sábado, 18 de abril de 2015

O racismo da literatura brasileira








Globo.com, 18/04/2015



Estudo sobre romances brasileiros aponta pequena presença de personagens negros



Por Leonardo Lichote
 
 
 
 “Um defeito de cor”, romance de Ana Maria Gonçalves, é exceção na literatura brasileira - Marcos Ramos/ 5-7-2007



RIO - Expostos na recém-concluída pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, realizada na Universidade de Brasília (UnB), sob coordenação da professora Regina Dalcastagnè, os números impressionam. O trabalho, um levantamento de todos os romances publicados por algumas das principais editoras brasileiras (Companhia das Letras, Record, Rocco e Objetiva/Alfaguara), aponta que 96% dos autores e 79% dos personagens são brancos.

A sociedade brasileira é racista. É o racismo que distorce nossas relações, que dificulta a presença, a visibilidade e a valorização dos negros em todas as instâncias de representação — avalia Dalcastagnè. — E a literatura pode reforçar, e mesmo legitimar, o discurso racista, replicando sua ideologia, vinculando as múltiplas experiências dos negros exclusivamente à violência e à criminalidade.

Mais que a ausência dos negros no romance brasileiro, portanto, a professora chama a atenção para a forma como eles aparecem nas obras (foram analisados 549 livros, de 304 autores diferentes). Há a repetição de papéis estereotipados, o pouco destaque (“são muito mais coadjuvantes que protagonistas”) e a raríssima ocorrência de negros narradores (as personagens não têm, assim, “a possibilidade de dizer sobre o mundo que as cerca”, explica Dalcastagnè).

O problema não é termos personagens negras que são bandidos, drogados etc., o problema é que essas sejam praticamente as únicas possibilidades de existência dentro de um conjunto imenso de representações literárias. É nesse conjunto que os negros, e ainda mais as mulheres negras, são invisibilizados ou estereotipados — ressalta. — O que nossas pesquisas vêm constatando é que falta à literatura brasileira contemporânea, como os números do levantamento sobre os romances indicam de maneira eloquente, incorporar as vivências, os dramas, as opressões, mas também as fantasias, as esperanças e as utopias dos grupos sociais marginalizados, sejam eles definidos por classe, por sexo, por raça e cor, por orientação sexual ou por qualquer outro critério.


PROBLEMA DE REPRESENTAÇÃO

A presença limitada de personagens negros na literatura brasileira acaba gerando um problema de representação — retirando dela as nuances e reforçando os estereótipos.

— Como são tão poucas, elas acabam se tornando, quando aparecem, não apenas indivíduos possíveis, mas representantes de um grupo inteiro — nota a professora. — Isso não acontece com as personagens brancas, especialmente as masculinas, que são tantas e tão variadas que se constituem sempre, cada uma delas, como “únicas”. O branco criminoso ou viciado está ao lado do branco médico, do branco escritor, do branco comerciante. Já as personagens negras não têm essa variedade, sendo fixadas em poucas ocupações: são os traficantes, as empregadas domésticas e prostitutas. Essa é a estereotipagem (que se revela em outros dados, como o que mostra quatro vezes mais ocorrência de dependência química entre personagens negros, em comparação aos brancos).

Questões de raça e gênero se cruzam no levantamento, como Dalcastagnè deixa transparecer em sua fala sobre as mulheres negras. A pesquisa — cuja primeira fase cobriu entre 1990 e 2004, e já havia sido apresentada — mostra que 71% dos escritores e 60% dos personagens são homens. Economicamente, 80% pertencem às camadas privilegiadas.

Nossa literatura, de um modo geral, é produzida por e destinada à classe média. E a classe média brasileira, que é branca e embranquecida, não olha para os negros, não se interessa por eles, não os imagina, não cede espaço para eles, não fala deles, a menos que eles estejam apontando uma arma para suas cabeças, ou ameaçando suas vagas nos bancos universitários, com a adoção de cotas.


CONCEIÇÃO EVARISTO E ANA MARIA GONÇALVES SE DESTACAM

Num cenário no qual a representação do negro é reduzida a padrões carentes de complexidade, Dalcastagnè destaca dois romances por suas “diferentes opções de enfrentar a ausência da personagem negra em nossa literatura”: “Um defeito de cor” (Record), de Ana Maria Gonçalves, e “Becos da memória” (Pallas/Mulheres), de Conceição Evaristo:

— O primeiro está no corpus da minha pesquisa. O segundo não — esclarece, por e-mail. — O fardo carregado pelas personagens negras a que me referia antes é, sem dúvida, compartilhado pelos/as seus autores/as, muitos/as deles/as negros/as também. Afinal, há sempre uma tensão presente nesse processo, um conjunto de escolhas e decisões que não abala, pelo menos não necessariamente, o autor de personagens brancas. Para começar, ele/a precisa se contrapor a representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafirmar a legitimidade de sua própria construção. Assim, tem de fazer uma série de opções que, além de estéticas, são também políticas. Ana Maria Gonçalves optou por construir uma heroína épica, uma escrava que consegue sua própria liberdade e volta à África, depois de ter acompanhando a luta de seu povo pela liberdade. Já Conceição Evaristo, que também fala de escravidão, vai diluir a história dessa luta em mais de uma dezena de personagens, dando o protagonismo do romance às experiências dos negros e negras de uma favela.
 
 
 

 
 




Globo.com, 18/04/2015




Novo romance de Nei Lopes resgata movimento negro no Brasil da década de 1950



Por Bolívar Torres
 
 
 
 
RIO - Fincado em uma travessa obscura da Esplanada do Castelo, o Café e Bar Rio Negro foi o reduto da negritude carioca, aquela “dos poetas africanos e antilhanos de fala francesa”. Era lá que artistas e intelectuais negros se reuniam para discutir os rumos da política e da sociedade nos anos 1950. Entre duas rodadas de chope gelado, uísque escocês e sanduíche de pernil assado, seus frequentadores construíam um espaço de resistência em um Centro da cidade cada vez mais branco e elitizado.

Embora apareça em detalhes nas páginas de Rio Negro, 50”, novo romance de Nei Lopes (dá quase para sentir o cheiro de pernil assado dominando o ar), a casa nunca existiu na vida real. Trata-se de um espaço fictício, criado pelo escritor e compositor para resgatar uma história esquecida: a da consolidação do movimento negro no Brasil — esta, sim, verídica. Autoridade nas questões afro-brasileiras, o autor faz um apanhado da efervescência dos anos 50, década decisiva no reconhecimento da contribuição do negro à cultura do país.

Misturando ficção e pesquisa histórica, personagens reais e imaginários, o romance tem como pano de fundo as ricas manifestações do período, como a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura, os desafios do partido-alto e o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento. Episódios marcantes — como a assinatura da Lei Afonso Arinos, primeiro código brasileiro a incluir o preconceito de raça entre as contravenções penais — são passados a limpo pela clientela do Rio Negro, composta por um dramaturgo militante (baseado no icônico Abdias), um jornalista pesquisador das tradições afro-brasileiras e um sempre atento vendedor de amendoim, que faz a ligação com outro estabelecimento colored do centro da cidade, o Abará, frequentado pela turma do futebol e das boates.

Enquanto o povo, indignado pela derrota na final da Copa, procura clones do jogador Bigode para linchar, os personagens debatem a repressão ao candomblé (uma “religião feita pelo povo e para o povo”), a profissionalização das escolas de samba (uma “violência” à identidade do negro), ou ainda o surgimento do Renascença Clube, associação recreativa da classe média negra.

Carioca do Irajá, Lopes vem consolidando uma trajetória literária desde os anos 80. É também reconhecido como pesquisador da presença das línguas africanas na formação do português falado no Brasil. Um dos principais sambistas do país, compôs a trilha de “Bilac vê estrelas”, atualmente em cartaz. Baseado no livro de Ruy Castro, o musical revive o Rio da Belle Époque, marcado pelas reformas urbanísticas de Pereira Passos e a amizade entre o poeta Olavo Bilac e o jornalista José do Patrocínio.


Seus romances mostram a história do país do ponto de vista do povo negro. Em “Rio Negro, 50”, o senhor decidiu focar nos intelectuais e artistas da década de 50. Por quê?

Porque foi a década em que aflorou o protagonismo do povo negro na cultura brasileira, em quase todos os setores, da religiosidade ao teatro musicado, passando pelo rádio, pela aglutinação política, sem falar no futebol e outros esportes. Tudo o que aconteceu nessa década repercutiu depois, apesar do recrudescimento da subserviência aos padrões ditos “globalizados” que veio com a década de 1970.


Como poderíamos definir esse movimento?

Como um eco tardio do que ocorrera na França nos anos de 1910-20 e no Harlem nova-iorquino até a década de 40. Começou-se a pensar a vida dos negros a partir de uma perspectiva própria, incentivando-se o orgulho pelas nossas peculiaridades e pela nossa História.


Em um determinado momento do livro, o senhor narra a visita da antropóloga americana Katherine Dunham ao Rio e a sua decepção com o racismo no país. Quais eram as ligações entre o movimento negro dos Estados Unidos e o brasileiro?

Katherine foi uma panafricanista, como outros artistas da Diáspora africana. Ela, artista e cientista social, pesquisou e atuou em seu país, no Caribe e no Brasil sempre dentro dessa perspectiva. Abdias Nascimento foi o grande elo dessa corrente panafricanista no Brasil. Mas havia outros, como Guerreiro Ramos, Sebastião Rodrigues Alves, Edison Carneiro, Ironides Rodrigues etc, além dos militantes de São Paulo, que vinham dos anos 30, época da Frente Negra Brasileira. Foi um tempo de grande articulação internacional.

No romance, os personagens tentam criar ambientes de resistência na cidade. É o caso do fictício Café Rio Negro, infiltrado em uma zona elitizada. A exclusão também passa por uma questão geográfica — os personagens precisam adaptar sua cultura a um espaço que lhes é hostil...

O aspecto mais emblemático sobre esse ponto é a fundação do Clube Renascença, em 1951. Buscava-se criar um espaço sócio-recreativo para a classe média negra que se estruturava, e que era proibida de ingressar nos clubes de sua classe econômica. Hoje o Renascença, apesar do esforço de fazer efetivamente “cultura” no sentido transformador da palavra, só é visto como uma casa “de samba”. E isso não é nada bom.


Esse tipo de redução continua sendo comum?

Isso acontece em razão dos mesmos mecanismos que negam ao samba sua condição de elemento fundamental e definidor da cultura musical brasileira, colocando-o sempre no gueto espaço-temporal do carnaval. Dentro dessa engrenagem perversa, que obedece inclusive às regras da cultura de mercado, um clube “de negros”, como é ainda o perfil do Renascença, é mais aceitável como uma casa de samba (carnavalesca, enfim), jamais como uma “casa de cultura”, onde se pense as questões do povo afro. Felizmente, no nosso “Rena”, ainda tem gente trabalhando para fazer valer, lá, esta condição, como é o caso do produtor Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, dono de acervo filmográfico de valor inestimável, exibido em sessões semanais no clube, para um público que não é necessariamente o das rodas de samba.


O romance retrata o momento em que “os pretos e mulatos começam a reivindicar melhor posição no conjunto da sociedade”. Como analisa a evolução desse movimento, 60 anos depois?

No meu entender, a política partidária atrapalhou e continua atrapalhando muito. Ela criou conselhos, assessorias etc, para a participação do povo negro na política. E, com isso, acomodou a situação de exclusão e dificultou a expansão da consciência dos afrodescendentes sobre seus interesses específicos, que precisam ser defendidos de verdade, a sério, em todas as instâncias legislativas, em todo o território nacional, nas cidades e no campo. Temos que ser representados na proporção exata de nossa presença na população brasileira, por parlamentares que trabalhem por nossos direitos com dedicação exclusiva. Mas diante do que se vê hoje...


Como vê a permanência da cultura negra atualmente? O samba e as religiões africanas, por exemplo, estão ameaçados no Brasil contemporâneo?

A ameaça chega a ser sinistra. Quem vive nas periferias das grandes cidades sabe do que estou falando. E essa ameaça vem ganhando um poder cada vez maior, de maneira assustadora. E sendo legitimada pelos poderes constituídos.


Que ameaça seria essa?

A ameaça tem vindo das chamadas “igrejas eletrônicas”, donas de poderosas concessões de radiodifusão, que demonizam a cultura afrobrasileira de todas as formas. E isso volta e meia tem sido noticiado pela grande imprensa. Outra pedra no caminho é a “cultura negra sem negros”, gerada no âmbito da indústria cultural, do marketing, dos patrocínios...


Um aspecto importante de sua obra é mostrar o protagonismo do negro na história do país e da literatura. Pesquisas mostram, porém, que a literatura brasileira, pelo menos nas grandes editoras, ainda é predominantemente branca — por seus temas, personagens e autores. Como mudar essa situação?

Para mim, a grande questão da literatura, como de outros segmentos da ação cultural, são as relações que se tecem ao longo da vida. O escritor afrodescendente quase nunca é bem relacionado nos meios de produção editorial e no seu entorno, e assim raramente consegue mostrar o seu trabalho. De modo geral, ele, seus avós ou seus pais não estudaram nas mesmas escolas que as pessoas hoje influentes, ou seus pais e avós frequentaram. E este é apenas um exemplo. A sociedade brasileira continua extremamente estratificada e fechada: a entrada nos círculos de poder e decisão é muito difícil para o povo negro. E, para boa parte desse círculo, o que se espera sair da pena de um escritor afrodescendente é o espetáculo da miséria, da violência, da exclusão. Exatamente para que cada um fique “no seu lugar”. Eu sei que o nosso povo tem uma outra História e outras histórias. E eu seria um idiota se desprezasse toda essa grande experiência que está sendo a minha vida, todo esse imenso patrimônio que me foi legado.

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​Globo.com, 18/04/2015



Obra de Nei Lopes é fundamental para se pensar o país e a sua História



Por Ueliton Farias Alves*


RIO - Se há um termo malandro para definir Nei Lopes, este termo é “catigoria”, bem ao estilo baiano-carioca, como ouvi de um amigo baiano, Dino Coutinho, tio de Philippe — o da Seleção, do Liverpool etc. Pois bem. Nei Lopes é uma surpresa a cada ano. Nos força a cuidar do coração e do espírito. De compositor de sucessos, como o antológico “Senhora Liberdade” (parceria com Wilson Moreira), transformou-se também num escritor surpreendente e versátil.

Quem já o conhecia, acharia que ele fosse estacionar no campo do ensaio literário ou dos estudos acadêmicos, mas o advogado de Irajá se bandeou de vez para o lado da literatura e publicou o excelente “Bantos, malês e identidade negra”(1988). O escritor, entretanto, continuou a mergulhar cada vez mais fundo na história e cultura negras, do Brasil e de além oceano. Com isto, nos deu os alentados “Novo Dicionário Banto do Brasil” e a “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”.


ESCULTOR DE PERSONAGENS

Porém, como tomou gosto pela ficção, a cada ano aparece um rebento, cheio de vigor e “causos” para tagarelar sobre o glorioso passado, em tom de testemunho, de relato, de quem tem, isto sim, rico conhecimento na veia. Nasceram, portanto, robustos romances:Mandingas da mulata-velha na Cidade Nova”, “Esta árvore dourada que supomos” e “A lua triste descamba, além dos esplêndidosVinte contos & uns trocados”. Nei Lopes escreveu ainda livros infantis e poesias, a destacar, nessa área, o mais recente PoÉtnica.

Agora ele nos brinda com “Rio Negro, 50”, romance ambientado em meados do século passado, e que carrega em si uma grande carga emocional do ponto de vista do lugar do negro na sociedade brasileira. Neste quesito, Lopes é mestre, ou melhor, doutor, como comprovam suas numerosas obras anteriores. Mas em “Rio Negro, 50”, além de destacar os afrodescendentes nas áreas da música e do conhecimento, o autor nos faz ter a perfeita noção, como ele mesmo diz, da “retomada, no Brasil, de um movimento de reconhecimento da contribuição do negro à vida cultural brasileira”, ecoando, após a Era Vargas, em um período de liberação e grande efervescência. Figuras como a de Mercedes Batista, Abdias Nascimento, Carmen Costa, Ângela Maria, Haroldo Costa, Lea Garcia, Ruth de Souza estavam em voga nesta época.

É também quando surgem as organizações políticas da chamada “gente de cor” (como se dizia), tristemente abafadas durante o Estado Novo. E outras, igualmente importantes, como o Teatro Experimental do Negro, o Renascença Clube, bem como a União dos Homens de Cor. É um período sumamente importante, crucial para a identidade da nação, que serve de leit motiv para Nei Lopes. Ele “esculpe” personagens, dá visibilidade e postura existencial a uma era que se encontra hoje apenas no passado.

Ao transpor em narrativas, através do romance, temas caros e relevantes como esses, Lopes torna a leitura de sua obra fundamental para se pensar no país e a sua História. Ou seja, “Rio Negro, 50” é desses romances essenciais para ser lido por toda e qualquer geração: de hoje e da antiga, pois trata, com refinado humor e picardia, de temas cruciantes como racismo, preconceito racial, movimentos sociais que mudaram o eixo da política brasileira, cujo reflexo nos alcança até hoje.

É uma viagem imperdível, ainda mais com os decassílabos perfeitos do poeta Cruz e Sousa (1861-98), que vão costurando cada capítulo do romance. Só mesmo Nei Lopes para fazer isso.


*Uelinton Farias Alves é professor, jornalista e escritor, autor de “José do Patrocínio: a imorredoura cor de bronze” (Garamond)
 

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