terça-feira, 21 de abril de 2015

Marcha, palhaço




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Folha.com, 21 de abril de 2015


Minha História - Ubirajara dos Santos, 49

Marcha, palhaço


 
Olívia Freitas - Enviada especial a Porto Príncipe (Haiti)
 
 
 
 
O sargento gaúcho Ubirajara dos Santos, 49, chegou ao Haiti em 2007, numa fase de violência crítica, para trabalhar na engenharia do batalhão brasileiro da missão da ONU. Além de realizar serviços militares, transformou-se no palhaço Tampico e passou a visitar crianças do país, o mais pobre das Américas. Hoje, está na sua terceira e última missão no Haiti, que foi devastado por um terremoto em 2010.

Era para eu ser marinheiro. Fui me alistar na Marinha, em Porto Alegre (RS), mas perdi o prazo. Então, me alistei no Exército, em 1984.
 
Fiquei como recruta, fui soldado, fiz um curso e saí cabo em 1984. Passou o tempo, fui permanecendo no Exército e me tornei sargento.
 
Em 2007, me inscrevi como voluntário para ir à Minustah [nome da missão da ONU] e fui classificado. Era a época do término da tomada da região de Cité Soleil [área perigosa na capital, Porto Príncipe], o Haiti estava meio rebelde, tinha muito protesto.
 
Sempre fui o palhaço da família, que ficava fazendo diversão em casa. Em Santa Maria [RS], no preparo para ir ao Haiti, conheci dois militares que também eram meio palhaços. Então, nos juntamos para fazer alguma coisa diferente para o pessoal na base não ficar tenso.
 
Montamos um grupo de teatro. Dessa brincadeira, nasceu a ideia de atuar para as crianças haitianas.
Era o chefe do pelotão de obras da engenharia. Havia 38 haitianos para trabalhar comigo como pedreiro, soldador, marceneiro, encanador e carpinteiro.
 
Recebíamos missões da ONU para trabalhar em reconstrução de creches, manutenção de casas e distribuição de água e comida e fazíamos ações cívico-sociais.
 
A primeira vez em que levamos o teatro às ruas foi em Cité Soleil, considerada pela ONU um dos lugares mais violentos do mundo. Não tive medo. Era estranho porque estávamos indo para um lugar perigoso. Mas, claro, estávamos com uma equipe de apoio e segurança.
 
Chegando lá, a transformação começou na rua mesmo: vestimos a roupa e um pintou o outro.
Fui pintado de palhaço Tampico. Esse apelido pegou.
 
Subimos no palco e havia mais ou menos 90 pessoas na plateia. Começaram a vir mais, meio desconfiadas.
Fomos com colete à prova de balas, mas notamos nos semblantes dos haitianos que estavam nos estranhando. E nós não estávamos à vontade. Chamamos o pessoal da segurança, tiramos o colete e fomos para o meio deles. Então, as crianças começaram a nos rodear, abraçar.
 
Cantávamos em creole [língua local, derivada do francês] e dançávamos música típica haitiana com os adultos e crianças. Quando a gente viu, tinha quase 800 pessoas. Eu parecia um artista. Me sentia bem e sentia que estávamos fazendo o bem para eles também.
 
Via uma alegria diferente neles. Apesar de ser um país cheio de problemas, não dá para fugir da realidade. É um povo sofrido, mas com sorriso no rosto.
 
Levamos mais de 1.500 "quentinhas" e água para eles. As crianças receberam cadernos, lápis, bolas e brinquedos. Eu ganhei meu dia. A vida muda.
 
Começamos a ir todos os sábados a uma creche vestidos de palhaço. As crianças já me reconheciam.

TRAGÉDIA
 
Voltei para casa [no fim da missão] e ficava pensando: nunca vivi nada comparável, mesmo na pacificação da Maré [favela no Rio de Janeiro].
 
Retornei em 2010, quando o país estava no chão por causa do terremoto [220 mil morreram]. Integrei o batalhão de emergência brasileiro.
 
Voltei preparado para levar um tiro, tirar corpos, doentes, ver gente mutilada. Mas também vim para trazer sorrisos e distribuir comida.
 
Também fiz reconstrução de creches e casas, retirei entulho. Não havia mais corpos, mas o cheiro ainda era forte. Foram sete meses nesse ritmo. Tampico teve que trabalhar bastante. Havia muitas crianças órfãs.
Para o batalhão brasileiro, é muito importante ter essa relação com os haitianos, saber do dia a dia, o que está acontecendo.
 
É uma estratégia. O povo se abrindo conosco e nós com eles. Eles são muito carentes de carinho, de conversar.
 
Saí daqui com um país arrasado. Quis voltar para rever meus amigos haitianos, não sei se um dia vou encontrá-los novamente.
 
Não sei se é boa ou não a redução das ações humanitárias. O que temo é a volta da criminalidade.
 
Tampico e meus amigos palhaços vão se reunir no Brasil para visitar as comunidades pobres.
 
Agora no final de junho eu me aposento [da missão do Haiti], encerrando com chave de ouro. Aprendi no Haiti que não é preciso ter muita coisa para ter tudo. Aqui, a nossa vida muda.


A repórter OLÍVIA FREITAS e o fotojornalista JOEL SILVA viajaram a convite do Ministério da Defesa

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