sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A batalha do Rio ( X ): Veríssimo - A gafe



A gafe

Estranho, muito estranho. Mesmo que não esperassem uma reação tão dura. O que o "tráfico" do Rio tinha a ganhar com os atentados que desencadearam a repressão inédita?
Protesto contra a ação das UPPs nos morros ou simples e bravateira demonstração de força — nada disso esconde que o que fizeram foi ruim para eles e pior para os seus negócios. Se o que queriam era justamente levar a afronta a um ponto que forçasse uma reação na mesma medida, o mistério aumenta. Pra quê?
As teorias conspiratórias têm sempre uma fraqueza: pressupõem uma inteligência ou um poder de dissimulação irreal dos conspiradores. Qualquer conjetura sobre o que está por trás dessa guerra, ou sobre a quem aproveita o seu acirramento, acaba sendo uma especulação sobre o improvável, quando não uma fantasia. Mas o fato é que ela desafia muitas lógicas, a começar pela lógica básica do capitalismo que é a primazia do lucro em qualquer circunstância.
O crime organizado não parece tão organizado assim, se é responsável por tamanha gafe em termos de relações públicas. Acima dos estragos que está causando na vida de tanta gente, a guerra está abalando o mercado. Lucros cessantes é o maior terror de qualquer empreendimento.
Pode-se imaginar que os lucros do "tráfico", pelo menos por um tempo, cessarão ou diminuirão. A droga sendo apreendida nos morros é principalmente maconha, que segundo alguns nem droga é. Pode-se supor que o comércio de maconha seja a principal atividade desse exército maltrapilho e bem armado, hoje acuado, que vende para a sua própria classe, e que cocaína e etc. circulem em outros esquemas, mais sofisticados e discretos. Mas todo o mercado foi afetado pela gafe.
O Brasil, como se sabe, é um país de corruptos sem corruptores. Pelo menos até hoje nenhuma grande empreiteira ou coisa parecida teve que responder por atos de corrupção em que participou como compradora de favores.
O mercado de drogas é parecido, um estranho, muito estranho, mercado só de fornecedores. Dos consumidores nunca se ouve falar. Mas, presumivelmente, eles também sofrerão com a gafe. Pelo menos por um tempo.


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30/11/2010

“O dia que o morro descer e não for carnaval”

Enquanto anônimos ninguéns seguem chorando a perda dos seus, a mídia brasileira louva uma pacificação feita com tanques e sangues

Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão)
“As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos. Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não têm cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.” Eduardo Galeano

Enquanto anônimos ninguéns seguem chorando a perda dos seus, a mídia brasileira louva uma pacificação feita com tanques e sangues. Depois de uma eleição na qual botou as mangas de fora, o conservadorismo brasileiro agora parece não ter mais a menor vergonha em se manter fora do armário. E pudera, ele é maioria neste “consenso forjado” dia a dia pelas antenas e palavras dos de cima (e que infelizmente encontram muito eco nas famílias, escolas e igrejas dos de baixo).

Recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrou que ateus e usuários de drogas são os estereótipos mais rejeitados pelo brasileiro. 35% das pessoas disse que usuários de drogas são o tipo de pessoa que menos gostam de encontrar, sendo que 17% afirmam ter “repulsa ou ódio” e 24% “antipatia” por este tipo tão perigoso de ser humano. Em mais esta etapa de décadas da fracassada “guerra às drogas”, novamente consumidores e substâncias sem vida são eleitos como responsáveis pela violência que assola nosso país, em especial uma de nossas cidades mais maravilhosas.

O país cresce, e há certa melhora visível na vida de setores mais pobres. “Um real a mais no salário, esmola de patrão cuzão milionário”, já cantavam os Racionais MC’s, fechando com chave de ouro: “Ser escravo do dinheiro é isso, fulano/ 360 dias por ano sem plano/ Se a escravidão acabar pra você/ Vai viver de quem? Vai viver de quê?” Ao mesmo tempo em que cresce a economia e os lucros dos de cima, aumenta a repressão aos que insistem em reclamar por estarem por baixo. 500 anos e não se conformaram?

Foi exatamente quando a escravidão formalmente acabou que os negros começaram a formar estas periferias que são periferia em qualquer lugar, como ensina o rapper brasiliense Gog sampleado pelo Racionais na música citada. Sem acesso à propriedade da terra por conta da Lei de Terras elaborada para garantir os donos de escravos diante do inevitável final dessa modalidade de exploração, não restou alternativa aos recém libertos senão começarem a se amontoar nas áreas menos propícias à moradia das cidades brasileiras. De lá pra cá pouco mudou: os capitães do mato agora usam farda, os senhores de engenho comandam empresas, bancos e governos; para os de baixo, o que segue ditando seu disciplinamento é o chicote, agora made in USA.

“Hey senhor de engenho eu sei quem você é, sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé”. Sozinho eles não guentam, então para garantirem seus lucros na Copa e nas Olimpíadas mandam que seus assassinos fardados treinados no Haiti subam o morro, e “pacifiquem” a cidade. A paz pode custar quantas vidas forem necessárias. A disputa é por território e por controle social, e o tempo está passando. Quem tem mais peso no momento da decisão das políticas públicas, setores empresariais e imobiliários que já estão ganhando milhões com os mega-eventos no Brasil ou os ninguéns?

Na mesma Periferia é periferia em qualquer lugar, Edi Rock canta que “O vício tem dois lados/ Depende disso ou daquilo,então tá tudo errado/ Eu não vou ficar do lado de ninguém, por quê? Quem vende droga pra quem? Hã!/Vem pra cá de avião ou pelo porto ou cais./Não conheço pobre dono de aeroporto e mais./Fico triste por saber e ver/Que quem morre no dia a dia é igual a eu e a você”. Se o combate fosse contra “a droga” – este ente maligno que quando ilegal corrompe a sociedade e quando legal usa o corpo das mulheres para lucrar sempre mais – obviamente ele não poderia centrar-se no lado debaixo da cadeia, no comércio varejista. A imensa maioria dos lucros do tráfico está no sistema financeiro internacional, está na indústria de armas, está nos políticos e juízes corruptos. Aos varejistas e aos policiais corruptos, resta arriscar a vida para disputar as migalhas. Num país tão desigual e injusto, elas não são pouca coisa.

Tráfico de drogas existe em todo o mundo, e seguirá existindo enquanto algumas drogas forem proibidas. A demanda existe e sempre existirá, não cabe ao Estado intervir na vida privada de seus cidadãos, e eles silenciosamente resistem a isso simplesmente seguindo com o consumo que escolheram. Mas o tráfico é mais violento exatamente onde a sociedade é mais desigual, e nesse quesito podemos nos orgulhar, Brasil-il-il, no topo do ranking. Alijados até mesmo do exército de reserva que antes organizava os moradores da favela, às vezes sem chance nem mesmo no mercado informal que rege nossa economia, diante de um Estado que interage com eles somente com a polícia, estes jovens moradores dos morros e periferias há muito perceberam que isto que lhe oferecem como vida não é muito para se colocar em risco em troca de oportunidades melhores. Morre um, já tem mais cinco na fila, ou alguém já ouviu dizer de escravos trabalhando no tráfico? Em certas fazendas de deputados, sim, existe este tipo de mão de obra, mas no comércio de drogas muitas vezes há mais demanda do que postos de trabalho, e isso não pode ser resultado da loucura desses jovens.
O chamado “crime organizado” sabidamente não é tão organizado assim, sua força e organização são superestimadas pelos que necessitam de “inimigos internos” para manter a escalada de repressão seletiva. E assim como o crack é produto da proibição das drogas (fruto da repressão à cocaína e da ausência de preocupação do mercado ilegal com a qualidade do que vendem), os comandos são produto do Estado brasileiro. Nasceram das indignantes condições dos presídios brasileiros, e se espalharam para fora de seus muros pela igualmente humilhante condição de vida da população pobre e pelas constantes agressões de uma polícia assassina e racista.

A proibição das drogas criou a ilegalidade deste mercado, e consequentemente fez com que a violência fosse a instância que rege essas transações comerciais. A desigualdade social potencializa a violência, e potencializa também o papel coercitivo do Estado, seu lado penal. “Ou aceita ser um saco de pancada ou vai pro saco”. A violência estatal tem suas facetas mais descaradamente assassinas, como o Bope, e às vezes busca legitimar-se frente à sociedade por estratégias menos ostensivas, mesmo que ainda obviamente militares e em desacordo com os direitos humanos, como é o caso das UPP’s.

Espanta é que a opinião pública compre – e é disso que se trata, de venda de posicionamentos e preconceitos – a versão de que componentes do problema, como Bope e UPP, sejam instrumento da solução. Para coroar, o exército é chamado para finalmente implementar o que vem treinando há anos nos corpos e periferias do Haiti.

Espanta é que um governo federal de um partido que ainda se diz de esquerda (mesmo que cada vez com menos ênfase) suporte e promova este tipo de estratégias, apoiando programas como as UPP’s e a presença militar no Haiti e também governantes como Sérgio Cabral e sua trupe.

Espanta é que alguém ainda leve a sério meios de comunicação que apoiaram e cresceram com o Golpe Militar de 1964, e que de lá pra cá participaram de uma série de manipulações eleitorais e promovem diariamente preconceitos de gênero, orientação sexual e classe em seus produtos de entretenimento e informação. Sensacionalismo que mostra cenas, fatos, mas não explica por que eles existem, por que eles estão lá. Como duas facções que até pouco tempo se matavam estão juntas? Quem são os “bandidos”, os “traficantes”? Um corpo só? O maniqueísmo é a única ferramenta que eles têm para manter a dissimulação.

Espanta que depois de 40 anos de guerra às drogas made in USA, quando o mundo todo busca alternativas ao fracasso proibicionista, a guerra seja novamente propagandeada como instrumento de paz. Realmente, se ainda há razão em nossa sociedade, falta muito para que ela se desentorpeça.

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