quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Neocolonialismo escancarado




Neocolonialismo escancarado

 

Por Manuel Domingos Neto*

 
No caso da Líbia, salvo vazamentos sensacionais, decorrerão anos até que tenhamos acesso à “verdade efetiva das coisas”, para usar Maquiavel. Mas, por entre a névoa da desinformação, olhares atentos, como o de Iraê Baptista Lundin, do Instituto Superior de Relações Internacionais de Moçambique, e o de Domenico Losurdo, da Universidade de Urbino, logo vislumbraram a impossibilidade de comparar a carnificina na Líbia com a dita “primavera árabe”.

Os manifestantes egípcios e tunisianos foram às ruas sem armas; reclamavam mudanças, mas não se envolveram na disputa pelo poder nem se articularam com potências estrangeiras. Já os “rebeldes” líbios despontaram na Cirenaica em 17 de fevereiro com metralhadoras nas mãos movendo-se em numerosas viaturas rumo a Trípoli.

No Egito e na Tunísia, governos desgastados foram surpreendidos por movimentos espontâneos de jovens sem perspectiva de melhoria de vida. Ora, o mapa do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU atribui à Líbia, em 2010, a pontuação 0,755, perto dos países do sul da Europa e em situação mais favorável que o México (0,750) e o Brasil (0,699). Se tal índice não revela a concentração da renda, serve para demonstrar que Kadafi não governou durante décadas com base apenas na repressão, mas procurou equilibrar a partilha dos dividendos do petróleo de sorte a contemplar os interesses de tribos e regiões.

O índice de esperança de vida na Líbia é de 74 anos, superior, portanto, a do Brasil (72,4). Já a mortalidade infantil é maior no Brasil do que na Líbia. Mais de 30% do orçamento líbio é dedicado à educação e as condições de moradia do país foram elogiadas pela ONU. Se não há dados confiáveis sobre a concentração da renda, caberia lembrar que relatos de pobreza extrema, comuns na África e na América Latina, são desconhecidos no panorama líbio; tampouco há descrições de extrema concentração de riqueza, comum nos países produtores de petróleo.

Os jovens líbios têm oportunidades de estudo quase desconhecidas no continente africano. Cerca de 85% da população da Líbia é alfabetizada e, para um total de 6,5 milhões de pessoas, há nada menos do que 12 universidades públicas. Aos que podem arguir que os índices socioeconômicos são possíveis devido à receita do petróleo, seria o caso de lembrar que o Barein, um conjunto de ilhotas que representa um terço do território de Sergipe, registra um PIB per capita duas vezes maior que o da Líbia, no entanto seus 800 mil habitantes têm uma esperança de vida menor (73,5).

Não houve uma explosão incontida de líbios sem comida, moradia, escola e transporte. Caberia perguntar se desencadeavam uma guerra civil, como é noticiado pela imprensa ocidental, ou atendiam ao mando de estrangeiros interessados no petróleo e no controle de uma posição estratégica no Mediterrâneo. Tudo faz crer que se tratava de uma intervenção externa adrede preparada. Antes de qualquer resolução da ONU sobre a interdição do espaço aéreo líbio, centenas dos mais preparados soldados britânicos e numerosos agentes norte-americanos atuavam na preparação da “rebelião”. Sem as armas lançadas de paraquedas franceses, sem as oito mil mortíferas missões de bombardeio da Otan, sem o bloqueio externo dos fundos do governo líbio, seria impensável a queda de Trípoli.

As potências estrangeiras camuflaram a agressão alardeando uma pretensa defesa dos direitos humanos e da democracia. Kadafi passou a ser visto indiscutivelmente como ditador e tirano. Mas quais as credenciais dos agressores para falar em democracia e direitos humanos? Nos Estados Unidos, Bush, que exerceu seu primeiro mandato sem ter sido eleito, suprimiu direitos consagrados e autorizou crimes de lesa-humanidade sem ser ameaçado de prisão; na Europa, os governantes acatam crescentemente as demandas dos militantes xenófobos. Ao longo de décadas os países ditos desenvolvidos apoiaram abertamente sangrentas ditaduras mundo afora. No mais, caso queira se tomar a democracia com o revezamento dos titulares do poder, os aviões da Otan deveriam bombardear a maioria das capitais africanas.

É no mínimo grotesco pretender impor regimes políticos consagrados pelo capitalismo ocidental às sociedades que desconhecem as instituições formais e o individualismo cultivados no Ocidente. Na África, persistem vivos os laços de solidariedade tribal; a divisão dos africanos em grupos étnicos é uma realidade. Impor-lhes o sistema de comunidades abstratas de “iguais” - chamadas “nações” – equivaleria ao extermínio de sistemas de valores fundados nessas identidades. Boa parte dos países africanos conquistou a independência política há meio século e praticamente todos eles vivenciaram longas guerras internas e externas. Quase todas estas guerras foram alimentadas direta ou indiretamente por potências ocidentais permanentemente à cata de pilhar as riquezas africanas. Os regimes de força são, praticamente, a regra em países em guerra, em qualquer parte do mundo. A ausência de “democracia” na África, de certa forma, revela a resistência dos africanos à assimilação de valores ocidentais.

Na verdade, o que os agressores da Líbia temiam era que, com a indefinição de rumos no Egito, Kadafi retomasse em grande forma a longeva militância pan-arábica e pan-africana herdada de seu ídolo Gamal Abdel Nasser, o homem que, passando a perna nos colonialistas britânicos e franceses, nacionalizou o canal de Suez mexendo nas condições operacionais de grandes empresas e levando dificuldades para grandes esquemas militares. A capacidade de Kadafi de causar impactos no cenário internacional revelou-se de forma contundente na Guerra do Yom Kipur (1973), quando a coalizão de Estados árabes enfrentou Israel, fortemente apoiada pelas potências ocidentais. Com a derrota dos árabes, Kadafi militou em favor do estancamento da exportação de petróleo para os paises que haviam apoiado Israel. O preço do combustível subiu às alturas, gerando duradoura crise econômica mundial.

Hoje, com o norte da África politicamente desestabilizado, o Oriente Médio em alta temperatura e a fronteira sul de Israel sem anteparos sólidos, uma possível projeção de Kadafi só poderia deixar em polvorosa os dirigentes da combalida Europa, sobretudo tendo em vista as limitações de Obama para abrir mais uma frente de batalha. E Kadafi tinha como se projetar: em 2009 foi eleito presidente da União Africana. Mesmo enfrentando grave crise econômica e explosivas pressões sociais domésticas, Cameron, Sarkozy e Berlusconi bancaram a sangrenta aventura da Otan, revivendo infaustos episódios do século 20, quando britânicos, alemães, franceses e italianos se engalfinharam em duras batalhas pelo domínio do estratégico território líbio. Depois da derrota do Afrikakorps de Rommel, em 1943, o Reino Unido tomou conta da Cirenaica e da Tripolitânia enquanto a França administrava Fezã, alargando, na prática, seu dominio sobre a vizinha Argélia.

Com a independência da Líbia, em 1952, e a imposição do descredenciado rei Sayyid Idris al-Sanusi, os Estados Unidos puderam estabelecer poderosas bases militares e usufruir livremente do petróleo líbio até a entrada em cena do jovem coronel Kadafi, em 1969. Logo as empresas estrangeiras foram nacionalizadas e as tropas norte-americanas expulsas. O fechamento dos numerosos bordéis frequentados pelas tropas estrangeiras, que feriam fundo a moralidade islâmica, foram sumariamente fechados.

O Coronel, dosando repressão e concessões, além de garantir habilmente a unidade das 140 tribos que habitavam o território, empenhar-se-ia no pan-arabismo e conquistaria amizades por todo o mundo afro-islâmico. Para orgulho do vasto contingente de muçulmanos africanos, Kadafi financiaria a construção de milhares de mesquistas em povoados pobres e remotos, propiciando-lhes dignidade em suas manifestações espirituais. Mantendo sua disposição de luta, o líder líbio buscaria a arma nuclear e se encalacraria de vez apoiando mortíferas ações extremistas, de resto sempre mal explicadas. Assim, não havia como deixar de ser promovido à grande inimigo da civilização ocidental, malgrado suas tentativas, já na era Bush, de aproximação com os Estados Unidos.

No inicio de 2011, autorizada pela ONU a negar o espaço aéreo a Kadafi, a Otan desconheceria todo o arcabouço legal internacional, bombardeando duramente a Líbia. Seguindo o exemplo norte-americano, visou, sobretudo, eliminar seu dirigente e sua família. Kadafi já não mais governa nem dispõe de aviões. Quais seriam agora os pretextos para continuar os bombardeios? Segue a caçada feroz, vitimando a população e a infraestrutura do país, sem que seus responsáveis sejam incomodados pelo Tribunal Penal Internacional.

Com propriedade , o ministro Antônio Patriota advertiu, apoiado na trágica experiência de invasão do Iraque: desobedecendo a ONU, a Otan promove seu descrédito, alimenta a instabilidade internacional e fomenta violações dos direitos humanos. Se organizações militares internacionais agem à margem da Lei, como esperar que seus soldados respeitem populações desvalidas no teatro de operações?

O futuro da Líbia deveria ser discutido na ONU, conforme a proposta brasileira, não em reunião em Paris promovida por Sarkozy, mais preocupado em garantir privilégios para empresas francesas do que em evitar sofrimento aos africanos. Sem cerimônia, a partilha das oportunidades de negócio abertas com o afastamento de Kadafi domina os entendimentos entre os dirigentes europeus e Obama. Cerca de 80% do petróleo líbio era exportado para a Europa. O chanceler francês, Alain Juppe, alegando os elevados gastos de seu país na agressão à Líbia, pretende que 35 % do petróleo líbio seja entregue a empresas francesas, o que deixa seus parceiros da Otan indóceis. É inacreditável os agressores pretenderem cobrar do povo líbio o preço da destruição!

Como assinalou o russo Dmitri Medviedev, antes de reconhecer o Conselho Nacional de Transição cabe verificar se esta estranha entidade fomentada pelos neocolonialistas será capaz de unir as numerosas tribos líbias. Esta não será uma tarefa fácil. Tal entidade até agora teve como grande bandeira o afastamento de Kadafi, não um projeto político de unidade nacional-democrática. Na semana passada, 200 conhecidos intelectuais sul-africanos, alguns deles servindo em importantes universidades ocidentais, protestando contra as tentativas neocolonialistas, afirmaram: “A Inglaterra, a França e os Estados Unidos continuam agindo como Estados-bandidos”. Tal manifestação não foi noticiada pelos jornais que diariamente informam sobre os esforços para assassinar Kadafi e seus filhos.

O intrigante é que, na era das comunicações em tempo real, onde as informações correm soltas, persiste a dissimulação da cobiça pelo petróleo líbio e do medo do papel que Kadafi poderia jogar na geopolítica mediterrânea. Risível, a esta altura do campeonato, a tentativa de apresentar neocolonialistas como paladinos da liberdade e dos direitos do povo líbio!

* Pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense; Coordenador do Observatório das Nacionalidades; editor de “Tensões Mundiais”.

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