Cidadãos gregos improvisam um altar no
lugar onde se suicidou Dimitris Christoulas, farmacêutico aposentado de
77 anos. “Sou aposentado. Não posso viver nestas condições. Nego-me a
catar comida no lixo. Por isso decidi colocar fim à minha vida”, dizia a
mensagem que ele trazia no bolso.
Foto: JOHN KOLESIDIS (REUTERS)
Jornal do Brasil, 06/04/2012
A crucificação de Cristo, o suicídio e a rebelião em Atenas
Por Mauro Santayana
O homem que prenderam,
interrogaram, torturaram, humilharam, escarneceram e crucificaram, na
Palestina de há quase dois mil anos, foi, conforme os Evangelhos, um
ativista revolucionário. Ele contestava a ordem dominante, ao anunciar a
sua substituição pelo reino de Deus. O reino de Deus, em sua pregação,
era o reino do amor, da solidariedade, da igualdade. Mas não hesitou em
chicotear os mercadores do templo, que antecipavam, com seus lucros à
sombra de Deus, o que iriam fazer, bem mais tarde, papas como Rodrigo
Bórgia, Giullio della Rovere, Giovanni Médici, e cardeais como os
dirigentes do Banco Ambrosiano, em tempos bem recentes. O papa reinante
hoje, tão indulgente com os gravíssimos pecados de muitos de sua grei,
decidiu, ex-catedra, que as mulheres não podem exercer o sacerdócio.
Ao longo da História, duas têm sido as imagens daquele rapaz de Nazaré. Uma é a do filho único de Deus, havido na concepção de uma jovem virgem, escolhida pelo Criador. Outra, a do homem comum, nascido como todos os outros seres humanos, em circunstâncias de tempo e lugar que o fizeram um pregador, continuador da missão de seu primo, João Batista, decapitado porque ameaçava o poder de Herodes Antipas. Tanto João, quanto Jesus, foram, como seriam, em qualquer tempo e lugar, inimigos da ordem que privilegiava os poderosos. Por isso – e não por outra razão – foram assassinados, decapitado um, crucificado o outro.
Um e outro tiveram dúvidas, segundo os evangelistas. João Batista enviou emissário a Jesus, perguntando-lhe se era mesmo o messias que esperava, e Cristo, na agonia, indagou a Deus por que o abandonava. Os dois momentos revelam a fragilidade dos homens que foram, e é exatamente nessa debilidade que encontramos a presença de Deus: os homens sentem a presença do Absoluto quando as circunstâncias o negam. João Batista sentia-se movido pela fé, ao anunciar a vinda do Salvador.
Era um ativista, pregando a revolução que viria, chefiada por outro, pelo novo e mais poderoso dos profetas. Ao saber que Cristo pregava e realizava milagres, supôs que ele poderia ser aquele que esperava, mas duvidou. Nesse momento, moveu-se pela esperança de que o jovem nazareno fosse o Enviado – o que confirmaria a sua fé. Cristo, na hora da morte, talvez levasse a sua dúvida mais adiante, e se perguntasse se a sua morte, que previra e esperara, serviria realmente à libertação dos homens – desde que salvar é libertar. O Reino de Deus, sendo o reino da justiça, é a libertação. Daí a associação entre essa felicidade e a vida eterna, presente em quase todas as religiões. Na pregação de Cristo, a libertação começa na Terra, na confraternização entre todos os homens. Daí o conselho aos que o quisessem seguir, e ainda válido – repartissem com os pobres os seus bens, como fizeram, em seguida, os seus apóstolos, ao criar a Igreja do Caminho. Se acreditamos na vida eterna, temos que admitir que a vida na Terra é uma parcela da Eternidade, que deve ser habitada com a consciência do Todo. Assim, a vida eterna começa na precariedade da carne.
Quarta-feira passada – quando em São João del Rei, em Minas, a Igreja celebrou o Ofício das Trevas no rito antigo – um grego, Dimitris Christoulas, chegou pela manhã à Praça Syntagma, diante do Parlamento Grego, buscou a sombra de um cipreste secular, levou o revólver à têmpora, e disparou. Em seu bilhete de suicida estava a razão: aos 77 anos, farmacêutico aposentado, teve a sua pensão reduzida em mais de 30%, ao mesmo tempo em que se elevou brutalmente o custo de vida. As medidas econômicas, ditadas pelo empregado do Goldman Sachs e servidor do Banco Central Europeu, nomeado pelos banqueiros primeiro ministro da Grécia, Lucas Papademos, não só reduziram o seu cheque de aposentado, como o privaram dos subsídios aos medicamentos. “ Quero morrer mantendo a minha dignidade, antes que me veja obrigado a buscar comida nos restos das latas de lixo” – escreveu em seu bilhete de despedida, lido e relido pelos que tentaram socorrê-lo, e que se reuniam na praça.
“Tenho já uma idade idade que não me permite recorrer à força – mas se um jovem agora empunhasse um kalashinov, eu seria o segundo a fazê-lo e o seguiria”.
No mesmo texto, Christoulas incita claramente os jovens gregos sem futuro à luta armada, a pendurar os traidores, na mesma praça Syntagma, “como os italianos fizeram com Mussolini em Milão, em 1945”. O tronco do cipreste se tornou painel dos protestos escritos. Em um deles, o suicídio de Christoulas é definido como um “crime financeiro”.
A morte de Christoulas, em nome da justiça, pode trazer nova esperança ao mundo, como a de Cristo trouxe. Não importa muito se ainda não foi possível construir o reino de Deus na Terra, e tampouco importa que o nome de Cristo tenha sido invocado para justificar tantos e tão repugnantes crimes. No coração dos homens de boa vontade, qualquer que seja o seu calvário – porque todos os homens justos o escalam, onde quer que nasçam e morram – a felicidade os visita quando comungam do sentimento de amor de Cristo pela Humanidade. Nesses momentos, ainda que sejam apenas segundos fugazes, habitamos o Reino de Deus.
Nunca, em toda a História, tivemos tanto desdém pela vida dos homens, como nestes tempos de ditadura financeira universal. Estamos vivendo vésperas densas de medo, mas dentro do medo, há centelhas de esperança. A morte do aposentado, quarta-feira de trevas, em Atenas, é, com toda a carga trágica de seu gesto, partícula de uma dessas centelhas.
Estamos cansados de sangue, mas o que está ocorrendo hoje – teorizem como quiserem economistas e sociólogos – é a etapa seguinte do grande projeto dos neoliberais, que vem sendo executado sistematicamente pelos que realmente mandam no mundo e que assumiram sua governança (para usar o termo de seu agrado), mediante a Trilateral e o Clube de Bielderbeg, controlados, como se sabe, por meia dúzia de poderosas famílias do mundo. Esse projeto é o de dizimar, por todos os meios possíveis, a população, e transformar a Terra no paraíso dos 500.000 mais poderosos, ricos e eleitos, em oposição à utopia cristã. Mas é improvável que os pobres, que são a maioria, não identifiquem seu real inimigo, e se sacrifiquem, sem resistência, ao Baal contemporâneo – esse sistema financeiro que acabou com a antiga sacralidade da moeda, ao emitir papéis sem nenhuma relação com os bens reais do mundo, nem com a dignidade do trabalho. A força da mensagem do nazareno deve ser retomada: os oprimidos – negros, brancos, mestiços, muçulmanos, cristãos, budistas e ateus – devem compreender que os habita o homem, e não animais distintos, destinados à violência em proveito dos promotores da barbárie.
Ao expirar, depois de torturado, ultrajado seu corpo, humilhado, escarnecido, Cristo se tornou a maior referência de justiça. Aos 77 anos, o aposentado grego, ao matar-se, transformou-se em bandeira que ameaça iniciar, na Grécia, novo movimento em favor da igualdade – a mesma idéia que levou Péricles a fundar o primeiro estado de bem-estar social, ao reconstruir Atenas, empregar todos os pobres, e dotar os marinheiros do Pireu do pioneiro conjunto de casas populares da História.
Vinte séculos podem ter sido apenas rápido intervalo – um pequeno descanso da razão.
REVOLTA:
Protesto em Atenas depois do suicídio de um aposentado de 77 anos,
que, em bilhete, disse lhe restar apenas 'um fim digno antes de procurar comida no lixo'
que, em bilhete, disse lhe restar apenas 'um fim digno antes de procurar comida no lixo'
Suicídio, Kaláshnikov ou comer lixo?
Por Saul Leblon
'O governo de ocupação de 'Tsolakoglou' (referencia ao primeiro ministro grego que durante a guerra, em 1941, colaborou com a ocupação nazista do país) aniquilou qualquer possibilidade de sobrevivência para mim, baseada em uma aposentadoria digna que paguei por minha conta sem nenhuma ajuda do Estado, durante 35 anos. Dado que minha idade avançada não me permite recorrer à força - embora se um grego empunhasse um Kaláshnikov, eu seria o segundo a fazê-lo -, não me restou qualquer outra solução para um final digno, antes de ser obrigado a buscar comida no lixo. Tenho fé que um dia os jovens sem futuro se erguerão em armas e na praça Sintagma pendurarão os traidores da nação, como os italianos fizeram com Mussolini em 1945' (Bilhete deixado por Dimitris Christoulas, farmaceutico aposentado de 77 anos, que se matou com um tiro a poucos metros do Parlamento grego, nesta 4ª feira).
A Grécia encontra-se em recessão desde 2008. Sucessivos pacotes de 'ajuste ortodoxo' exigidos pelos credores, em troca de empréstimos para pagar os próprios bancos e fundos especulativos, fizeram explodir a pobreza e o desemprego que atinge quase 50% entre os jovens; o índice de suicídios cresceu 40% nos primeiros cinco meses de 2011. O último 'acordo' de ajuste assinado entre Atenas e a troika do euro, em fevereiro deste ano, passará à história como o mais draconiano e humilhante exemplo da rendição de um país aos mercados em tempos modernos.
O que se deliberou é pior até que os termos devastadores do Tratado de Versalhes, de 1919, que colocou a derrotada Alemanha da Primeira Guerra de joelhos, impondo-lhe reparações equivalentes a 3% do PIB por longos anos.
O 'socorro' acordado por Atenas (130 bi de euros) terá como contrapartida 150 mil demissões na esfera pública; cortes de salários e aposentadorias, privatizações em massa, a supressão de serviços essenciais e até de medicamentos na rede de saúde. Depositado em conta bloqueada e supervisionada por interventores do euro, o recurso será destinado prioritariamente ao pagamento de juros aos credores. Entre o final de abril e começo de maio, a Grécia vai às urnas eleger um novo parlamento; mais de um centurião do euro já sugeriu adiar o pleito, para o 'bem do ajuste acordado''.
Para o bem dos interesses rentistas seria preciso colocar sob regime de exceção toda uma Europa incinerada pelo incêndio neoliberal que excreta recessão, desemprego e desespero da Grécia à Espanha, de Portugal à Irlanda. Em meio às labaredas as urnas ainda respiram: dia 22 de abril, antes do escrutínio grego, a França elege um novo presidente; na Espanha triturada por cem dias de governo direitista, acontecem eleições regionais. A evocação rebelde do farmaceutico Dimitris Christoulas convoca a consciência europeia a empunhar o voto com a determinação de quem maneja um lendário fuzil Kaláshnikov.
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