Ana Cláudia Barros
"Uma verdadeira enganação". Esta foi a definição encontrada pela secretária do Conselho Executivo da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Kenarik Boujikian Felippe, para a resposta das forças de segurança à onda de violência no Rio de Janeiro. A magistrada, que é titular da 16ª Vara Criminal de São Paulo, considera equivocada a maneira como o tráfico de drogas está sendo combatido. Para ela, só a base da pirâmide está sendo atingida.
Confira a entrevista.
Por que a AJD decidiu se manifesta?
Kenarik Boujikian Felippe - Em razão de seus propósitos institucionais. Só tem sentido a associação se manifestar nesse contexto. Entre as finalidades da associação, uma organização de juízes criada em 1991, está a questão dos valores do Estado Democrático de Direito. Foi dentro dessa perspectiva que a gente resolveu se manifestar. Em razão ainda de o problema não ser um fato novo. Há alguns anos, o Exército ocupou os morros no Rio de Janeiro. Naquela época, a associação se manifestou, tendo em vista que havia um desvirtuamento da função do Exército.
Hoje, há uma nova coloração, outros envolvidos, alguns fatos se alteraram. A associação não pode ver violações de direitos ocorrendo - e que isso possa ser encarado de forma positiva, como a imprensa tem mostrado -, e não fazer nada.
Na verdade, é necessário que o Estado cumpra seus papéis. É necessário que ele garanta os direitos fundamentais, e a segurança pública é um direito fundamental. Só que isso deve ser garantido sem que se cometam violações.
Na nota, a associação critica a atuação de parte da imprensa. O argumento é que estaria omitindo a violência policial.
Estão omitindo e não estão trazendo uma reflexão sobre os fatos. O papel da imprensa é trazer dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os fatos sob o ângulo da violação - que, infelizmente, está acontecendo -, se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.
A que a senhora se refere exatamente?
Em síntese, o que a imprensa está noticiando é que isso (Estado policial) vai resolver o grande problema que existe no Rio. E é uma situação mais complexa, que não vai se solucionar com a entrada da polícia, do Exército, da Aeronáutica e o que mais seja. Tem que haver um projeto de país, de comunidade, de estado, de município e o que existe é uma verdadeira enganação. E a imprensa está corroborando para isso, ao invés de ajudar a melhorar a situação, ajudar a resolver efetivamente o problema grave que existe no Rio e que tem uma população que está submetida à violência do Estado, submetida à violência das milícias e de pessoas envolvidas no mundo da criminalidade... A população é quem sofre e vai continuar sofrendo e o problema não vai se resolver.
Ou o Estado "ocupa" aquele território, e ocupar não significa colocar um imóvel onde vão ficar policiais. Ocupar no que diz respeito à função própria do Estado: colocar vários postos de saúde, urbanizar, cuidar do saneamento básico. Isso é uma coisa que leva tempo.
Fora isso, é preciso combater a criminalidade, mas de forma séria. O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis.
Quando a senhora fala dos "que estão em cima" quer dizer aqueles que não vivem nas favelas, mas nas áreas nobres?
Que não vivem nos morros, mas ganham muito dinheiro com o tráfico de drogas. E onde está esse dinheiro? O tráfico é um mercado poderoso, mas não para aqueles que estão ali embaixo. São empregadinhos. E digo que são descartáveis. Hoje, são presos 100. Amanhã, entram mais 100. A polícia tem que agir, investigando de onde vem, para onde vai o dinheiro, qual é a fonte.
Então, na avaliação da senhora, o combate ao tráfico no Rio está sendo feito parcialmente, apenas de um lado?
Do lado mais baixo da pirâmide que envolve o tráfico. O que estão "lá embaixo" são o que chamamos de aviões, mulas, pequenos vendedores. A ponta de cima é o empresário que ganha muito dinheiro com isso. Esse é intocável. A imprensa não usa uma linha para sequer explicar e vende a ilusão para a população de que o problema está sendo resolvido.
Em relação às últimas operações policiais realizadas no Rio de Janeiro, quais os erros e acertos na avaliação da senhora?
Acertos? Sinceramente, não consigo enxergar os acertos. Não consigo enxergar que a violação de algum direito fundamental possa ser acerto. Eles partem de que pressuposto? Que os policiais podem invadir as casas. Meu Deus, não é possível! Ou respeitamos a Constituição ou não.
Na nota, a associação foi bem dura, ressaltando que, ao violar a ordem constitucional, o Estado perde a superioridade ética que o distingue do criminoso. Fica igualmente à margem.
Todos nós somos atingidos por isso. Quando abro uma exceção de violação de um direito, não estou violando só para aquele proprietário da casa na favela X, Y. Na verdade, a violação é de todos nós. Admito a violação, só que não podemos ser ingênuos de imaginar que esse Estado vai atingir outra população. A violação direta é só para um tipo de população, a mais pobre, a mais vulnerável. Vai me dizer que eles vão fazer alguma coisa do gênero em algum outro local? Não vão.
Vamos falar bem claramente: vão fazer uma busca e apreensão... Nem busca e apreensão. Vão simplesmente entrar na minha casa, derrubar a porta para ver se há alguma arma ou droga? Não vão fazer isso. Eu moro nos Jardins, aqui, em São Paulo. É seletivo. Então, "só pode ser o pobre o grande inimigo do Brasil", e as coisas não são assim. O que me incomoda muito é que a imprensa reforça uma ideia que não tem o mínimo de veracidade, o mínimo de racionalidade.
O que exatamente?
Toda essa política de que vão entrar lá (no complexo do Alemão) e resolver o problema, sendo que ele continua. E não é só no complexo do Alemão. Isso não é algo que se resolve a curto prazo. Uma investigação séria demanda um certo tempo, mas é necessário começar. Quem está ganhando tanto dinheiro com o tráfico?
Tem que haver essa vertente de polícia, de criminalidade. Acho que tem que haver mesmo, mas não nesse patamar que estão colocando, que é absurdamente ridículo. O problema não vai terminar nem diminuir. Estão vendendo uma imagem de que estão resolvendo o problema e é mentiroso isso.
Qual seria o caminho mais apropriado?
São dois caminhos básicos. De um lado, o Estado ocupa o território no sentido de fazer as políticas que lhe competem dentro daquela comunidade. Tem que ter uma cultura a ser criada e se cria essa cultura através da garantia dos direitos. Educação, saúde... Quando digo educação, refiro-me a um projeto para aqueles jovens. Qual expectativa que eles podem ter de trabalho? É preciso investir nisso. É uma algo a longo prazo, mas é preciso começar já. Estamos atrasados.
Ao mesmo tempo é preciso ter uma política referente à área criminal que seja efetiva. Hoje, eles podem prender mil. São pessoas consideradas socialmente descartáveis. Amanhã, haverá outros mil para fazer a mesma coisa. Agora, se você "quebrar" quem tem o dinheiro, quem está lucrando com isso, aí se pode haver outra perspectiva. O que me incomoda é que a política adotada não é séria e tem a seguinte caracterísitica: viola os direitos da Constituição.
Como a AJD está acompanhando as denúncias de violação aos direitos humanos nas favelas ocupadas pelas forças policiais?
Agora é que elas estão começando a aparecer. Na verdade, a imprensa ficou vários dias jogando confete para as ilegalidades. Lá no Rio, há várias organizações que estão começando a receber uma série de informações. Não dá para desconsiderar toda essa realidade. É preciso que se dê andamento. Até no Judiciário mesmo.
Confira a entrevista.
Por que a AJD decidiu se manifesta?
Kenarik Boujikian Felippe - Em razão de seus propósitos institucionais. Só tem sentido a associação se manifestar nesse contexto. Entre as finalidades da associação, uma organização de juízes criada em 1991, está a questão dos valores do Estado Democrático de Direito. Foi dentro dessa perspectiva que a gente resolveu se manifestar. Em razão ainda de o problema não ser um fato novo. Há alguns anos, o Exército ocupou os morros no Rio de Janeiro. Naquela época, a associação se manifestou, tendo em vista que havia um desvirtuamento da função do Exército.
Hoje, há uma nova coloração, outros envolvidos, alguns fatos se alteraram. A associação não pode ver violações de direitos ocorrendo - e que isso possa ser encarado de forma positiva, como a imprensa tem mostrado -, e não fazer nada.
Na verdade, é necessário que o Estado cumpra seus papéis. É necessário que ele garanta os direitos fundamentais, e a segurança pública é um direito fundamental. Só que isso deve ser garantido sem que se cometam violações.
Na nota, a associação critica a atuação de parte da imprensa. O argumento é que estaria omitindo a violência policial.
Estão omitindo e não estão trazendo uma reflexão sobre os fatos. O papel da imprensa é trazer dados, informações para que as pessoas reflitam. Se você não mostra os fatos sob o ângulo da violação - que, infelizmente, está acontecendo -, se você vende uma imagem de que aquilo é uma solução, faz um desserviço.
A que a senhora se refere exatamente?
Em síntese, o que a imprensa está noticiando é que isso (Estado policial) vai resolver o grande problema que existe no Rio. E é uma situação mais complexa, que não vai se solucionar com a entrada da polícia, do Exército, da Aeronáutica e o que mais seja. Tem que haver um projeto de país, de comunidade, de estado, de município e o que existe é uma verdadeira enganação. E a imprensa está corroborando para isso, ao invés de ajudar a melhorar a situação, ajudar a resolver efetivamente o problema grave que existe no Rio e que tem uma população que está submetida à violência do Estado, submetida à violência das milícias e de pessoas envolvidas no mundo da criminalidade... A população é quem sofre e vai continuar sofrendo e o problema não vai se resolver.
Ou o Estado "ocupa" aquele território, e ocupar não significa colocar um imóvel onde vão ficar policiais. Ocupar no que diz respeito à função própria do Estado: colocar vários postos de saúde, urbanizar, cuidar do saneamento básico. Isso é uma coisa que leva tempo.
Fora isso, é preciso combater a criminalidade, mas de forma séria. O que se vê é a prisão dos pequenos. Para se ter um efeito real, é preciso combater os que estão lá em cima. Os de baixo são substituíveis.
Quando a senhora fala dos "que estão em cima" quer dizer aqueles que não vivem nas favelas, mas nas áreas nobres?
Que não vivem nos morros, mas ganham muito dinheiro com o tráfico de drogas. E onde está esse dinheiro? O tráfico é um mercado poderoso, mas não para aqueles que estão ali embaixo. São empregadinhos. E digo que são descartáveis. Hoje, são presos 100. Amanhã, entram mais 100. A polícia tem que agir, investigando de onde vem, para onde vai o dinheiro, qual é a fonte.
Então, na avaliação da senhora, o combate ao tráfico no Rio está sendo feito parcialmente, apenas de um lado?
Do lado mais baixo da pirâmide que envolve o tráfico. O que estão "lá embaixo" são o que chamamos de aviões, mulas, pequenos vendedores. A ponta de cima é o empresário que ganha muito dinheiro com isso. Esse é intocável. A imprensa não usa uma linha para sequer explicar e vende a ilusão para a população de que o problema está sendo resolvido.
Em relação às últimas operações policiais realizadas no Rio de Janeiro, quais os erros e acertos na avaliação da senhora?
Acertos? Sinceramente, não consigo enxergar os acertos. Não consigo enxergar que a violação de algum direito fundamental possa ser acerto. Eles partem de que pressuposto? Que os policiais podem invadir as casas. Meu Deus, não é possível! Ou respeitamos a Constituição ou não.
Na nota, a associação foi bem dura, ressaltando que, ao violar a ordem constitucional, o Estado perde a superioridade ética que o distingue do criminoso. Fica igualmente à margem.
Todos nós somos atingidos por isso. Quando abro uma exceção de violação de um direito, não estou violando só para aquele proprietário da casa na favela X, Y. Na verdade, a violação é de todos nós. Admito a violação, só que não podemos ser ingênuos de imaginar que esse Estado vai atingir outra população. A violação direta é só para um tipo de população, a mais pobre, a mais vulnerável. Vai me dizer que eles vão fazer alguma coisa do gênero em algum outro local? Não vão.
Vamos falar bem claramente: vão fazer uma busca e apreensão... Nem busca e apreensão. Vão simplesmente entrar na minha casa, derrubar a porta para ver se há alguma arma ou droga? Não vão fazer isso. Eu moro nos Jardins, aqui, em São Paulo. É seletivo. Então, "só pode ser o pobre o grande inimigo do Brasil", e as coisas não são assim. O que me incomoda muito é que a imprensa reforça uma ideia que não tem o mínimo de veracidade, o mínimo de racionalidade.
O que exatamente?
Toda essa política de que vão entrar lá (no complexo do Alemão) e resolver o problema, sendo que ele continua. E não é só no complexo do Alemão. Isso não é algo que se resolve a curto prazo. Uma investigação séria demanda um certo tempo, mas é necessário começar. Quem está ganhando tanto dinheiro com o tráfico?
Tem que haver essa vertente de polícia, de criminalidade. Acho que tem que haver mesmo, mas não nesse patamar que estão colocando, que é absurdamente ridículo. O problema não vai terminar nem diminuir. Estão vendendo uma imagem de que estão resolvendo o problema e é mentiroso isso.
Qual seria o caminho mais apropriado?
São dois caminhos básicos. De um lado, o Estado ocupa o território no sentido de fazer as políticas que lhe competem dentro daquela comunidade. Tem que ter uma cultura a ser criada e se cria essa cultura através da garantia dos direitos. Educação, saúde... Quando digo educação, refiro-me a um projeto para aqueles jovens. Qual expectativa que eles podem ter de trabalho? É preciso investir nisso. É uma algo a longo prazo, mas é preciso começar já. Estamos atrasados.
Ao mesmo tempo é preciso ter uma política referente à área criminal que seja efetiva. Hoje, eles podem prender mil. São pessoas consideradas socialmente descartáveis. Amanhã, haverá outros mil para fazer a mesma coisa. Agora, se você "quebrar" quem tem o dinheiro, quem está lucrando com isso, aí se pode haver outra perspectiva. O que me incomoda é que a política adotada não é séria e tem a seguinte caracterísitica: viola os direitos da Constituição.
Como a AJD está acompanhando as denúncias de violação aos direitos humanos nas favelas ocupadas pelas forças policiais?
Agora é que elas estão começando a aparecer. Na verdade, a imprensa ficou vários dias jogando confete para as ilegalidades. Lá no Rio, há várias organizações que estão começando a receber uma série de informações. Não dá para desconsiderar toda essa realidade. É preciso que se dê andamento. Até no Judiciário mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário