quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Quem tem medo do trem-bala?

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Jornal do Brasil, 23/12/2010

 
Adalberto Müller, pesquisador do CNPq

O ato do PPS de contestar a MP que garante o financiamento para o trem-bala, que deverá ligar Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro, demonstra a preocupação de uma parcela da elite brasileira com a possibilidade de uma democratização dos transportes no país. Independentemente do valor, o projeto do trem-bala marca o início de uma etapa histórica no nosso sistema de transportes.
É preciso lembrar que, em matéria de transportes, o Brasil é um dos países mais atrasados do mundo. É inacreditável que um país de dimensões continentais, grande produtor de grãos e de minérios, dependa em mais de 80% do transporte rodoviário. Na maioria dos países pós-industriais (e mesmo entre os Brics como a Rússia e a China), o transporte rodoviário é usado apenas para mercadorias leves, cujo transporte requer mais velocidade e distâncias mais curtas. No Brasil, não apenas a nossa gigantesca safra de grãos (que não pode crescer mais devido à deficiência de transporte), mas praticamente tudo o que se produz viaja de caminhão, muitas vezes a custos elevados, congestionando as rodovias.
A adoção do transporte de mercadorias baseado no caminhão, e no transporte de passageiros baseado no carro e no ônibus criou também aberrações, com as quais temos que conviver diariamente. No caso do transporte de passageiros, tais aberrações são bastante visíveis, e respondem não apenas pelo atraso econômico, mas pela desigualdade social e por descaso ambiental. Na medida em que apenas uma minoria da população tinha possibilidade de adquirir carros, criou-se um fosso intransponível entre o transporte público e o individual de passageiros. Ao mesmo tempo, com a crescente expansão do número de carros e ônibus, tornam-se insuportáveis os danos ambientais de um sistema de transporte que utiliza combustíveis altamente nocivos ao meio-ambiente. 
A única solução viável para se resolver definitivamente o problema do transporte público custará caro, evidentemente. Investimentos na malha ferroviária custam bem mais do que na malha rodoviária, mas duram dez vezes mais, e propiciam um transporte mais seguro, mais confortável e mais eficiente. Será preciso investir pesadamente na malha ferroviária urbana e em transporte alternativo. Além do aumento da malha ferroviária interestadual de alta e média velocidade, é preciso expandir as linhas urbanas de metrô, criar  linhas de trens leves de superfície (a exemplo dos Strassenbahn alemães) ou trens suspensos, além dos teleféricos e das estações de bicicletas associadas a ciclovias.
O mais importante é criar um conceito de rede, capaz de interligar os pontos de conexão de forma inteligente, possibilitando reduzir o tempo de trajeto, a necessidade de muitas mudanças e os custos operacionais. Claro, os custos de um tal investimento são grandes. Mas é preciso pensar que o retorno se fará sentir de várias maneiras, ao longo de alguns anos.
No Brasil, há uma obsessão pelo transporte rodoviário e aéreo, o que não se justifica em termos econômicos e ambientais. Claro que essas formas de transporte são necessárias, mas funcionam melhor quando estão associadas a uma malha ferroviária bem distribuída e eficiente, capaz de transportar pessoas de forma mais democrática e mercadorias de forma mais eficiente.
Evidentemente, tirar o Brasil de uma estagnação de mais de 60 anos sem nenhum investimento na malha ferroviária não vai custar barato. O túnel submarino que liga o Canal da Mancha através de uma linha de trem-bala foi uma das obras mais caras da história, mas nem por isso ingleses e franceses deixaram de fazê-lo. Mesmo nos EUA, onde a cultura automobilística é tão forte, novas linhas de trem de passageiros vão sendo projetadas e construídas como alternativa ao transporte automobilístico.
Será que vamos mais uma vez perder o bonde da história?

Adalberto Müller é também professor de teoria literária na UFF e professor visitante de cinema em Lyon2, além de pesquisar sobre mídia, literatura e transportes

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