Folha de São Paulo, 23/04/12
A Argentina tem razão
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
A
Argentina se colocou novamente sob a mira do Norte, do "bom senso" que
emana de Washington e Nova York, e decidiu retomar o controle do Estado
sobre a YPF, a grande empresa petroleira do país que estava sob o
controle de uma empresa espanhola. O governo espanhol está indignado, a
empresa protesta, ambos juram que tomarão medidas jurídicas para
defender seus interesses. O "Wall Street Journal" afirma que "a decisão
vai prejudicar ainda mais a reputação da Argentina junto aos
investidores internacionais". Mas, pergunto, o desenvolvimento da Argentina depende dos capitais internacionais, ou são os donos desses capitais que não se conformam quando um país defende seus interesses? E, no
caso da indústria petroleira, é razoável que o Estado tenha o controle
da principal empresa, ou deve deixar tudo sob o controle de
multinacionais?
Em relação à segunda pergunta parece que hoje os países em desenvolvimento têm pouca dúvida.
Quase todos trataram de assumir esse controle; na América Latina, todos, exceto a Argentina.
Não faz sentido deixar sob controle de empresa estrangeira um setor estratégico para o desenvolvimento do país como é o petróleo, especialmente quando essa empresa, em vez de reinvestir seus lucros e aumentar a produção, os remetia para a matriz espanhola.
Além disso, já foi o tempo no qual, quando um país decidia nacionalizar a indústria do petróleo, acontecia o que aconteceu
no Irã em 1957. O Reino Unido e a França imediatamente derrubaram o
governo democrático que então havia no país e puseram no governo um xá
que se pôs imediatamente a serviço das potências imperiais.
Mas o que vai acontecer com a Argentina devido à diminuição dos investimentos das empresas multinacionais? Não é isso um "mal maior"? É isso o que nos dizem todos os dias essas empresas, seus governos, seus economistas e seus jornalistas.
Mas um país como a Argentina, que tem doença holandesa moderada (como a
brasileira) não precisa, por definição, de capitais estrangeiros, ou
seja, não precisa nem deve ter deficit em conta corrente; se tiver
deficit é sinal que não neutralizou adequadamente a sobreapreciação
crônica da moeda nacional que tem como uma das causas a doença
holandesa.
A melhor prova do que estou afirmando é a China, que cresce com enormes superavits em conta corrente. Mas a
Argentina é também um bom exemplo. Desde que, em 2002, depreciou o
câmbio e reestruturou a dívida externa, teve superavits em conta
corrente. E, graças a esses superavits, ou seja, a esse câmbio
competitivo, cresceu muito mais que o Brasil. Enquanto, entre 2003 e 2011 o PIB brasileiro cresceu 41%, o PIB argentino cresceu 96%.
Os
grandes interessados nos investimentos diretos em países em
desenvolvimento são as próprias empresas multinacionais. São elas que capturam os mercados internos desses países sem oferecer em contrapartida seus próprios mercados internos. Para nós, investimentos de empresas multinacionais só interessam quando trazem tecnologia, e a repartem conosco. Não precisamos de seus capitais
que, em vez de aumentarem os investimentos totais, apreciam a moeda
local e aumentam o consumo. Interessariam se estivessem destinados à
exportação, mas, como isso é raro, eles geralmente constituem apenas uma senhoriagem permanente sobre o mercado interno nacional.
.....
Viomundo, 24 de abril de 2012
Mídia brasileira a serviço da Repsol e da Espanha
Por Dr. Rosinha e Marcelo Zero, especial para o Viomundo
A cobertura que a mídia brasileira tem feito da recente reestatização da YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), maior empresa de hidrocarbonetos da Argentina, está mais a serviço da Repsol e da Espanha do que a serviço do leitor brasileiro, que merece informação acurada, e que não brigue com os fatos.
Para confirmar essa avaliação, basta ler alguns editoriais, reportagens ou acompanhar o noticiário de rádio e TV no Brasil. De uma maneira geral, os meios de comunicação classificam a decisão do governo argentino de “injustificada”, “irracional”, “populista”, “ideológica”, “demagógica” e outros adjetivos menos elevados.
Alguns “analistas” afirmam que a Argentina tem uma “capacidade ilimitada de errar”, e que a medida levará o país vizinho ao isolamento político e econômico. Outros dizem também que a decisão de Cristina Kirchner prejudicará toda a região, afugentará novos investimentos e poderá atingir os interesses da Petrobras na Argentina.
Não raras vezes a cobertura é acompanhada pelo preconceito existente no Brasil, em relação à Argentina e aos argentinos, retratados como seres irracionais, sujeitos a arroubos passionais e irresponsáveis.
Ao contrário, porém, do que dão a entender as notícias veiculadas no Brasil, a população da Argentina recebeu bem o ato de reestatização e apoia a decisão. No domingo (22/4), o jornal “La Nación”, que não é de esquerda, divulgou uma pesquisa que mostra que 62% dos argentinos apoiam a decisão de Cristina. Entre os entrevistados, 26% afirmam estar “muito de acordo” e 36%, “de acordo” com a decisão. Segundo a pesquisa divulgada, 23% disseram estar “em desacordo” e somente 8% rejeitaram a medida.
Ora, a população argentina não é irracional. É, na média, mais bem informada do que nossos “analistas”. Há, de fato, razões sólidas para esse posicionamento.
A YPF foi privatizada em 1999 pelo governo neoliberal de Menem, que levou o país à pior depressão econômica da sua história, desempregando e empobrecendo milhões de argentinos. Agora, segundo o próprio “La Nación”, inclusive Menem concorda com a ação de Cristina Kirchner de reestatizar a companhia.
Assim como no Brasil do governo FHC, as privatizações na Argentina foram, em sua maioria, muito mal feitas. Além dos questionamentos relativos à lisura dos leilões e dos preços baixos que a venda do patrimônio público atingiu, os resultados da maior parte das privatizações foram custos muito altos para o consumidor e serviços de baixa qualidade. Outra consequência destas privatizações: a perda de controle sobre alguns setores estratégicos da economia e a falta de investimentos necessários para ampliar e melhorar serviços importantes.
Este péssimo resultado geral fez com que os governos de Néstor e Cristina Kirchner se vissem obrigados a intervir em alguns setores que haviam sido privatizados como, por exemplo, Águas Argentinas, os Correios e a Aerolíneas Argentinas. Em todos esses setores, o quadro era de sucateamento, ausência de investimentos e serviços de baixa qualidade.
Portanto, a reestatização de 51% das ações da YPF se insere em um quadro maior de tentativa de recuperação do controle da gestão estratégica de setores econômicos relevantes e de melhoria dos serviços prestados aos consumidores argentinos.
Na análise sobre a decisão argentina de intervir no setor de hidrocarbonetos do país, deve-se levar em consideração, em primeiro lugar, a grande dependência que o país tem, no que tange à produção de gás e petróleo. Cerca de 83% da matriz energética da Argentina está concentrada em hidrocarbonetos: 32% em petróleo e 51% em gás natural. No curto e médio prazo, essa dependência não deverá se alterar, pois a Argentina não tem grande potencial hidrelétrico a ser explorado e tampouco programas robustos de exploração da biomassa, como o Brasil possui.
Sob os auspícios da Repsol, entre 2008 e 2011, os argentinos viram a produção de petróleo cair 9% e a de gás natural, 10%. Concomitantemente, as reservas provadas de petróleo do país encolheram 4% e as de gás natural se reduziram em 19%, no período de 2007 a 2010.
Considere-se, adicionalmente, que essas reduções na produção interna vêm ocorrendo num quadro de significativo crescimento do PIB e da demanda por energia. No período 2002-2010, o crescimento médio real do PIB argentino foi de 8% e o incremento da demanda energética situou-se em 5% ao ano.
Sem dúvida alguma, essa crescente demanda se contrapõe ao estrangulamento energético que pode comprometer o desenvolvimento sustentado da Argentina e enterrar os planos de reconstrução da sua indústria doméstica, que havia sido muito fragilizada por décadas de liberalismo irresponsável.
O aumento da demanda e o estrangulamento da produção levaram à necessidade da importação de energia (hidrocarboneto e gás), o que acarretou um déficit expressivo (3,4 bilhões de dólares) na balança de comércio exterior de energia da Argentina, em 2011.
Tudo isso foi consequência, em boa parte, da inação da Repsol na Argentina. De fato, a Repsol não vinha investindo o suficiente para fazer frente às necessidades do desenvolvimento da Argentina. Ela preferiu remeter os lucros obtidos naquele país à sua matriz em crise. Imaginem se, no Brasil, houvesse a “Petrobrax” sonhada pelos neoliberais tupiniquins, e se tal empresa estivesse remetendo seus lucros para o exterior ao invés de investi-los na prospecção de novas jazidas, como as do pré-sal. Seria a mesma situação.
O objetivo do governo argentino ao reestatizar a YPF é, assim, recuperar sua “soberania energética” e superar os atuais gargalos de seu suprimento de energia, como o Brasil fez, com muito êxito. O recém-descoberto potencial de produção da bacia de Vaca Muerta, uma enorme jazida de shale gas, a terceira maior do mundo, uma espécie de pré-sal argentino, augura um grande futuro para a YPF estatizada, ao contrário do que dizem os “analistas” da mídia brasileira, desinformada e desinformadora.
Mas nem todos no Brasil compartilham da visão desinformada da velha mídia. Um dos antigos defensores da redução do Estado e das privatizações, Luiz Carlos Bresser Pereira reviu suas posições anteriores e passou a ser um crítico daquilo que defendia.
Bresser Pereira, no artigo “A Argentina tem razão” (Folha de São Paulo, 23/04/12), afirma que “não faz sentido deixar sob controle de empresa estrangeira um setor estratégico para o desenvolvimento do país como é o petróleo, especialmente quando essa empresa, em vez de reinvestir seus lucros e aumentar a produção, os remetia para a matriz espanhola”.
De fato, deixar um setor estratégico sob controle de uma empresa estrangeira que não investe no país só faz sentido para boa parte da mídia brasileira.
O atual governo argentino tomou uma decisão perfeitamente racional e razoável, ao contrário do que insinuam analistas da velha mídia. Esta sim, manipuladora e desinformada, pratica uma espécie de populismo midiático conservador.
Ao invés de informar, as empresas de mídia tentam deformar os fatos e conformar a sociedade de acordo com os seus próprios interesses. Para além de desinformar os cidadãos comuns, o populismo midiático busca defender interesses de investidores privados que não têm compromisso com o desenvolvimento de nossa região.
Dr. Rosinha, médico com especialização em Pediatria, Saúde Pública e Medicina do Trabalho, é deputado federal (PT-PR). No twitter: @DrRosinha
Marcelo Zero, sociólogo, é assessor da bancada do PT no Senado Federal.
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