O relator da ação, Marco Aurélio Mello, afirmou que dogmas religiosos
não podem guiar decisões estatais e que fetos com ausência
parcial ou total de cérebro não tem vida."Dai a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus", declarou durante o julgamento.
UOL, 12/04/2012 - 17h29
Maioria do Supremo apoia interromper gravidez de anencéfalos
Maurício Savarese
Do UOL, em Brasília
A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) apoia a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos,
também chamada antecipação terapêutica do parto - foram sete
manifestações favoráveis e uma contra. O voto decisivo foi dado nesta
quinta-feira (12) pelo vice-presidente da Corte, Carlos Ayres Britto.
Até a proclamação do resultado, os ministros podem rever suas decisões.
Dois membros da mais alta corte do país ainda não se manifestaram sobre o
assunto.
O julgamento havia sido suspenso ontem, com cinco ministros favoráveis à interrupção da gravidez nesses casos e apenas um contra, Ricardo Lewandoski. Vale lembrar que, caso se confirme a decisão favorável dos ministros sobre a interrupção da gravidez de anencéfalos, caberá a gestante decidir se leva a gestação adiante ou realiza a antecipação terapêutica do parto.
Para a maioria dos ministros, não há aborto no caso dos anencéfalos porque não há vida em potencial. Consequentemente, não há crime. O aborto hoje no Brasil é permitido apenas em casos de estupro e de risco à vida da gestante. Além
de Ayres Britto, defenderam a tese o relator Marco Aurélio de Mello,
Rosa Maria Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia, ontem, e
Gilmar Mendes, nesta quinta.
Para o dissidente Lewandowski,
a interrupção da gravidez de anencéfalos é aborto e não foi autorizada
pelo Poder Legislativo, o que transformaria essa medida um crime. Entre
os 11 ministros, apenas Dias Tóffoli não participa do julgamento, porque
já tratou do caso quando era advogado-geral da União.
“[A interrupção da gravidez de anencéfalos] só é aborto em linguagem coloquial. Não é aborto em linguagem jurídica”, completou o vice-presidente da Corte. “Se todo aborto é uma interrupção de gravidez, nem toda interrupção de gravidez é um aborto para os fins penais”, disse o Ayres Britto.
“O
crime deixa de existir se o deliberado desfazimento da gestão não é
impeditivo da transformação desse organismo em uma pessoa humana”, disse Ayres Britto. O ministro ainda comparou os anencéfalos a “uma crisálida que jamais chegará ao estágio de borboleta”, porque “jamais alçará voo”.
Gilmar
Mendes também chamou a interrupção de fetos anencéfalos de aborto, mas
avaliou, diferentemente de Lewandowski, que o caso “está compreendido
entre as duas clausulas excludentes da ilicitude”, ou seja, os dois
motivos pelos quais o aborto é legal: estupro ou risco de vida da mãe. O
ministro considerou o risco de vida da mãe, por acreditar que a gravidez de anencéfalo é torturante, por trazer problemas psicológicos e físicos, como outros ministros citaram. Mendes afirmou também que a saúde do feto não é a questão central, já que no caso do aborto por estupro essa possibilidade nem é levada em conta.
“A falta de um modelo institucional adequado contribui para essa verdadeira tortura física e psíquica, causando danos talvez indeléveis, na vida dessas pessoas”, afirmou. Ele disse ainda que o Ministério da Saúde deveria divulgar normas para diagnósticos claros de anencefalia. E que o ideal seriam dois laudos médicos confirmando a anencefalia antes que haja a interrupção a gravidez. O ministro admitiu ainda que a decisão do Supremo não impede o Congresso de editar uma lei que trate do assunto.
“A falta de um modelo institucional adequado contribui para essa verdadeira tortura física e psíquica, causando danos talvez indeléveis, na vida dessas pessoas”, afirmou. Ele disse ainda que o Ministério da Saúde deveria divulgar normas para diagnósticos claros de anencefalia. E que o ideal seriam dois laudos médicos confirmando a anencefalia antes que haja a interrupção a gravidez. O ministro admitiu ainda que a decisão do Supremo não impede o Congresso de editar uma lei que trate do assunto.
Ainda votarão os ministros Celso de Mello e o presidente da Corte, Cézar Peluso. as de morte segura" Reprodução/Montagem UOL
Primeiro dia
Relator da ação no STF, Marco Aurélio afirmou que dogmas religiosos não podem guiar decisões estatais e fetos com ausência parcial ou total de cérebro não têm vida. A ministra Rosa Maria Weber admitiu que conceitos científicos são mutáveis e considerou que anencéfalos podem sobreviver por meses – o que médicos negam. Mas acabou votando a favor da interrupção da gravidez nesses casos "porque não está em jogo o direito do feto, mas sim da mulher".
Relator da ação no STF, Marco Aurélio afirmou que dogmas religiosos não podem guiar decisões estatais e fetos com ausência parcial ou total de cérebro não têm vida. A ministra Rosa Maria Weber admitiu que conceitos científicos são mutáveis e considerou que anencéfalos podem sobreviver por meses – o que médicos negam. Mas acabou votando a favor da interrupção da gravidez nesses casos "porque não está em jogo o direito do feto, mas sim da mulher".
Ao contrário do que defendem entidades religiosas, o relator afirmou que o feto anencéfalo não tem como viver. "Hoje é consensual no Brasil e no mundo que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro não tem vida", disse. "Aborto é crime contra a vida em potencial. No caso da anencefalia, a vida não é possível. O feto está juridicamente morto."
Lewandowski
refutou a tese, levando em conta a vontade dos legisladores ao
escreverem as condições em que o aborto é permitido. “Até agora os
parlamentares decidiram manter intacta a lei penal, excluída as duas
hipóteses [estupro e risco de vida da mãe]”, disse. O ministro afirmou
que o Supremo só pode legislar de forma negativa, “para extirpar do
texto jurídico o que contradita ao texto constitucional".
"Além
de discutível do ponto de vista ético e jurídico, [a medida] abriria as
portas para a interrupção de inúmeros embriões que sofrem ou venham a
sofrer de problemas genéticos que levem ao encurtamento de suas vidas
intra ou extrauterinas", afirmou.
Em
uma antecipação do seu voto, o ministro Joaquim Barbosa acompanhou o
relator e remeteu a decisões antigas que já tomou na corte.
Luiz Fux apelou à dignidade da vida da mãe. “É até desumano ler esses efeitos nocivos e deletérios para a saúde da mulher”, disse ele, referindo-se a problemas recorrentes nas mulheres após gestações desse tipo.
Desvincular a decisão o Supremo do aborto geral foi o centro do voto da ministra Cármen Lúcia. "O Supremo não está decidindo sobre o aborto. Decisões judiciais são oferecidas de acordo com objeto apresentado para a decisão", disse.
Na
sessão de quarta-feira, grupos católicos se manifestaram diante do STF,
incluindo um casal com uma filha vítima de acrania – problemas de
formação do crânio. A ação em julgamento trata exclusivamente de casos de anencefalia (ausência da maior parte do cérebro).
Tramitação
A
ação chegou ao STF em 2004, por sugestão da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde (CNTS). A entidade defende a antecipação do
parto quando há má formação cerebral sem chance de longa sobrevivência
para a criança. Para grupos religiosos, incluindo a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), o princípio mais importante é o de que a
vida deve se encerrar apenas de forma natural.
A prática já foi autorizada pela Justiça em mais de 5.000 casos desde 1989,
segundo especialistas. Em julho de 2004, uma liminar do ministro Marco
Aurélio de Mello autorizou a interrupção, independentemente de ordem
judicial específica. A decisão vigorou por 112 dias, período em que enfrentou forte pressão da Igreja Católica,
e foi derrubada pelo plenário do STF em outubro do mesmo ano porque a
maioria dos ministros considerou que não havia urgência para a sua
concessão.
Anencefalia
A
anencefalia causada por um defeito no fechamento do tubo neural
(estrutura que dá origem ao cérebro e à medula espinhal). Ela pode
surgir entre o 21º e o 26º dia de gestação. O diagnóstico é feito no
pré-natal, a partir de 12 semanas de gestação, inicialmente por meio de
ultrassonografia. Entidades médicas afirmam que o Brasil tem aproximadamente um caso para cada 700 bebês nascidos.
A
grande maioria das crianças que nascem sem cérebro morrem instantes
depois. Além de carregar no útero um bebê fadado a viver possivelmente
por alguns minutos, as mães ainda têm de lidar com a burocracia de
registrar o nascimento e o óbito no mesmo dia. O advogado da CNTS na ação, Luis Roberto Barroso, classifica a gravidez de anencéfalos de “tortura com a mãe”.
Os
críticos da interrupção de gravidez de anencéfalos citam um caso de
2008 em Patrocínio Paulista, interior de São Paulo. Marcela de Jesus
Ferreira sobreviveu um ano e oito meses porque a ausência de cérebro não era total. Marco Aurélio disse em seu pronunciamento que o caso não era de anencefalia, conforme confirmado por especialistas.
De
acordo com uma pesquisa do instituto Datafolha, em 2004 havia 67% de
paulistanos favoráveis a interromper a gravidez de bebês com
anencefalia.
Entenda a anencefalia e a merocrania, outro tipo de malformação
Na
anencefalia, há a ausência da maior parte do cérebro e da calota
craniana (parte superior e arredondada do crânio). Na merocrania, uma
condição extremamente rara, há um defeito menos acentuado da caixa
craniana e o resquício do cérebro é coberto por uma membrana.
Ambas as anomalias são fatais, mas, no segundo caso, a sobrevida costuma ser maior. O tronco cerebral, quando bem formado, garante ao feto funções vitais como respiração e batimentos cardíacos.
Ambas as anomalias são fatais, mas, no segundo caso, a sobrevida costuma ser maior. O tronco cerebral, quando bem formado, garante ao feto funções vitais como respiração e batimentos cardíacos.
Quarta-Feira, 11 de Abril de 2012
Aborto não é um prazer e deve ser um direito
Katarina Peixoto
Não conheço uma mulher que tenha abortado e que tenha saído saltitante ou mesmo tranquila depois de consumado o ato. E mesmo mulheres que, como eu, são no mínimo agnósticas. Abortar é doloroso, é incapacitante em alguma medida um tanto indizível, adoece a alma, machuca, interdita coisas. Aborto não é motivo de alegria para ninguém.
As razões por que um aborto dói variam e não importa exatamente quais. Não interessa: pode ser que alguma mulher se sinta aliviada ou que não se deprima depois de um procedimento de interrupção de gravidez e não há razão que autorize a acusação de imoralidade sobre essa pessoa, menos ainda de delinquência.
Evitar o sofrimento nem sempre implica não sofrer. Aliás, quase nunca, ensina a experiência. Evitar mais sofrimento pode implicar menos sofrimento. Esta talvez seja uma alternativa decente e no caso do aborto parece ser uma alternativa compromissada com a vida.
A mulher tem essa prerrogativa historicamente bizarra de ter o seu corpo e o seu prazer sexual invadidos pelos dispositivos morais que parasitam as sociedades adoecidas de religião. Dispositivos morais religiosos, como aprendemos nas escolas, não são necessariamente dispositivos éticos. Entre o costume e a decência a regra é a distância, não a proximidade.
No caso do aborto a regra tem sido a indecência, a indignidade e a covardia. Os números são escabrosos de mulheres mortas por falta de reconhecimento de um direito elementar, de uma prerrogativa da igualdade de direitos.
Não é demais, infelizmente, lembrar que somente mulheres muito pobres morrem por conta de aborto. E que médicos enriquecem no mercado ilícito de abortos limpinhos, em que cometem as suas obrigações naturais sobre as quais não pode haver imputação penal ou civil, em caso de erro médico, por exemplo.
A Política brasileira parece que amadurece quando as forças das trevas se manifestam com liberdade. Por mais paradoxal que isso soe, o que se passa parece mais com um avanço do que com uma ameaça ou com um retrocesso.
O espanto que pastores evangélicos ou que um bispo revisionista do holocausto podem causar hoje na sociedade é muito bem vindo. Um pastor ministro causar rebuliço nas bases que apoiam o governo federal é uma coisa que tem um lado luminoso, obviamente que na oposição a tal gesto infeliz.
Durante os anos de resistência à ditadura e de reconstrução da democracia brasileira, as agendas dos direitos civis e das liberdades políticas eram prerrogativas de guetos. Quem defendia o meio ambiente, os gays, as mulheres, as crianças e a laicidade do estado republicano eram setores em regra ligados às esquerdas partidárias, não só do PT, mas do PMDB, do PSDB, do PSB e etc. A grande agenda era o controle inflacionário, a distribuição de renda, o crescimento econômico, a dívida externa, o desenvolvimento, a fome, a miséria, a destruição da esfera pública estatal, a privatização, a não privatização, a industrialização, a desindustrialização. E a pequena grande agenda de ocasião midiática era e segue sendo a corrupção, mas ela, como se sabe, é sempre ou quase sempre cortina de fumaça, vide o molequinho, o jornalista e o editor organizados com o contraventor lá de Goiânia.
O mundo dos direitos civis e das liberdades políticas parecia um tanto distante da "vida real" brasileira e hoje, passadas décadas de refazimento do quadro democrático institucional do país, finalmente demos um passo adiante.
Ao contrário do que apressadamente se pode perceber, Malafaias e Crivellas emergiram como exceções e diferenças frente aos avanços democráticos. E por isso, e unicamente por isso eles se tornaram publicamente repugnantes. Porque a existência desses lixões religiosos sempre parasitou a vida simbólica e cultural do Brasil. Este é um país católico e protestante, evangélico, místico, desde sempre.
Quando é que a República se tornou um valor reivindicado com tamanha clareza e ira? Hoje, não por acaso quando o fim da miséria e da fome endêmica e a estabilidade democrática se tornaram possibilidades reais no horizonte.
Defender o casamento gay no Brasil, hoje, não é mais uma idiossincrasia dos malucos da Quarta Internacional, mas uma agenda defendida por quem tem tico e teco em bom estado mental e moral. E isso é bom. É motivo de reflexão e de reconhecimento do quanto avançamos nos requisitos materiais e políticos do exercício pleno da democracia. Não estou dizendo com isso que é bom ter religiosos na base do governo nem mesmo que é razoável ter religiosos num partido de esquerda. Mas o meu jacobinismo sem guilhotina é decerto muitíssimo menos relevante que o estado das coisas no país, hoje, e sobretudo, do que o direito das mulheres interromperem gravidez indesejada.
Defender a abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira e o escárnio e a desmoralização dos parasitas religiosos da Política virou um lugar comum de quem sabe e sobretudo de quem vive o estado de direito no cotidiano. Não se trata mais de uma coisa de hippies, de militantes profissionais partidários e nem de estudantes de graduação de direito bem formados na tradição republicana e, vai de si, antijusnaturalista.
Defender o direito da mulher à interrupção de gravidez indesejada anda de par com o horror trivial que sentimos frente à isenção tributária de instituições religiosas, e à repulsa que Malafaias e Dom Dadeus Grings causam em nossos fígados. Essa gente não tem mais lugar de direito "natural", misturados, indiferentes, entre quem se julga democrático e leva a sério as próprias crenças.
Para quem é capaz de ler um livrinho por ano, a defesa desse direito das mulheres e da sociedade se tornou intuitiva. E isso é muito bom.
Também não é estranho que o STF esteja ainda às voltas com o debate sobre a legitimidade da interrupção de gravidez em caso de anencefalia, embora seja em si mesmo algo lamentável, pelo atraso e pela insuficiência da demanda. O Judiciário é e em certa medida deve ser um poder retardatário. O direito vem depois da história e na melhor das hipóteses, que é aquela legada pelo positivismo jurídico, ele vem junto com a história e pode, então, fazer história no sentido esclarecido, isto é, racional, da palavra.
O que se tornou estranho e inaceitável é a acusação de indecência, de imoralidade e de crime sobre nós, mulheres, que já abortamos ou que podemos vir a abortar. Tornou-se estranho mesmo, muito mais estranho e indecente do que o era há dez ou quinze ou vinte anos atrás. Não nos esqueçamos que a esquerda brasileira sempre foi predominantemente católica, para a sua desgraça.
O jusnaturalismo que saiu do armário militantemente desde as últimas eleições presidenciais é a maior ameaça ao processo democrático em curso no país. O jusnaturalismo é irmão do fascismo e inimigo da democracia. Por isso, também, a luta pela positivação do direito da interrupção de gravidez indesejada, enquanto indesejada, é requisito inegociável não só da luta das mulheres, mas do estado de direito moderno, que sobrepujou a tralha religiosa da constituição moderna do conceito de Estado de direito.
À Fé o que lhe é de direito, e ao Direito o que lhe é de Direito, cada um na sua, como deve ser, segundo a Constituição Brasileira. Nenhuma mulher deve respeitar juridicamente o que um padre, um pastor ou pai de santo lhe recomenda nos seus templos. Quem leu Tomás de Aquino e entendeu alguma coisa pode saber disso.
Aborto não é prazer, nem é pecado. Aborto deve ser um direito, nada menos e nada mais.
(*)
Bacharela pela Faculdade de Direito do Recife, Mestre em Filosofia,
Doutoranda em Filosofia Moderna, na UFRGS, sub-editora e tradutora da
Carta Maior.
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12 de abril de 2012
“Crueldade ímpar impedir interrupção de gravidez”
Por Conceição LemesO tubo neural é a estrutura embrionária que dá origem ao cérebro e à medula espinhal. Defeitos no seu fechamento podem comprometer o desenvolvimento do feto. A anencefalia é a doença mais grave. O feto não tem cérebro.
“É uma doença multifatorial”, explica a geneticista, professora e pesquisadora Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP. “Não sabemos exatamente a causa. O que sabemos é que a anencefalia é resultado da interação de vários genes com o ambiente.”
Ou seja, tem um componente genético – o que os cientistas chamam de genes de predisposição — e algum fator ambiental deve fazer com que ela se manifeste.
“Não existe consenso de quando começa a vida, mas existe consenso de que ela termina quando cessa a atividade cerebral. Tanto que se desligam os aparelhos, muitos familiares doam os órgãos e todo mundo aplaude o gesto de solidariedade”, observa Mayana. “No caso da anencefalia, não existe nem início da atividade cerebral.”
“De forma que não considero aborto a interrupção da gravidez em caso de feto anencéfalo, porque é uma morte certa”, prossegue Mayana. “Então, interromper uma gestação numa situação como essa é simplesmente não prorrogar o sofrimento.”
No seu entender, é uma questão tão óbvia que não deveria nem entrar em votação na altura dos acontecimentos. Antigamente, não havia possibilidade de se saber no começo da gestação que o feto tinha anencefalia. Hoje, o diagnóstico já é feito no terceiro mês.
“ Você vai deixar passar nove meses para dizer a essa mulher, em vez de comprar um enxoval de bebê, comprar um caixão?”, questiona Mayana. “É uma crueldade ímpar impedir que ela interrompa essa gestação, sabendo desde os três meses que vai enterrar aquele feto.”
Além disso, é uma gravidez complicada. Como o feto não absorve direito o líquido amniótico, ele aumenta no espaço uterino, dando distensão de útero. O parto também é mais difícil, porque o feto não reage normalmente. A mulher produz leite, tem de secá-lo.
“É um perde-perde”, avalia Mayana. “Antigamente existia a expectativa de que fosse possível doar os órgãos do feto com anencefalia. Hoje, a gente sabe que não servem nem para transplante, pois são órgãos malformados — funcionalmente e anatomicamente.”
“Por tudo isso, se mulher quer levar adiante a gravidez de feto anencéfalo, tudo bem. É um direito dela”, enfatiza Mayana. “Mas não se pode obrigar a manter essa gestação a mulher que não quiser. Defendo não só que o STF libere a interrupção de gravidez em caso de anencefalia, mas também que o Estado dê a todas condições adequadas para isso ocorrer.”
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12 de abril de 2012
Mulheres saúdam vitória do Estado laico e da cidadania
Por Conceição LemesO Supremo Tribunal Federal (STF) prossegue nesta quinta-feira 12, o julgamento para decidir se a mulher grávida de feto anencéfalo (sem cérebro) pode interromper a gravidez se o desejar.
Seis ministros já votaram. Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia acompanharam o voto do relator, o ministro Marco Aurélio Mello, que concluiu a favor da descriminalização do aborto nos casos de anencefalia. Apenas Ricardo Lewandowski votou contra.
“O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. O fato de respirar e ter batimento cardíaco não altera isso”, observou Marco Aurélio Mello.” Ao Estado não é dado (o direito de) se intrometer. Ao Estado cabe o dever de informar e prestar apoio médico e psicológico antes e depois da decisão (da mulher).”
“Numa democracia, não é legítimo excluir qualquer ator da arena de decisão. Contudo, para se tornar aceitáveis juridicamente, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser traduzidos em termos de razões públicas. Os argumentos devem ser impostos em termos cuja adesão independem dessa ou daquela crença”, enfatizou em outro trecho da sua manifestação. “Ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover qualquer religião.”
Faltam votar Ayres Brito e Celso de Mello, que anteriormente se manifestaram a favor. Também Gilmar Mendes e Cezar Peluso, que nunca opinaram sobre o tema. O ministro Dias Toffoli se declarou impedido, porque, quando era advogado-geral da União, se manifestou publicamente a favor da liberação.
A expectativa é que o STF libere hoje o aborto de fetos sem cérebro. Por isso, pedimos a algumas mulheres que tiveram participação ativa nessa batalha de muitos anos que avaliassem o resultado.
Beatriz Galli, advogada, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da OAB-RJ e assessora de políticas para a América Latina do Ipas: “Estamos vivendo um momento histórico. Vitória para a cidadania e os direitos reprodutivos das mulheres brasileiras. Finalmente, o Supremo colocará fim à insegurança jurídica que abrange o tema até hoje no Brasil, declarando o direito constitucional das mulheres de optar por continuar ou interromper a gravidez nestas condições, com base na sua autonomia, dignidade, liberdade, saúde física e mental. O Brasil, assim, honrará compromissos e obrigações internacionais decorrentes da ratificação dos principais tratados internacionais de direitos humanos”.
Fátima Oliveira, médica,membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe (RSMLAC): “Do meu ponto de vista, da janela de onde espio e assunto o mundo, uma sociedade democrática deve aprender a referendar a alteridade como um valor. Os votos do STF a favor da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia colocam em cena dois temas valiosos para quem ama a liberdade: a ampliação da democracia e a consolidação do Estado laico. Eles nos mostram o caminho do aprendizado do respeito ao direito de decidir das mulheres quando não desejam levar adiante uma gravidez de feto inviável, ao mesmo tempo em que também não faz juízo de valor sobre as mulheres que, por questões de fórum íntimo, pensam de modo diferente”.
Gilda Cabral, Cfemea: “Ao reconhecer o direito de a mulher interromper uma gravidez de anencéfalo, o STF reafirma a laicidade do Estado. Saem ganhando a democracia e o povo brasileiro. Estão de parabéns os Ministros e as Ministras que votaram pela Justiça e pela Vida das Mulheres”.
Jandira Queiroz, ativista feminista: “Parabéns aos ministros do STF a favor da laicidade do Estado e contra o sofrimento desnecessário das mulheres”
Magaly Pazello, doutoranda da Escola de Serviço Social/UFRJ e pesquisadora do EMERGE/UFF: “Como bem observaram os ministros e ministras do STF, é necessário não apenas reconhecer a verdadeira via crucis que as mulheres enfrentam quando se vêem gestando um feto anencéfalo, mas também compreender a tragédia que isso pode significar na vida dessas mulheres. A negação de seu sofrimento e a imposição da gravidez compulsória representam, de fato, um regime de tortura imposto pelo Estado e isso é inadmissível. Os votos proferidos ontem revelam a complexidade do tema, mas também o atraso em que o Brasil se encontra na garantia dos direitos humanos das mulheres no tocante à sua autonomia reprodutiva. Por isso, é necessário corrigir essa situação devolvendo às mulheres a devida segurança jurídica para que possam decidir, elas mesmas, conforme suas convicções e crenças. Parabéns ao CNTS [Conselho Nacional dos Trabalhadores em Saúde] e ao Anis [Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero] por sustentarem essa ação até aqui!
Margareth Arilha, presidente da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR), pesquisadora do Núcleo de Estudos em População da Unicamp: “Um parto vitorioso, nascimento de uma posição saudável cerzida com a contribuição de um coletivo de mulheres e de homens, pessoas que, desde diferentes lugares e posições, acreditaram e fizeram acontecer, iluminando um caminho difícil, ou seja, o de diminuir sofrimentos e injustiças, procurando construir direitos e bem-estar especialmente das mulheres.”
Sonia Corrêa, pesquisadora associada da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política: “Os debates de ontem no STF sinalizam para a eliminação da injustiça e sofrimento no mundo da vida. Reconhecidos os argumentos da ADPF 54, milhares de mulheres brasileiras poderão decidir sobre suas vidas sem o constrangimento da lei. É o anúncio de uma vitória de Antígona clamando às portas da cidade. No plano das normas que regulam a vida social – num mundo em que o poder e influência do dogmatismo religioso se espraiam e penetram, incessantemente, nas instituições públicas – foi um momento de re-fundação dos princípios da laicidade, movimento necessário nas condições contemporâneas. A frase do professor Luis Barroso é o seu signo: O estado não engravida”.
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