quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Conversa pra boi dormir ou o aumento do salário mínimo




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Salário mínimo: as falácias de sempre

Paulo Kliass

Todo mês dezembro é a mesma história. Começa a correria para encerrar rapidamente o ano legislativo, e o Congresso Nacional tem a obrigação constitucional de votar o orçamento federal para o exercício seguinte até o dia 31 de dezembro. Trata-se da famosa Lei Orçamentária Anual (LOA).

Neste ano, em particular, assistiu-se a um desfile de escândalos, denúncias e renúncias de alguns dos congressistas envolvidos com a Comissão Mista de Orçamento (CMO). Em geral, são os fatos envolvendo as famosas emendas parlamentares, onde - em nome da defesa da importante instituição da democracia parlamentar e representativa - vem-se consolidando um esquema fraudulento de apropriação de recursos públicos e desvio para fins privados duvidosos. Eu estava entre os ingênuos, aqueles que achávamos que, depois da CPI dos Anões do Orçamento, lá nos idos de 1993, essa prática acabaria de vez, que as coisas iriam melhorar nesse domínio. Triste ilusão...

Pois bem, mas o assunto hoje aqui é o salário mínimo. E antes que alguém já se sinta incomodado com o título do artigo, vamos recorrer à ajuda do Houaiss. Ali se aprende que falácia é a “qualidade do que é falaz, falsidade”. E falaz é “o que engana, o que ilude, fraudador.” Ou seja, definição melhor é impossível para caracterizar o debate que se apresenta para a sociedade brasileira a respeito do valor de referência para a menor remuneração mensal de um trabalhador em nosso País para 2011.

O valor total para as despesas e as receitas constantes no Projeto da LOA, a ser votado nos próximos dias pelo conjunto de senadores e deputados federais, soma os valores dos chamados Orçamento Fiscal e Orçamento da Seguridade Social, separação formal essa que é uma exigência do texto constitucional. Tudo junto, o Orçamento da União proposto é de R$ 1,94 trilhões. Apenas a título de comparação, o valor do PIB brasileiro para 2010 deve fechar em torno de R$ 3,3 trilhões. O documento do Projeto de Lei é extenso, as tabelas são enormes, os anexos são imensos. Os dados podem ser agregados por natureza da função, por órgão governamental, etc. Não é intenção fazer aqui uma análise detalhada da alocação dos recursos orçamentários, mas tão somente ater-nos ao aspecto do já conhecido impacto do reajuste do salário mínimo sobre as contas do governo federal.

Porém, vale a pena reter aqui, para efeito de avaliação comparativa, um valor importante. Trata-se da quantia prevista para um item bastante “especial”: o pagamento de juros e encargos da dívida pública federal. O Projeto de Lei aloca nada mais nada menos do que R$ 170 bilhões para o exercício de 2011 ! Uma loucura! Quem tiver interesse é só procurar lá na página da Câmara dos Deputados, no Anexo 7 do Projeto de LOA, encaminhado pelo Executivo. O documento tem o título de “Serviço da Dívida Contratual e Mobiliária” . O cálculo, muito provavelmente, se baseia em um estoque de dívida pública federal beirando os R$ 1,8 trilhões, com uma taxa de juros SELIC projetada para todo o ano de 2011, de acordo com o texto da Mensagem Presidencial, como sendo bem próxima aos atuais 10,75% ao ano. Mas voltaremos a esse ponto mais à frente.

O valor proposto no Projeto de Lei para o salário mínimo em 2011 é de R$ 538,15, equivalente a um reajuste nominal de apenas de 5,5%, correspondente à inflação esperada para o período de 12 meses. Em função das primeiras reações iniciais de descontentamento, o governo aceitou melhorar a proposta e se comprometeu com o novo valor de R$ 540 !! Um fantástico avanço de 0,37% em relação à proposição inicial, que a Relatora já incorporou ao seu texto Substitutivo. Uma verdadeira brincadeira de mau gosto! Fico aqui só recordando as reações dos antigos dirigentes sindicais da CUT a cada vez que os governos do milênio passado anunciavam os índices de reajuste do salário mínimo.

As entidades do movimento sindical e dos aposentados/pensionistas articularam uma contraproposta de R$ 580, equivalente a um reajuste de 13,7%, raciocinando em termos de reposição inflacionária mais um percentual relativo ao crescimento do PIB. A reação dos representantes do governo foi imediata: Não! Não! É impossível! O orçamento federal não teria recursos disponíveis para tanto, o efeito em cascata de tal medida quebraria a previdência social, inviabilizaria os governos estaduais e municipais, e todo aquele blá-blá-blá já tão conhecido de todos nós. Com isso e toda a pressão exercida sobre os parlamentares da base aliada no interior da CMO, é muito provável que a LOA seja aprovada com o valor irrisório de R$ 540, levando a discussão política e eventual mobilização dos interessados para o início do próximo ano.

E vejamos bem que o valor alternativo proposto nada tem de irresponsável. Muito pelo contrário, ele está ainda muito distante dos números apresentados pelo DIEESE, que busca conferir valor monetário aos preceitos constitucionais relativos ao vencimento básico do trabalhador, tal como definido no inc. IV, do art. 7° da CF. Ali está assegurado que figura, dentre os demais direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, receber um "salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim". De acordo com os cálculos da respeitada instituição do meio sindical, o valor deveria ser de R$ 2.300 mensais para esse mês de dezembro. Espero que um dia ainda cheguemos lá.

Os argumentos do governo são os de sempre. Em síntese: não há recursos disponíveis e o governo deve pautar sua conduta pela responsabilidade fiscal. De acordo com a última parte: sim, o governo deve se pautar por elevada seriedade na condução de sua política fiscal. No entanto, o fato é que há recursos disponíveis no Orçamento da União para 2011. Ou melhor, haverá recursos disponíveis, desde que a Presidenta Dilma exija de sua equipe o cumprimento de sua promessa relativa à redução da taxa de juros a partir do ano que vem. Senão, vejamos.

De acordo com declarações do Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, o pleito das entidades sindicais seria impossível de ser atendido, pois a cada 1% a mais de reajuste no valor do salário mínimo, haveria um impacto de R$ 1,5 bilhão nas despesas orçamentárias. De acordo, não vamos questionar tais números. Mas se for alcançado um consenso em torno da necessidade se dar continuidade à política de valorização do salário mínimo, a fixação de tal remuneração no patamar de R$ 580 significaria uma despesa adicional de R$ 12 bilhões ao longo do próximo ano, pois implica um reajuste de mais 8% sobre a proposta inicial.

Ora, para conseguir tal volume de recursos não há que se fazer grande sacrifício. Pelo contrário, basta que a taxa de juros SELIC entre janeiro e dezembro de 2011 permaneça no nível de 10,05% ao ano, ao invés dos 10,75% projetados no Projeto de Lei. Ora, apenas essa redução irrisória na taxa de juros oficial (espera-se que a baixa seja maior, claro!) é suficiente para alocar os recursos necessários a um salário mínimo de R$ 580. Isso sem contar, por outro lado, os efeitos positivos sobre a própria arrecadação tributária em geral, pois é sabido que mais de 40% do consumo da população de renda mais baixa em nosso País vão para os cofres públicos, na forma de tributos indiretos da União, Estados e Municípios.

Ou seja, mais uma vez, comprova-se que basta a vontade política. Os recursos orçamentários para avançar na melhoria do salário mínimo existem. A responsabilidade na condução da política fiscal exige, por outro lado, compromisso com o que é essencial na política do governo. No caso concreto, trata-se de fazer a opção entre: (i) despesa com juros ou (ii) remuneração de mais da metade dos assalariados e pensionistas do País. O resto é argumento falacioso, conversa prá boi dormir.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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