segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Vítimas de violência sexual confiam mais na polícia que nos profissionais de saúde.

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São Paulo, segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Estuprada demora para buscar médico

CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO

Simone, 27, foi estuprada a caminho do trabalho. Carmem, 28, indo para a casa de uma amiga. Mara, 42, quando voltava de um posto de saúde. Taís, 18, estava em um parque. Karina, 29, em casa.
Em comum, essas mulheres também compartilham o fato de terem engravidado por falta de um atendimento médico imediato após o estupro. A anticoncepção de emergência, se usada até 72 horas após a relação sexual, pode evitar a gravidez.
Um estudo inédito do hospital Pérola Byington mostra que essa é a realidade de 88,9% das grávidas vítimas de estupro atendidas em um projeto da instituição Bem-Me-Quer, que oferece ajuda médica e psicológica.
Para o ginecologista Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre Aborto, as mulheres ainda não têm noção de seus direitos e temem procurar ajuda. "Há também uma questão vinculada à vergonha que impede a mulher de revelar a violência praticada contra ela. Quando engravidam, escondem a gravidez e só procuram assistência quando ela é claramente evidente."
Foram avaliadas 936 mulheres ao longo de 15 anos do projeto: 65% optaram pelo aborto. O restante (326) não fez o procedimento porque não houve aprovação para o aborto (60,7%) ou porque a gestante desistiu de interromper a gravidez.
Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, a maioria dos casos de não aprovação (39%) do aborto ocorreu pela idade gestacional estar acima da prevista pelo serviço de saúde -após a 22ª semana ou com o feto pesando mais de 400 gramas.
Também impressiona o que fato de que só 8,6% das mulheres chegaram ao serviço de saúde espontaneamente -sem ter passado antes na delegacia para o BO ou no IML para o corpo de delito.
O Código Penal é claro: a palavra da mulher estuprada basta e deve ser recebida pelo serviço de saúde como presunção de veracidade. Estima-se que a violência sexual alcance 12 milhões de pessoas a cada ano no mundo. No Brasil, a taxa é de 8,78 estupros por 100 mil habitantes. Estudos populacionais mostram que 10% das mulheres da região metropolitana de São Paulo já foram forçadas a praticar atos sexuais.

PERFIL
Segundo o estudo do Pérola, a mulher vítima de abuso sexual que engravida tem idade média de 22,2 anos -149 pacientes tinham menos de 15 anos.
Vítimas entre 15 e 19 anos realizaram menos aborto que as mais velhas. A principal razão foi chegar ao serviço de saúde com a gravidez mais avançada. "Elas têm uma percepção mais tardia da gestação e mais dificuldade de acesso aos serviços de saúde", diz Daniela.
A maioria das mulheres declarou professar alguma religião (82,6%), o que demonstra que esse não é um fator de influência na decisão pelo aborto. Em 61% dos casos, o autor do estupro era desconhecido da vítima.

Leia depoimentos de vítimas de estupro - folha.com.br/ct848245

ANÁLISE


O que as mulheres temem ao contar sua história a médicos?

DEBORA DINIZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

As vítimas de estupro são mulheres comuns: jovens, católicas, com baixa escolaridade e inserção informal no mundo do trabalho. A surpresa não está no perfil, mas na informação de que só uma em cada dez mulheres procurou o serviço de saúde imediatamente após a violência.
As razões desse silêncio são desconhecidas pela pesquisa, mas denunciam desafios importantes à saúde pública brasileira. O que as mulheres temem ao contar suas histórias de estupro a médicos, enfermeiras ou assistentes sociais?
A primeira pista para essa pergunta está na combinação de duas informações aparentemente discordantes: a maioria das mulheres submeteu-se ao exame de corpo de delito e registrou o boletim de ocorrência policial, mas muitas tiveram o pedido de aborto negado.
A principal razão foi o avanço da idade gestacional, pois as mulheres demoram para buscar os hospitais. E, dentre as poucas que buscaram socorro imediato, nem todas receberam a contracepção de emergência -gratuita e encontrada em qualquer centro de saúde. Em tese, a mulher não precisa expor sua história, basta solicitar a medicação na farmácia. Mas há um silêncio tão perverso em torno do aborto que até mesmo informações básicas sobre direitos e assistência são ignoradas pelas mulheres. A encruzilhada do atendimento não está apenas no serviço de referência, mas nos programas de inserção comunitária, tais como o saúde da família, o saúde em casa ou mesmo nos agentes de saúde.
Se esse modelo integral de assistência em saúde funcionasse, muitas mulheres nem sequer precisariam do aborto. Mas, curiosamente, as mulheres vítimas de violência sexual parecem temer os profissionais de saúde, e esse é meu maior espanto diante dos dados da pesquisa.
Elas superam a barreira do constrangimento policial e realizam o exame de corpo de delito: um exame vexatório e não obrigatório para o registro de estupro, mas se recusam a ir imediatamente ao hospital. Sem ainda entender as razões, me parece que as mulheres vítimas de violência sexual confiam mais na polícia que nos profissionais de saúde.


DEBORA DINIZ é professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética e Direitos Humanos)

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