quarta-feira, 1 de abril de 2015

França resiste à 'americanização' da saúde







Carta Maior, 01/04/2015




França resiste à 'americanização' da saúde



Leneide Duarte-Plon, de Paris





Um dos alvos preferidos da insatisfação dos franceses, o peso dos impostos é recorrente nas conversas. Entre os mais afortunados, muitos buscam refúgio na vizinha Suíça, não exatamente pela beleza das montanhas e lagos, mas para ficar ao abrigo do fisco francês. Outros atravessam a fronteira belga e elegem o reino vizinho como domicílio fiscal para pagar menos impostos.
 
O que esses ricos individualistas não consideram é que os impostos de todos os cidadãos franceses são responsáveis (juntamente com as cotizações sociais) pelo excelente e elogiado sistema público de saúde francês, considerado pela OMS em seu relatório do ano 2000 como o melhor do mundo. Apesar da crise, ainda hoje ele é um dos melhores do planeta. Os impostos financiam a saúde e a pesquisa em todos os níveis e especialidades. Não é por acaso que a França detém 13 prêmios Nobel de fisiologia e medicina.
 
O cidadão que vive a « democracia sanitária » da França sabe onde foi parar o dinheiro de seus impostos. Quando precisa de tratamento médico, tem à disposição médicos de alto nível em hospitais públicos de excelência, sem pagar um único euro, o francês não imagina o que é viver sem esse direito. O conceito de democracia sanitária é o dever do Estado de garantir a igualdade de acesso de todos aos tratamentos de que cada cidadão tem necessidade.
 
Nesta terça-feira, dia 31 de março, os deputados começaram a discutir uma nova lei de saúde com diversas modificações para aperfeiçoar o acesso ao tratamento e garantir a prevenção de doenças. O Parlamento terá duas semanas para debater e aprovar a nova lei defendida pela ministra da Saúde Marisol Touraine, que a considera « uma lei de esquerda ». Entre outras coisas, porque vai melhorar o acesso aos médicos já que o paciente não vai mais adiantar o pagamento do médico para receber o reembolso em sua conta corrente, como atualmente.
 
Muitas pessoas tinham dificuldade de adiantar esse pagamento. Com a nova lei, a Sécurité Sociale é quem pagará o valor da consulta aos médicos, como antes, sem que o paciente tenha que adiantar o pagamento na hora da consulta. Atualmente, nas farmácias, o paciente munido de uma receita e de sua carteira chamada Carte Vitale tem seus remédios de graça. A maioria dos remédios é 100%  reembolsada pela Sécurité Sociale. Isso não mudará.
 
No dia seguinte, 1° de abril, os senadores promoveram um debate sobre a saúde. O título indagava : « A França tem ainda o melhor sistema de saúde do mundo? ».
 
O serviço público de saúde garante o acesso aos cuidados médicos e hospitalares de todas as pessoas doentes, independentemente da situação social. « Isso é um dever e um orgulho », assegura o documento que apresenta o sistema público dos Hospitais de Paris (Assistance Publique-Hôpitaux de Paris- AP-HP) que engloba 38 grandes hospitais da região parisiense, onde se trata o político, o escritor, o médico, o professor, o editor, o operário, o garçom, o gari ou a faxineira.
 
Nada mais democrático na França que o hospital público, puro produto da Revolução de 1789, que escolheu como divisa três palavras que rimam e garantem a igualdade dos cidadãos : « Liberté, égalité, fraternité ».
 
Quando a princesa Diana e seu namorado Mohammed Al-Fayed sofreram um grave acidente de automóvel em 1997, foi para o Hôpital Universitaire Pitié-Salpêtrière, público, que foram levados e não para um hospital privado. O La Salpêtrière é um centro médico com dezenas de prédios, verdadeiro bairro dentro do 13e arrondissement, com centros de referência nacional de diversas especialidades médicas. Foi para lá também que foi levado o escritor Roland Barthes quando uma camionete o atropelou em 1980. E foi no La Salpêtrière que Michel Foucault morreu em 1984.
 
 
 
La Salpêtrière

 
Nos hospitais públicos franceses se tratam e morrem personagens ilustres, políticos ou filósofos como Jean-Paul Sartre e Jacques Derrida.  
 
« A medicina francesa é de grande qualidade. Ela é a única alternativa credível à americanização da medicina mundial », assegura Jean de Kervasdoué, economista e especialista da gestão dos hospitais públicos franceses. Segundo ele, os cirurgiões, os clínicos gerais, a organização das emergências (SAMU) e a organização da psiquiatria da França são referência mundial.
 
E, apesar da crise, a saúde pública francesa continua saudável. Quem garante é a OCDE (Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento), que reúne os principais países desenvolvidos. Entre eles, a França é o terceiro país no nível de despesas de saúde em relação ao PIB (11,6% do PIB contra 9,3% em média para os outros países da OCDE).
 
Segundo um relatório oficial do Ministério de Saúde, de fevereiro deste ano, se a França estivesse deitada para exame de sua saúde, o médico lhe daria uma ótima nota. A igualdade de direito a tratamento e serviços médicos é assegurada como um princípio republicano.
 
Mas, obviamente, as disparidades sociais são responsáveis por uma desigualdade no quesito longevidade. O nível de estudos e a posição social favorece na hora de riscos de determinadas doenças. Algumas profissões são mais expostas que outras a doenças mortais. Sabe-se que quanto mais se sobe na escala social menos se corre risco de contrair determinadas enfermidades. Existe um estudo que mostrou que há uma distância de até 35 anos na esperança de vida de executivos e de operários. No nascimento, as desigualdades sociais também se revelam: quanto mais precária é a situação da mãe, maior risco de pequeno peso do bebê e maior risco de problemas de obesidade na infância.
 
A democracia sanitária não resolve todos os problemas das desigualdades de classe.
 

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