segunda-feira, 30 de abril de 2012

Videla abre a boca

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Afinal, o que deu nesse general?

 

Eric Nepomuceno


Depois de anos de um silêncio de sepulcro, o semeador argentino de tumbas, general da reserva Jorge Rafael Videla, 86 anos, condenado a duas penas de prisão perpetua por ter cometido crimes de lesa-humanidade e enfrentando uma longa fila de processos e julgamentos, decidiu falar. Primeiro, para um repórter benevolente da revista espanhola Cambio 16. Depois, para um jornalista argentino, Ceferino Reato, que transformou vinte horas de conversa gravada num livro de impacto. E agora, na sexta-feira dia 27 de abril, para uma juíza chamada Martina Forns, num processo que tem por objetivo, entre outras coisas, saber o paradeiro dos restos de Mario Roberto Santucho, o mítico chefe do ERP (Exército Revolucionário do Povo), assassinado em certa madrugada gelada de julho de 1976.

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Videla sabe que não tem futuro. Está preso numa cela de um quartel e ficará lá até o fim de seus dias. Há pouco admitiu que sua última esperança tinha se esvaído, com a reeleição de Cristina Fernández de Kirchner. Será por isso que resolveu enfim falar? Será que o que deu nele foi a certeza de que os tempos de impunidade acabaram de vez e para sempre, e que calar perdeu o sentido?

Impressiona a frieza com que descreve o que todo mundo sabia mas ninguém antes havia admitido: o mecanismo feroz do terrorismo de Estado. A figura do ‘desaparecido’, diz ele, foi ‘cômoda, não provocava o impacto de um fuzilamento público’. Admitiu, também pela primeira vez, a existência de listas de condenados à morte – os tais ‘desaparecidos’. Disse que cada comandante tinha suas próprias listas, integradas por nomes de pessoas de sua zona ou área militar, e que graças a um acordo entre os chefes supremos de cada arma – Aeronáutica, Marinha e Exército – essas listas jamais foram publicadas ou divulgadas.

Esclareceu que as listas ‘não foram bem organizadas, havia certa confusão de nomes’, e que também por isso, em dado momento, foi tomada a decisão de não divulgá-las. Ou seja: nem todos os nomes de todas as listas foram assassinados, e nem todos os assassinados apareciam em alguma lista.
Enfim, aproveitou para afirmar que os tenebrosos ‘vôos da morte’, quando prisioneiros eram levados meio sedados para aviões e depois despejados sobre o Atlântico ou o rio da Prata, foram uma ‘coisa específica da Marinha’, que não havia como evitá-los, e que ‘todo mundo sabia de seu destino’.

Há exatos catorze anos, um Jorge Rafael Videla cheio de soberba e prepotência assegurou, diante de outro tribunal, que não sabia nada sobre Mario Roberto Santucho. Agora, confessa, sem pestanejar, ter dado a ordem de segredo absoluto sobre a decisão de esconder o corpo do guerrilheiro, ‘para evitar homenagens’. Disse não saber onde os restos foram enterrados. Mas contou que outro general também processado, Santiago Riveros, sabe.

Ao falar sobre os desaparecidos, admitiu que hoje pode-se discutir ‘o procedimento’. Mas enfatizou que ‘naquele momento, a sociedade não iria tolerar fuzilamentos’. Além do mais, ‘era difícil pensar que tanta gente poderia ser julgada, e além do mais os juízes se sentiam perseguidos’.

Enfim, acrescentou que ‘como as circunstâncias mudaram’, hoje ele fala o que não quis falar há catorze anos. E fala muito, o general genocida: seu depoimento durou mais de três horas, surpreendendo a todos na sala do tribunal – a começar pela própria juíza. Em nenhum momento demonstrou uma mísera gota de autocrítica, quanto mais de arrependimento. Continua defendendo que o que houve em seu país foi uma ‘guerra contra a subversão’. Conta o que conta com o ar de um burocrata cansado que resolve prestar contas de sua tarefa. Assim, os fuzilamentos clandestinos e o sumiço dos corpos era parte do seu trabalho.

Com ar ainda altivo, vestindo um terno de bom corte e uma gravata de bom gosto, Jorge Rafael Videla chegou algemado ao tribunal. O tom de sua voz é firme e seguro. Sabe que alguns de seus contemporâneos de farda e terrorismo de Estado o criticam por ter enfim decidido falar. Sabe que outros o apoiam, com certo alívio. E sabe que ao abrir a boca está abrindo caminho para que oficiais de patente menor, e que também respondem a processos por crimes contra a humanidade, sigam seu exemplo.

Há um mar sem fundo de questões sem resposta, a começar pelo mais cruel dos procedimentos: o sequestro e roubo de uns 500 bebês. Até agora, cem deles foram recuperados. Cem histórias de identidades roubadas, de vidas roubadas, de memória roubada. Faltam outras quatrocentas.

Até agora, ninguém admitiu e deu detalhes de como funcionavam os campos de concentração, nem especificou a cumplicidade da Igreja Católica e de partes substantivas do empresariado e do meio financeiro na longa duração da ditadura.
Mas o general começou a falar. E se começou, ninguém sabe onde ele vai parar.
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CartaCapital, Ed. 694

Torturadores, tremei!

 

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Caldas. "A revisão da lei é questão de tempo". Foto: Glaucio Dettmar

Há poucos dias, em decisão inédita, o juiz Guilherme Dezem, de São Paulo, determinou que no atestado de óbito de João Batista Drummond, dirigente do PCdoB, morto em 1976, conste que ele morreu em decorrência de “torturas físicas” e não de “traumatismo craniano encefálico” como consta hoje.

Esse é o mais recente indício de que a Lei da Anistia brasileira não resistirá ao ambiente democrático.

A revisão dessa lei é só uma questão de tempo”, sustenta o advogado Roberto Caldas, indicado pelo governo brasileiro para disputar, na Assembleia da Organização dos Estados Americanos (OEA), a vaga de juiz titular da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede em San José da Costa Rica.

Além da criação da Comissão da Verdade, a indicação de Caldas é mais um sólido sinal de intolerância do governo Dilma à Lei da Anistia.

Talvez não haja ninguém no País mais versado sobre o tema do que ele. Profissional sóbrio e sem paixões partidárias, Caldas participa das decisões da CIDH desde 2008 e, como juiz ad hoc, já votou por três vezes pela condenação do Estado brasileiro. A mais recente delas foi a decisão sobre a Guerrilha do Araguaia.

O julgamento ocorreu em 2010, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos, que, segundo Caldas, “declarou nula, de pleno direito, a Lei da Anistia brasileira quanto aos crimes cometidos por agentes do Estado”.

A razão é simples. As regras jurídicas não admitem uma lei de autoanistia. Ela é inexistente, inválida, para a Corte e para os tribunais internacionais.

Caldas não tem dúvidas sobre a -necessidade de o Brasil se submeter às decisões impostas por tratados internacionais que assinou: “A ordem jurídica internacional está atenta para não permitir que os detentores do poder político legislem em causa própria, com o objetivo de encobrir crimes graves contra direitos humanos. Mais uma razão somou-se a isso: os crimes de lesa-humanidade não podem ser objeto de anistia nem de prescrição”.

Ele interpreta assim o sentido dessa decisão: “É a condenação de um crime muito mais agressivo do que o assassinato. Funciona como pressão contra um tipo de pensamento que afeta toda a sociedade e não só os que sofreram”.

Um exemplo disso é o medo presente na sociedade brasileira quanto a uma possível retaliação dos militares à apuração de crimes cometidos na ditadura.

Embora lento por tradição cultural, Caldas acredita que o Judiciário brasileiro começará a recepcionar as decisões tomadas pelas cortes internacionais. Talvez um pouco mais tarde do que seria preciso, mas certamente antes do que muitos gostariam.

Ao declarar a Lei da Anistia constitucional, o STF, no entanto, não a blindou definitivamente?

Roberto Caldas diz que não, e explica: “A decisão do tribunal ateve-se à análise da constitucionalidade da lei. Não há qualquer equiparação com decisões tomadas no âmbito do direito internacional vigente à época. É anterior ao julgamento do caso da Guerrilha do Araguaia pela Corte Interamericana, que interpreta e aplica a Convenção Americana, uma espécie de Constituição continental sobre Direitos Humanos”.

Isso significa, por exemplo, que “é perfeitamente cabível”, segundo ele, “a análise dos crimes continuados, por parte de agentes do Estado”.

A Lei da Anistia não é o nó cego pensado pelos articuladores dela: a proteção permanente das ações desumanas, imposta aos presos políticos na ditadura, está com os dias contados. Portanto, torturadores, tremei!

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