terça-feira, 14 de abril de 2015

A hipocrisia como critério de noticiabilidade

 
 
 




Observatório da Imprensa, 14 de abril de 2015




A hipocrisia como critério de noticiabilidade



Por Francisco José Castilhos Karam 



O Código de Ética da Associação Nacional de Jornais garante: “Apurar e publicar a verdade dos fatos de interesse público, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer interesses” (da ANJ são sócios muitos jornais, entre eles O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Diário Catarinense e Zero Hora). O Código de Ética da Associação Nacional de Editores de Revistas determina: “Assegurar ao leitor as diferentes versões de um fato e as diversas tendências de opinião da sociedade sobre esse fato” (da ANER são sócias, entre muitas, a revista Veja). A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão subscreve a Declaração de Chapultepec, que assegura: “A credibilidade da imprensa está ligada ao compromisso com a verdade, à busca de precisão, imparcialidade e equidade e à clara diferenciação entre as mensagens jornalísticas e as comerciais.” (da Abert são sócias, entre muitas, a TV Globo e a Rede Brasil Sul de Comunicações, esta última essencialmente representada pela RBS TV tanto de Santa Catarina como do Rio Grande do Sul).

O silêncio em relação à Operação Zelotes, com fraudes e sonegação que envolvem 19 bilhões de reais junto à Receita Federal, dos quais 672 milhões de reais dizem respeito à sonegação do grupo de comunicações RBS (Rede Brasil Sul) , não é resultado apenas de restrições jurídicas, mas sobretudo do interesse particular e do cinismo que envolve praticamente todos os grandes veículos, seja de mídia impressa, de radiodifusão ou de suas versões na internet – hoje sócios de empresas de telefonia, de bancos e até mesmo do setor armamentista. No caso da Operação Zelotes, o Banco Santander é o maior sonegador, com mais de 3 bilhões de reais. O Grupo RBS, o sétimo na lista, além da sonegação, teria pago propina que chega a 15 milhões de reais para “abonar” outros 150 milhões. Um lucro e tanto no suborno. A distância entre intenção e gesto, entre discurso e prática, é enorme. E aproxima a falsa intenção do gesto; aproxima o discurso moral do cinismo e da hipocrisia.

Se nos últimos 300 anos os pilares do Jornalismo foram a legitimidade social que granjeou e a credibilidade em que presumivelmente se assentava, os rumos da atividade profissional – menos por vontade de seus jornalistas e mais por imposição dos aspectos mercadológicos e ideológicos sobre o processo de produção jornalística – apontam a perda da crença de que a imprensa, como instituição da modernidade, tem algo ainda a ver com o esclarecimento público.


Exceções à regra

Os “dois pesos e duas medidas” na comparação Operação Lava Jato e Operação Zelotes atestam que, se havia ainda alguma vergonha em defender interesses pessoais, em defender o bolso dos empresários da comunicação, ela foi pelo ralo. Junto está indo o patrimônio moral de vários profissionais. Obviamente, não é possível generalizar, mas parte dos repórteres, colunistas, comentaristas e apresentadores incorporaram de tal forma a defesa de seu emprego e de seu patrão que é cada vez mais ilustrativa a charge de Henfil, publicada em 1989 na capa do livro 'Jornalistas pra quê? Os profissionais diante da ética, produzido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro'. A imagem representava Cristo sendo crucificado e o soldado que o pregava na cruz se desculpando: “Eu tenho que sobreviver, entende?”

Pode-se sobreviver, mas o respeito vai se reduzindo a pó; pode-se defender o bolso do patrão, mas a legitimidade da atividade profissional se reduz à medida em que cresce a desconfiança com uma forma de fazer jornalismo em que fatos são o que menos importam, já que o lucro vem da audiência, da venda de outros produtos conexos e do valor de mercado informativo baseado na especulação e na escolha cirúrgica de determinadas fontes.

Se o mesmo critério jornalístico de cobertura da Operação Lava Jato fosse aplicado na Operação Zelotes, a repercussão seria outra e mostraria os danos da sonegação à saúde, à educação e à vida dos cidadãos, destacando o assalto aos cofres públicos e o sangramento do Estado a partir do lucro particular desonesto. Se o critério jornalístico, policial e jurídico fosse o mesmo, dirigentes do Banco Santander e do Grupo RBS estariam provavelmente na cadeia.

Ao analisar a mídia, o pesquisador holandês Teun Adrianus van Dijk já tinha constatado uma velha estratégia que se aplica ao cenário de cobertura jornalística atual a partir dos centros de decisão das empresas de mídia, pelo menos na Política e na Economia: “1) as virtudes dos amigos nós maximizamos; 2) as virtudes dos inimigos nós minimizamos; 3) os defeitos dos amigos nós minimizamos; 4) os defeitos dos inimigos nós maximizamos”.

A síntese de Teun van Dijk cabe tranquilamente em uma cobertura tendenciosa, de uma moral particular, de um cinismo exacerbado. Exceções, como a de Janio de Freitas, da Folha de S. Paulo, com sua honestidade e correção, confirmam a regra. Conta-se nos dedos, na grande mídia hegemônica (grandes empresas com rádio, tevê, jornal, revista e internet) os jornalistas que ainda apuram e informam com os requisitos éticos, técnicos e estéticos pelos quais a profissão obteve certo reconhecimento social.


Sem resposta

O cinismo, transformado em valor habitual, amplia a hipocrisia como valor universal. E ajuda a disseminar a má informação, a confusão informativa, a ideia de que jornalistas não servem senão para fazer propaganda travestida de jornalismo, e que, a despeito dos fatos, a angulação e a narrativa final são dadas pelos centros do poder econômico, pelas fontes beneficiárias de tal poder, pelos acionistas e pelos anunciantes. Há, com tal perspectiva, claros prejuízos ao esclarecimento público; aumentam os preconceitos e os estereótipos. E preconceitos e estereótipos são o suporte valorativo que dão margem ao linchamento moral generalizado e eventualmente físico.

O jornalismo como esclarecimento precisa se reinventar com novas fontes, novas abordagens, novos atores e novas narrativas. Ele parece passar à margem da grande mídia. E é aí que entra o Estado como protetor da Democracia. E, até agora, o Estado não consegue apostar no surgimento de novas mídias; não consegue investir em meios públicos e alternativos qualificados e em mídias menores mas mais honestas, ao invés de descarregar muito dinheiro em publicidade na grande mídia e despejar dinheiro público para socorrer poderosas mídias endividadas. O Estado, representado pelo governo eleito, não consegue responder aos ataques do jornalismo que tem a hipocrisia como critério de noticiabilidade e o cinismo como valor universal.



Francisco José Castilhos Karam é professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS

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