científica para a aprovação da diminuição da idade penal?  A base são levantamentos de institutos da grande mídia empresarial - máquina de criação de “verdades” – que apontam que mais de 80% dos brasileiros são favoráveis.
 
Um cinismo que a arte, de forma mais densa, desmascara sem necessidade de muitas teses. Os 42 deputados que votaram a favor deveriam receber a tarefa de ver 10 vezes o filme Cidade de Deus, pois, caso a lei seja aprovada, pouco tempo se passará para essa mesma mídia criar outra verdade – a urgência em diminuir a idade penal para crianças de 15, 14 ou 13 anos, pois estarão sendo usadas pelos criminosos. E o serão de fato. E o que farão os que produzem as leis e os seus guardiões?  Sancionarão nova lei de diminuição da idade penal? Não seria esta lógica sintoma de um grau extremo de cinismo e de degradação ética do tecido social brasileiro?  
 
A letra da música  - Classe média -  de Max Gonzaga e  Banda  Marginal, produzida em 2005, que transcrevo  em parte abaixo,  hoje tem maior atualidade e nos ajuda a entender como se forma ou se manipula a  opinião em nosso país. Por ela, também, podemos entender porque as duas decisões dos dois poderes constituídos não mobilizam multidões.
 
 
Sou classe média.
Papagaio de todo telejornal
Eu acredito
Na imparcialidade da revista semanal (...)


Mas eu "tô nem aí"
Se o traficante é quem manda na favela
Eu não "tô nem aqui"
Se morre gente ou tem enchente em Itaquera
Eu quero é que se exploda a periferia toda (...)


Mas se o assalto é em "Moema"
O assassinato é no "Jardins"
E a filha do executivo
É estuprada até o fim


Aí a mídia manifesta
A sua opinião regressa
De implantar pena de morte
Ou reduzir a idade penal (...)


E eu que sou bem informado
Concordo e faço passeata
Enquanto aumento a audiência
E a tiragem do jornal  ( ....)


Toda tragédia só me importa
Quando bate em minha porta
Porque é mais fácil condenar
Quem já cumpre pena de vida


Valeria, por fim, dentro deste quadro que junta prepotência, cinismos e manipulação midiática a leitura atenta da crônica de Luiz Fernando Veríssimo  - O alarme – na qual  refere-se aos filme  de Stanley Kubrick "2001, uma Odisséia no Espaço" para refletir nossa realidade. Veríssimo toma o monolito que os astronautas vêm como um sinal que um dia pode cair  na nossa cabeça e conclui:
 
"Na falta de um sentinela para nos alertar que os bárbaros estão tomando conta, resta confiar em nosso instinto. Quando chegará o momento que nos convencerá que isto aqui não tem jeito mesmo, e procurar uma saída? Será que o momento já veio e já se foi, e nós não notamos. Sair para onde?, para dentro, para a alienação e a burrice induzida, ou para fora, com o euro caro desse jeito?"

Dormirão tranquilos e com a consciência  em paz, tanto os que votaram pela diminuição da idade penal quanto os que acharam justo aumentar suas diárias em 83%?


*Filósofo e mestre e doutor em educação. Professor titular aposentado pela Universidade Federal Fluminense e, atualmente professor do Programa de  Pós graduação em Políticas Públicas e  Formação Humana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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