http://observatoriodaimprensa.
Observatório da Imprensa, 28 de abril de 2015
Imprensa investe cada vez mais na imbecilização
Por Ângela Carrato
Recente pesquisa divulgada pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro mostrou que 70% dos brasileiros não leram um livro sequer em 2014. O resultado é preocupante, especialmente se comparado a anos anteriores. Até 2012, a média de leitura do brasileiro era pequena, mas apresentava um número bem mais significativo. Esta média era de quatro livros por ano, sendo 2,1 livros lidos até o fim, segundo levantamento feito pelo Ibope Inteligência em 2011. Por que o Brasil lê tão pouco?
O assunto não gerou nenhuma comoção nacional. Não motivou manchetes de jornais e revistas, reportagens especiais no rádio ou na TV e muito menos comentários ou editoriais indignados. Em outras palavras, pouquíssimo se falou sobre o tema, com professores e escritores repetindo as respostas de sempre: o problema se deve ao pouco investimento em estudo, à falta de vontade política e à própria cultura do povo brasileiro, mais oral do que textual.
Vistas assim, estas explicações acabam jogando a responsabilidade no colo do governo (seja ele qual for) e das próprias pessoas, já que seria parte da “própria cultura do povo brasileiro”. Se para alguns estas “explicações” podem ser suficientes, elas estão longe de abranger o problema em toda a sua dimensão e, principalmente, de apontarem soluções eficazes.
Além do governo e das próprias pessoas, existe outro grande responsável por este estado de coisas que nunca é lembrado: a mídia brasileira, sobretudo a mídia audiovisual comercial que pensa apenas no lucro e transforma o ouvinte/telespectador em mero número na disputa desenfreada por audiência. Nunca houve, de forma efetiva e continuada, investimento desta mídia no aprendizado e desenvolvimento de crianças, jovens e adultos. Ao contrário, investiu-se e investe-se cada vez mais na imbecilização geral.
Em todos os países democráticos, a educação sempre foi uma das tarefas prioritárias dos meios de comunicação, ao lado de informar, entreter e prestar serviços. Tarefa reforçada pelo fato de que na Europa, a mídia audiovisual pública, comprometida os interesses da cidadania, precedeu à mídia comercial. O quê faz uma enorme diferença. Mesmo nos Estados Unidos, onde a mídia comercial prevalece, existem mais de 600 emissoras de rádios e TVs públicas que servem de parâmetro para as demais e para a própria sociedade.
Roquette-Pinto e a “escola dos sem-escola”
No Brasil, as primeiras experiências envolvendo o rádio e a televisão tiveram em comum a mesma pessoa: o médico, sociólogo, educador, professor e cientista carioca Edgar Roquette-Pinto. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, por ele criada em 1923, tinha como objetivo difundir a educação e a cultura em todo o território nacional, pois entendia este veículo como “a escola de quem não tem escola”.
A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi a primeira emissora na América do Sul a transmitir uma ópera completa, a apresentar um programa de teatrinho infantil, a levar ao ar cursos de português, história, inglês, física, biologia e química, além de transmitir palestras sobre assuntos do momento e tocar música brasileira com regularidade. Apesar de sua importância e do compromisso com a educação, num país tão carente de iniciativas dessa ordem, uma série de determinações do governo federal passou a complicar a vida da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.
O decreto nº 16.657 de 5 de novembro de 1924 proibiu a inserção comercial nas suas transmissões. Até aí, tudo bem, porque a emissora sobrevivia graças à mensalidade paga por seus 300 filiados. No entanto, o crescimento da radiodifusão provocou o interesse de agências de publicidade norte-americanas em relação ao mercado consumidor brasileiro. Agências que vieram para cá acompanhando as empresas dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra que aqui se instalavam. O enorme interesse das pessoas pelo rádio começou a ter efeitos também sobre os proprietários de jornais que identificaram o novo veículo como adequado para se ganhar dinheiro.
Um desses proprietários era Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo que, já possuindo sete jornais e uma revista, o Cruzeiro, inaugura, em 1935, no Rio de Janeiro, sua primeira emissora de rádio, a Tupi. Para viabilizar seu negócio, contou com recursos de empresas como a General Eletric e de patrocinadores, entre os quais estavam quase todos os milionários cariocas e paulistas. Chateaubriand passa a pressionar – e consegue – que o governo liberasse a publicidade nestas emissoras. Depois disso, o rádio brasileiro nunca mais voltou a dar ênfase à educação, com o próprio Roquette-Pinto entregando, no ano seguinte, numa atitude inédita, sua emissora para o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Ele não aceitava condicionar a programação aos interesses dos anunciantes e, sem outra forma para manter a rádio, uma vez que os assinantes minguavam, acreditava que nas mãos do governo ela poderia ter um futuro melhor.
Numa triste coincidência, mais de duas décadas depois, Roquette-Pinto vai se deparar novamente com Assis Chateaubriand, desta vez nos primórdios da televisão no Brasil. Como cientista Roquette-Pinto já vinha, desde 1940, pesquisando sobre a “oitava maravilha do mundo” e dispunha de todas as condições técnicas para colocar no ar uma emissora comprometida com a educação e a cultura. Já o empresário Chateaubriand, em 1943, é apresentado à tecnologia da televisão numa visita que faz aos Estados Unidos e imediatamente percebe que ali residia uma nova fórmula para ampliar seu poder e ganhar mais dinheiro.
Resumo da ópera: a televisão educativa sonhada e planejada por Roquette-Pinto, que já contava com o apoio e o financiamento da Prefeitura do Rio de Janeiro (então distrito federal), acabou, por pressões políticas, sendo inviabilizada, enquanto a emissora comercial de Chateaubriand foi inaugurada em 19 de setembro de 1950, em São Paulo. Ao contrário de outros países, a televisão comercial no Brasil nunca pensou seriamente em seu compromisso com a educação e menos ainda que foi e continua sendo uma das principais responsáveis pelo próprio iletramento vigente no país.
Iletramento e alienação
Os males do analfabetismo são conhecidos. Uma pessoa que não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever, não pode exercer em toda a plenitude os seus direitos de cidadão. O analfabeto é marginalizado e não tem acesso aos bens culturais das sociedades letradas. No entanto, existe, nos dias atuais, outra forma de analfabetismo tão ou mais grave, sobre a qual quase nada é dito. Trata-se do iletramento provocado pelos meios de comunicação, em especial os audiovisuais.
No campo acadêmico, estes estudos são denominados media literacy, que em português não tem tradução direta, pois a palavra letramento não existe nos dicionários da língua portuguesa. Razão pela qual, muitos preferem referir-se ao tema como sendo educação para a mídia. Seja como for, o certo é que letramento ou educação para a mídia significa que o indivíduo precisa de uma educação especial que o habilite a entender o conteúdo da mídia e o possibilite a formular sua própria opinião sobre os assuntos abordados.
O iletrado é o oposto disso. É o cidadão que não dispõe de recursos para compreender como a mídia funciona e, sobretudo, para relativizar o que lhe é mostrado. Até porque, a verdade/realidade para a mídia comercial, com as exceções de praxe, é quase sempre o que interessa aos seus proprietários e anunciantes.
Na Europa e nos Estados Unidos, onde este problema há muito foi detectado, a preocupação em evitar que o iletramento leve à alienação da sociedade está se transformando em prioridade para universidades, instituições de ensino e cidadãos. Nestes países, a mídia audiovisual é regulada e conta com o contraponto da mídia pública. Situação que torna a realidade brasileira mais grave ainda, a exigir das autoridades, dos Ministérios (Educação, Cultura e Comunicações), das escolas de ensino básico e fundamental, das universidades e dos setores mais sensíveis a esta temática um posicionamento imediato.
Que a mídia comercial brasileira nunca teve preocupação com a elevação do nível intelectual e de informação da população é fato. O problema é que este descompromisso está aumentando e a grande maioria não se dá conta disso. Quando se pensa em educação da população brasileira, pensa-se como há 50 ou 100 anos, quando a tarefa era função primordial da família, das igrejas e da escola. Hoje não é mais.
Midiotas
A mídia, em especial a televisão, transformou-se na arena por excelência do espaço público brasileiro. Presente em 98% dos lares, ela é também o principal meio de que dispõe a população para se informar e para entender o mundo em que vive. Quando a televisão deixa de lado esta tarefa e passa a mostrar uma realidade que não condiz com os fatos, não é preciso muito esforço para se avaliar os problemas daí decorrentes.
As novas tecnologias da comunicação, em especial a internet 2.0 com suas redes sociais, tem contribuído para minimizar os efeitos deseducativos da mídia comercial. Mas no Brasil, infelizmente, ainda se está longe de uma universalização do acesso a estas redes, o quê mantém e aprofunda a gravidade do quadro, em que a redução da leitura é apenas uma das pontas do iceberg.
Em outras palavras, fica mais fácil entender como diria o saudoso Stanislaw Ponte Preta, o febeapá dos dias atuais, com “indignados” reivindicando “intervenção militar constitucional” ou tendo como palavras de ordens difusos xingamentos e palavrões contra o governo. Os telejornais brasileiros (Jornal Nacional à frente) são os principais responsáveis pela desinformação que permeia a sociedade brasileira, pois ao mostrarem diariamente, sem qualquer contextualização e espaço para o contraditório, problemas diversos envolvendo, por exemplo, corrupção, acabam levando a população a acreditar que ela começou agora e é o inimigo número 1 do Brasil.
Mais ainda, a mídia tem sido, no Brasil, fonte de “soluções” conservadoras e reacionárias. Basta pensar nos Big Brothers, nos programas de auditório, com suas competições e jurados duvidosos, e nos programas policialescos, com o permanente estímulo ao se fazer “justiça com as próprias mãos”. Daí, não causar surpresa, que no início do século 21, existam aqui tantas pessoas acreditando que “vencer na vida é questão de puro mérito pessoal”, outras tantas pensando que “homossexualismo é doença”, e um contingente cada dia maior disposto a apoiar a redução da maioridade penal, como solução para a criminalidade.
Mesmo quando a televisão, através de algumas telenovelas, tenta abordar temas tabus (a exemplo do homossexualismo feminino) o faz de uma forma descontextualizada que passa longe de conseguir aprofundar, efetivamente, a questão. Isto porque esta temática, por exemplo, está ausente de outros programas de sua grade, sem falar que é apresentada para a população sem mediações. Situação que mostra como fazem falta, aqui, programas educativos como os da British Broadcasting Corporation (BBC), a TV Pública Inglesa, ou da Public Broadcasting System (PBS), a TV Pública norte-americana, ou mesmo da TV Nacional, a TV Pública argentina, em que estas e tantas outras temáticas são discutidas e aprofundadas através de documentários, mesas-redondas e até mesmo reality shows. Só que reality shows completamente diferentes dos que conhecemos.
A título de exemplo, um dos realities shows de maior sucesso na BBC, até recentemente, envolvia personalidades e gente comum e suas críticas ao consumismo e aos produtos nocivos e sem interesse para a comunidade. Uma celebridade ou uma pessoa simples jogar na fogueira um determinado refrigerante ou posicionar-se contra um novo modelo de celular é quase impensável no Brasil. Mas na Inglaterra, não.
Os debates presidenciais nos Estados Unidos são realizados e conduzidos pela PBS e seria inaceitável para a maioria da população que eles acontecessem nas emissoras comerciais e com regras impostas por elas, como se dá no Brasil. Mais ainda: na Argentina, a população tem na TV Nacional o contraponto à cobertura partidarizada que a mídia comercial faz de questões desde responsabilidades por violações aos direitos humanos e torturas durante o período de ditadura militar até recentes convênios de cooperação técnico-científica, assinados pela presidente Cristina Kirchner em viagens à China e à Rússia.
Enquanto isso, aqui no Brasil, a mídia comercial, numa unanimidade que Nelson Rodrigues já sabia ser burra, continua promovendo e contribuindo para o iletramento da população. Ou, como já bem definiu Luciano Martins Costa (aqui neste Observatório) para que no lugar de cidadãos tenhamos, cada vez mais, midiotas. Voltarei ao assunto.
Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade.
http://www.museudavida. fiocruz.br/brasiliana/cgi/ cgilua.exe/sys/start.htm? infoid=155&sid=30
Um dos maiores defensores da radiodifusão educativa no Brasil, Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) teve importante papel na divulgação da ciência no início do século 20.
Formado pela Faculdade de Medicina, iniciou em 1906 sua carreira de professor na Seção de Antropologia, Etnografia e Arqueologia do Museu Nacional, de onde foi posteriormente diretor. No ano seguinte, incorporou-se à expedição Rondon, no Mato Grosso, e investigou os índios Pareci e Nhambiquara, publicando obra de grande interesse geográfico e etnológico. Foi também professor de História Natural e sempre atuante no campo da educação, tomando parte no movimento de renovação educacional no Brasil e assinando o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932.
À época em que ingressou no Museu Nacional, iniciou também duas atividades de divulgação científica, às quais deu prosseguimento ao longo de toda a carreira. Para isso, usou diferentes estratégias e meios de comunicação, como livros, exposições e até as novas tecnologias de sua época, o cinema e o rádio – além de criar bibliotecas e filmotecas, Roquette-Pinto produziu inúmeros programas de rádio e filmes educativos e de divulgação científica.
Foi um dos idealizadores da Sociedade Brasileira da Ciências (atual Academia Brasileira de Ciências), criada em 1916 com o objetivo de dedicar-se ao estudo e à propaganda das ciências no país. Nessa instituição, assumiu o posto de primeiro secretário da diretoria presidida por Henrique Morize, ao lado de Amoroso Costa no cargo de segundo secretário.
Roquette-Pinto também fez parte de um grupo de intelectuais e cientistas, atuantes no início do século 20, que tinham como propósito a valorização da pesquisa básica. Eram professores, cientistas, engenheiros, médicos e outros profissionais liberais ligados em geral às principais instituições científicas e educacionais do Rio de Janeiro. Neste grupo, tinha colegas como Miguel Ozorio de Almeida e seu irmão, Álvaro, Manoel Amoroso Costa, Henrique Morize, Juliano Moreira, Roberto Marinho de Azevedo, Edgard Süssekind de Mendonça, Lélio Gama, Teodoro Ramos, Francisco Venâncio Filho e outros.
Principais contribuições no campo da educação e divulgação das ciências
Primeiros passos - o Museu Nacional: Paralelamente às atividades propriamente científicas, Roquette-Pinto desenvolveu atividades de divulgação científica no museu – instituição que, para ele, deveria ter também caráter educativo. Como exemplo, podemos citar o documentário Os Nhambiquaras, de 1912, e a confecção dos Quadros didáticos de História Natural, para uso em sala de aula, em 1920, além da montagem de diversas exposições.
Educação nas ondas da rádio: Roquette-Pinto idealizou e participou ativamente da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada com o objetivo de difundir assuntos culturais e científicos.Os programas veiculavam, além de música e notícias, inúmeros cursos dos mais variados temas – do inglês à história do Brasil, passando pela química e pela literatura francesa. O divulgador também se dedicou à apresentação do programa Jornal da Manhã e à elaboração de textos para a Hora Infantil. Escreveu, ainda, inúmeros artigos sobre radiodifusão. Em 1934, criou a Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, emissora que hoje leva seu nome.Como demonstram suas atividades, Roquette-Pinto acreditava que o rádio (como o cinema) teria papel fundamental na solução dos problemas educacionais no país: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”, declarou.
Publicações: Além dos livros de caráter mais técnico, como Rondônia (1917), Roquette-Pinto publicou livros de divulgação científica, começando com Conceito atual de vida (1922). Assinou também artigos de divulgação científica em várias publicações, como A Manhã, A Noite, Diário Carioca e Jornal do Brasil. Os temas incluíam não só a questão educativa e de radiodifusão, mas também a valorização do homem brasileiro, pesquisa básica, ciência e arte, literatura, populações indígenas e tendências da medicina moderna. Porém, escrever textos de divulgação não foi sua única contribuição para a área. O divulgador criou e editou revistas que permitiram aos cientistas escrever para o público leigo, como Radio – Revista de Divulgação Científica Geral, lançada em 1923, Electron, criada em 1926, e Revista Nacional de Educação, de 1932.
Educação em ciências no cinema: Desde que iniciou, em 1910, a filmoteca do Museu Nacional, Roquette-Pinto dedicou atenção especial ao cinema como meio de divulgação científica – um exemplo são os documentários da Comissão Rondon, em 1912. Dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) de 1936 a 1947, incentivando a participação de cientistas na elaboração dos filmes e a escolha de temáticas científicas e técnicas.
Fontes:
MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: Algumas reflexões sobre a década de 20. Rio de Janeiro: IBICT e UFRJ, 1998. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Instituto Brasileiro de Informação em C&T e Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.
MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa; ARANHA, Jayme. “Roquette-Pinto e a divulgação científica”. In: LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda (orgs.). Antropologia Brasiliana – Ciência e educação na obra de Edgar Roquette-Pinto. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Editora UFMG / Editora Fiocruz, 2008.
O assunto não gerou nenhuma comoção nacional. Não motivou manchetes de jornais e revistas, reportagens especiais no rádio ou na TV e muito menos comentários ou editoriais indignados. Em outras palavras, pouquíssimo se falou sobre o tema, com professores e escritores repetindo as respostas de sempre: o problema se deve ao pouco investimento em estudo, à falta de vontade política e à própria cultura do povo brasileiro, mais oral do que textual.
Vistas assim, estas explicações acabam jogando a responsabilidade no colo do governo (seja ele qual for) e das próprias pessoas, já que seria parte da “própria cultura do povo brasileiro”. Se para alguns estas “explicações” podem ser suficientes, elas estão longe de abranger o problema em toda a sua dimensão e, principalmente, de apontarem soluções eficazes.
Além do governo e das próprias pessoas, existe outro grande responsável por este estado de coisas que nunca é lembrado: a mídia brasileira, sobretudo a mídia audiovisual comercial que pensa apenas no lucro e transforma o ouvinte/telespectador em mero número na disputa desenfreada por audiência. Nunca houve, de forma efetiva e continuada, investimento desta mídia no aprendizado e desenvolvimento de crianças, jovens e adultos. Ao contrário, investiu-se e investe-se cada vez mais na imbecilização geral.
Em todos os países democráticos, a educação sempre foi uma das tarefas prioritárias dos meios de comunicação, ao lado de informar, entreter e prestar serviços. Tarefa reforçada pelo fato de que na Europa, a mídia audiovisual pública, comprometida os interesses da cidadania, precedeu à mídia comercial. O quê faz uma enorme diferença. Mesmo nos Estados Unidos, onde a mídia comercial prevalece, existem mais de 600 emissoras de rádios e TVs públicas que servem de parâmetro para as demais e para a própria sociedade.
Roquette-Pinto e a “escola dos sem-escola”
No Brasil, as primeiras experiências envolvendo o rádio e a televisão tiveram em comum a mesma pessoa: o médico, sociólogo, educador, professor e cientista carioca Edgar Roquette-Pinto. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, por ele criada em 1923, tinha como objetivo difundir a educação e a cultura em todo o território nacional, pois entendia este veículo como “a escola de quem não tem escola”.
A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi a primeira emissora na América do Sul a transmitir uma ópera completa, a apresentar um programa de teatrinho infantil, a levar ao ar cursos de português, história, inglês, física, biologia e química, além de transmitir palestras sobre assuntos do momento e tocar música brasileira com regularidade. Apesar de sua importância e do compromisso com a educação, num país tão carente de iniciativas dessa ordem, uma série de determinações do governo federal passou a complicar a vida da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.
O decreto nº 16.657 de 5 de novembro de 1924 proibiu a inserção comercial nas suas transmissões. Até aí, tudo bem, porque a emissora sobrevivia graças à mensalidade paga por seus 300 filiados. No entanto, o crescimento da radiodifusão provocou o interesse de agências de publicidade norte-americanas em relação ao mercado consumidor brasileiro. Agências que vieram para cá acompanhando as empresas dos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra que aqui se instalavam. O enorme interesse das pessoas pelo rádio começou a ter efeitos também sobre os proprietários de jornais que identificaram o novo veículo como adequado para se ganhar dinheiro.
Um desses proprietários era Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo que, já possuindo sete jornais e uma revista, o Cruzeiro, inaugura, em 1935, no Rio de Janeiro, sua primeira emissora de rádio, a Tupi. Para viabilizar seu negócio, contou com recursos de empresas como a General Eletric e de patrocinadores, entre os quais estavam quase todos os milionários cariocas e paulistas. Chateaubriand passa a pressionar – e consegue – que o governo liberasse a publicidade nestas emissoras. Depois disso, o rádio brasileiro nunca mais voltou a dar ênfase à educação, com o próprio Roquette-Pinto entregando, no ano seguinte, numa atitude inédita, sua emissora para o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Ele não aceitava condicionar a programação aos interesses dos anunciantes e, sem outra forma para manter a rádio, uma vez que os assinantes minguavam, acreditava que nas mãos do governo ela poderia ter um futuro melhor.
Numa triste coincidência, mais de duas décadas depois, Roquette-Pinto vai se deparar novamente com Assis Chateaubriand, desta vez nos primórdios da televisão no Brasil. Como cientista Roquette-Pinto já vinha, desde 1940, pesquisando sobre a “oitava maravilha do mundo” e dispunha de todas as condições técnicas para colocar no ar uma emissora comprometida com a educação e a cultura. Já o empresário Chateaubriand, em 1943, é apresentado à tecnologia da televisão numa visita que faz aos Estados Unidos e imediatamente percebe que ali residia uma nova fórmula para ampliar seu poder e ganhar mais dinheiro.
Resumo da ópera: a televisão educativa sonhada e planejada por Roquette-Pinto, que já contava com o apoio e o financiamento da Prefeitura do Rio de Janeiro (então distrito federal), acabou, por pressões políticas, sendo inviabilizada, enquanto a emissora comercial de Chateaubriand foi inaugurada em 19 de setembro de 1950, em São Paulo. Ao contrário de outros países, a televisão comercial no Brasil nunca pensou seriamente em seu compromisso com a educação e menos ainda que foi e continua sendo uma das principais responsáveis pelo próprio iletramento vigente no país.
Iletramento e alienação
Os males do analfabetismo são conhecidos. Uma pessoa que não dispõe da “tecnologia” do ler e do escrever, não pode exercer em toda a plenitude os seus direitos de cidadão. O analfabeto é marginalizado e não tem acesso aos bens culturais das sociedades letradas. No entanto, existe, nos dias atuais, outra forma de analfabetismo tão ou mais grave, sobre a qual quase nada é dito. Trata-se do iletramento provocado pelos meios de comunicação, em especial os audiovisuais.
No campo acadêmico, estes estudos são denominados media literacy, que em português não tem tradução direta, pois a palavra letramento não existe nos dicionários da língua portuguesa. Razão pela qual, muitos preferem referir-se ao tema como sendo educação para a mídia. Seja como for, o certo é que letramento ou educação para a mídia significa que o indivíduo precisa de uma educação especial que o habilite a entender o conteúdo da mídia e o possibilite a formular sua própria opinião sobre os assuntos abordados.
O iletrado é o oposto disso. É o cidadão que não dispõe de recursos para compreender como a mídia funciona e, sobretudo, para relativizar o que lhe é mostrado. Até porque, a verdade/realidade para a mídia comercial, com as exceções de praxe, é quase sempre o que interessa aos seus proprietários e anunciantes.
Na Europa e nos Estados Unidos, onde este problema há muito foi detectado, a preocupação em evitar que o iletramento leve à alienação da sociedade está se transformando em prioridade para universidades, instituições de ensino e cidadãos. Nestes países, a mídia audiovisual é regulada e conta com o contraponto da mídia pública. Situação que torna a realidade brasileira mais grave ainda, a exigir das autoridades, dos Ministérios (Educação, Cultura e Comunicações), das escolas de ensino básico e fundamental, das universidades e dos setores mais sensíveis a esta temática um posicionamento imediato.
Que a mídia comercial brasileira nunca teve preocupação com a elevação do nível intelectual e de informação da população é fato. O problema é que este descompromisso está aumentando e a grande maioria não se dá conta disso. Quando se pensa em educação da população brasileira, pensa-se como há 50 ou 100 anos, quando a tarefa era função primordial da família, das igrejas e da escola. Hoje não é mais.
Midiotas
A mídia, em especial a televisão, transformou-se na arena por excelência do espaço público brasileiro. Presente em 98% dos lares, ela é também o principal meio de que dispõe a população para se informar e para entender o mundo em que vive. Quando a televisão deixa de lado esta tarefa e passa a mostrar uma realidade que não condiz com os fatos, não é preciso muito esforço para se avaliar os problemas daí decorrentes.
As novas tecnologias da comunicação, em especial a internet 2.0 com suas redes sociais, tem contribuído para minimizar os efeitos deseducativos da mídia comercial. Mas no Brasil, infelizmente, ainda se está longe de uma universalização do acesso a estas redes, o quê mantém e aprofunda a gravidade do quadro, em que a redução da leitura é apenas uma das pontas do iceberg.
Em outras palavras, fica mais fácil entender como diria o saudoso Stanislaw Ponte Preta, o febeapá dos dias atuais, com “indignados” reivindicando “intervenção militar constitucional” ou tendo como palavras de ordens difusos xingamentos e palavrões contra o governo. Os telejornais brasileiros (Jornal Nacional à frente) são os principais responsáveis pela desinformação que permeia a sociedade brasileira, pois ao mostrarem diariamente, sem qualquer contextualização e espaço para o contraditório, problemas diversos envolvendo, por exemplo, corrupção, acabam levando a população a acreditar que ela começou agora e é o inimigo número 1 do Brasil.
Mais ainda, a mídia tem sido, no Brasil, fonte de “soluções” conservadoras e reacionárias. Basta pensar nos Big Brothers, nos programas de auditório, com suas competições e jurados duvidosos, e nos programas policialescos, com o permanente estímulo ao se fazer “justiça com as próprias mãos”. Daí, não causar surpresa, que no início do século 21, existam aqui tantas pessoas acreditando que “vencer na vida é questão de puro mérito pessoal”, outras tantas pensando que “homossexualismo é doença”, e um contingente cada dia maior disposto a apoiar a redução da maioridade penal, como solução para a criminalidade.
Mesmo quando a televisão, através de algumas telenovelas, tenta abordar temas tabus (a exemplo do homossexualismo feminino) o faz de uma forma descontextualizada que passa longe de conseguir aprofundar, efetivamente, a questão. Isto porque esta temática, por exemplo, está ausente de outros programas de sua grade, sem falar que é apresentada para a população sem mediações. Situação que mostra como fazem falta, aqui, programas educativos como os da British Broadcasting Corporation (BBC), a TV Pública Inglesa, ou da Public Broadcasting System (PBS), a TV Pública norte-americana, ou mesmo da TV Nacional, a TV Pública argentina, em que estas e tantas outras temáticas são discutidas e aprofundadas através de documentários, mesas-redondas e até mesmo reality shows. Só que reality shows completamente diferentes dos que conhecemos.
A título de exemplo, um dos realities shows de maior sucesso na BBC, até recentemente, envolvia personalidades e gente comum e suas críticas ao consumismo e aos produtos nocivos e sem interesse para a comunidade. Uma celebridade ou uma pessoa simples jogar na fogueira um determinado refrigerante ou posicionar-se contra um novo modelo de celular é quase impensável no Brasil. Mas na Inglaterra, não.
Os debates presidenciais nos Estados Unidos são realizados e conduzidos pela PBS e seria inaceitável para a maioria da população que eles acontecessem nas emissoras comerciais e com regras impostas por elas, como se dá no Brasil. Mais ainda: na Argentina, a população tem na TV Nacional o contraponto à cobertura partidarizada que a mídia comercial faz de questões desde responsabilidades por violações aos direitos humanos e torturas durante o período de ditadura militar até recentes convênios de cooperação técnico-científica, assinados pela presidente Cristina Kirchner em viagens à China e à Rússia.
Enquanto isso, aqui no Brasil, a mídia comercial, numa unanimidade que Nelson Rodrigues já sabia ser burra, continua promovendo e contribuindo para o iletramento da população. Ou, como já bem definiu Luciano Martins Costa (aqui neste Observatório) para que no lugar de cidadãos tenhamos, cada vez mais, midiotas. Voltarei ao assunto.
Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade.
http://www.museudavida.
Edgard Roquette-Pinto
Um dos maiores defensores da radiodifusão educativa no Brasil, Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) teve importante papel na divulgação da ciência no início do século 20.
Formado pela Faculdade de Medicina, iniciou em 1906 sua carreira de professor na Seção de Antropologia, Etnografia e Arqueologia do Museu Nacional, de onde foi posteriormente diretor. No ano seguinte, incorporou-se à expedição Rondon, no Mato Grosso, e investigou os índios Pareci e Nhambiquara, publicando obra de grande interesse geográfico e etnológico. Foi também professor de História Natural e sempre atuante no campo da educação, tomando parte no movimento de renovação educacional no Brasil e assinando o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932.
À época em que ingressou no Museu Nacional, iniciou também duas atividades de divulgação científica, às quais deu prosseguimento ao longo de toda a carreira. Para isso, usou diferentes estratégias e meios de comunicação, como livros, exposições e até as novas tecnologias de sua época, o cinema e o rádio – além de criar bibliotecas e filmotecas, Roquette-Pinto produziu inúmeros programas de rádio e filmes educativos e de divulgação científica.
Foi um dos idealizadores da Sociedade Brasileira da Ciências (atual Academia Brasileira de Ciências), criada em 1916 com o objetivo de dedicar-se ao estudo e à propaganda das ciências no país. Nessa instituição, assumiu o posto de primeiro secretário da diretoria presidida por Henrique Morize, ao lado de Amoroso Costa no cargo de segundo secretário.
Roquette-Pinto também fez parte de um grupo de intelectuais e cientistas, atuantes no início do século 20, que tinham como propósito a valorização da pesquisa básica. Eram professores, cientistas, engenheiros, médicos e outros profissionais liberais ligados em geral às principais instituições científicas e educacionais do Rio de Janeiro. Neste grupo, tinha colegas como Miguel Ozorio de Almeida e seu irmão, Álvaro, Manoel Amoroso Costa, Henrique Morize, Juliano Moreira, Roberto Marinho de Azevedo, Edgard Süssekind de Mendonça, Lélio Gama, Teodoro Ramos, Francisco Venâncio Filho e outros.
Principais contribuições no campo da educação e divulgação das ciências
Primeiros passos - o Museu Nacional: Paralelamente às atividades propriamente científicas, Roquette-Pinto desenvolveu atividades de divulgação científica no museu – instituição que, para ele, deveria ter também caráter educativo. Como exemplo, podemos citar o documentário Os Nhambiquaras, de 1912, e a confecção dos Quadros didáticos de História Natural, para uso em sala de aula, em 1920, além da montagem de diversas exposições.
Educação nas ondas da rádio: Roquette-Pinto idealizou e participou ativamente da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada com o objetivo de difundir assuntos culturais e científicos.Os programas veiculavam, além de música e notícias, inúmeros cursos dos mais variados temas – do inglês à história do Brasil, passando pela química e pela literatura francesa. O divulgador também se dedicou à apresentação do programa Jornal da Manhã e à elaboração de textos para a Hora Infantil. Escreveu, ainda, inúmeros artigos sobre radiodifusão. Em 1934, criou a Rádio Escola Municipal do Rio de Janeiro, emissora que hoje leva seu nome.Como demonstram suas atividades, Roquette-Pinto acreditava que o rádio (como o cinema) teria papel fundamental na solução dos problemas educacionais no país: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”, declarou.
Publicações: Além dos livros de caráter mais técnico, como Rondônia (1917), Roquette-Pinto publicou livros de divulgação científica, começando com Conceito atual de vida (1922). Assinou também artigos de divulgação científica em várias publicações, como A Manhã, A Noite, Diário Carioca e Jornal do Brasil. Os temas incluíam não só a questão educativa e de radiodifusão, mas também a valorização do homem brasileiro, pesquisa básica, ciência e arte, literatura, populações indígenas e tendências da medicina moderna. Porém, escrever textos de divulgação não foi sua única contribuição para a área. O divulgador criou e editou revistas que permitiram aos cientistas escrever para o público leigo, como Radio – Revista de Divulgação Científica Geral, lançada em 1923, Electron, criada em 1926, e Revista Nacional de Educação, de 1932.
Educação em ciências no cinema: Desde que iniciou, em 1910, a filmoteca do Museu Nacional, Roquette-Pinto dedicou atenção especial ao cinema como meio de divulgação científica – um exemplo são os documentários da Comissão Rondon, em 1912. Dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) de 1936 a 1947, incentivando a participação de cientistas na elaboração dos filmes e a escolha de temáticas científicas e técnicas.
Fontes:
MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro: Algumas reflexões sobre a década de 20. Rio de Janeiro: IBICT e UFRJ, 1998. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Instituto Brasileiro de Informação em C&T e Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.
MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa; ARANHA, Jayme. “Roquette-Pinto e a divulgação científica”. In: LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda (orgs.). Antropologia Brasiliana – Ciência e educação na obra de Edgar Roquette-Pinto. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Editora UFMG / Editora Fiocruz, 2008.
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