Folha de São Paulo, 24/04/2012
A estupidez da inteligência
Por Vladimir Safatle
“Uma
das lições que Hitler deixou é como, às vezes, é estúpido ser
inteligente.” Eis uma frase de Adorno e Horkheimer que os franceses
deveriam meditar. Os filósofos de Frankfurt aludiam a essas explicações
articuladas e cheias de dados que provavam, de maneira absolutamente
convincente, a impossibilidade dos nazistas chegarem ao poder na
Alemanha.
Em
2002, após o resultado das eleições francesas que colocou a extrema
direita de Jean-Marie Le Pen no segundo turno, lembro-me de ouvir
explicações da mesma natureza.
Um
professor universitário amigo demonstrava, por exemplo, que o problema
todo fora a inépcia do governo socialista em marcar eleição em época de
feriado escolar, o que teria aumentado a abstenção dos professores.
Como
no caso de Adorno e Horkheimer, ninguém queria ver o óbvio, a saber,
que havia uma enorme faixa de eleitores racistas, xenófobos dispostos a,
agora, falar em voz alta. Faixa que devia ser combatida como prioridade
política número um, em vez de “analisarmos sem preconceitos”.
Exatos
dez anos depois, um fenômeno semelhante acontece. Agora, a França é o
país europeu que tem a extrema direita mais forte (17,9% para sua
candidata, Marine Le Pen).
No
entanto esse número é muito maior, já que seu presidente, Nicolas
Sarkozy, é daqueles que não sente dor no coração quando mobiliza os
sentimentos mais baixos da população (como a islamofobia, a caça a
ciganos e os discursos sobre “o homem africano que não entrou na
história”).
O
verdadeiro objetivo maior dessa eleição era retirar a Frente Nacional
da posição de definidor da pauta do debate político. O único candidato
que compreendera isso foi o esquerdista Jean-Luc Mélenchon, que levou
uma batalha solitária contra os temas da extrema direita e em favor de
uma sociedade mestiça. Ele chegou a aparecer em terceiro lugar nas
pesquisas, mas perdeu fôlego na reta final.
A
razão para tal esgotamento lança luz sobre a estupidez da inteligência.
Um dos traços maiores dessa eleição foi a exposição da inutilidade dos
intelectuais.
Em
vez de insistir na importância de retirar a Frente Nacional da cena
política, os mais midiáticos se deleitaram em atirar contra Mélenchon e
seus traços “jacobinos” (como o fez Michel Onfray e os verdes) ou fazer
pregação suicida pelo voto nulo (como o fez Alain Badiou), como se
estivéssemos em 68, com suas brigas entre a esquerda libertária, os
comunistas e a miríade de grupelhos.
Com
isso, os intelectuais de esquerda só serviram para desmobilizar e fazer
vista grossa diante de uma catástrofe anunciada. Prova de que a
inteligência é sempre a última a ver o abismo. Há de perguntar quem
precisa de inteligência parecida.
Jornal do Brasil, 24/04/2012
França e a nova encruzilhada européia
Por Mauro Santayna
A
história política da Europa sempre se decidiu entre os franceses, os
ingleses e os alemães, com eventuais – além das mais antigas –
intervenções das duas penínsulas, a itálica e a ibérica.
O
quadro se repete agora, com as eleições francesas. O que se decidir no
segundo turno da disputa irá influir no destino imediato da União
Européia. Uma análise lógica do momento político avalia a esperança da
esquerda: dificilmente Sarkozy conseguirá virar o jogo e derrotar
Hollande. Não é certo que os eleitores da senhora Le Pen descarreguem
todos os seus sufrágios no nome do atual presidente.
À
parte o voto ideológico, que não é decisivo, a extrema direita francesa
tem algumas das mesmas queixas da esquerda, diante do governo,
hesitante na condução da crise econômica, incapaz de combater o
desemprego e amenizar a ansiedade da classe média.
Há
um ponto forte que une a extrema direita e a esquerda na França – e de
resto, em toda a Europa: o combate aos banqueiros. A extrema direita
tem incluído os banqueiros no rol de seus inimigos e, de maneira
equivocada, confundindo o sistema financeiro com os judeus. Como se
sabe, em conseqüência das circunstâncias históricas e das restrições que
lhes foram impostas, os hebreus se viram obrigados a negociar com o
dinheiro, e coube a poucas de suas famílias fundar e administrar alguns
dos maiores bancos da História. Mas isso não os faz os responsáveis
pelas falcatruas cometidas em Wall Street, onde predominam nomes
anglossaxões, alguns mais saxões do que ingleses.
Como
as eleições se decidem mais pela emoção do que pela razão, é difícil
desfazer o imaginário popular – o que faz de parcelas alienadas do
proletariado, em alguns momentos, o grupo social que decide as eleições,
votando, errado ou certo, na bandeira adversária. Sendo assim,
provavelmente a esquerda ganhará as eleições. Espera-se que ela saiba
atuar com a inteligência que faltou às frentes populares, que ganharam
as eleições de 1936, tanto na França quanto na Espanha, e que abriram os
dois grandes países à tragédia política que se seguiu. Nos dois casos, a
esquerda se perdeu, ao perder-se a presença moderadora do centro
político.
Foi
assim que, menos de dois anos depois, ainda que o parlamento
continuasse o mesmo até 1940, a direita se infiltrou no governo, que,
com Daladier no lugar de Blum, desfez todas as medidas em favor dos
trabalhadores. Em conseqüência, em muitos subúrbios operários de Paris, a
extrema direita ganhou seus adeptos – o que debilitou a resistência
nacional diante da invasão alemã, levando à vergonhosa capitulação de
Pétain e Laval.
Na
Espanha, com a razão política exacerbada nos extremos e o malogro dos
políticos do centro, as eleições de janeiro de 1936, que levaram a
esquerda à vitória, mobilizaram a extrema direita dos meios militares,
com o levante dos quatro generais fascistas e a brutalidade da guerra
civil espanhola. Os trabalhadores, envolvidos na tragédia, morreram, de
um lado e de outro: uns defendendo a República e outros, envenenados
pela propaganda clerical e falangista – na ilusão de que defendiam Deus e
a Nação.
Com
a ajuda da Itália e da Alemanha e a acovardada posição de neutralidade
da França e da Inglaterra, Franco venceu e governou o país com a
abrutalidade conhecida, durante quase 40 anos.
As
situações não se repetem de forma idêntica na História, mas há
coincidências alarmantes entre 1936 e 2012. Em 1936, a Europa se
encontrava no meio da crise econômica dos anos 30, provocada pela
terrível desigualdade social dos anos 20 que se prolongava no
continente. Essa desigualdade fora determinada pela acumulação cruel do
capital financeiro na globalização liberal do período que se seguiu à
Primeira Guerra Mundial.
A
crise econômica e social promovera a xenofobia e o anti-semitismo, em
toda a Europa, e o surgimento de governos de direita em outros países,
além da Itália, da Alemanha e da Espanha.
Os
judeus dos anos 30 foram substituídos, no ódio racista, pelos
muçulmanos de hoje. Embora o ódio anti-semita permaneça latente, não se
caçam mais judeus, mesmo porque o governo de Israel, conduzido por
direitistas, é um importante aliado contra a esquerda na Europa
contemporânea. Os mestiços, e não só árabes, pagam em dobro pela
estupidez do racismo.
Por
tudo isso, é preciso ver a situação com cauteloso ceticismo. Derrotado
Sarkozy, como se prevê, ou vitorioso seu grupo, com o apoio da senhora
Le Pen, a situação continuará delicada, até que a crise econômica seja
vencida por uma política de intervenção decidida dos estados na economia
e na questão social. Se isso não ocorrer, todos os presságios são
inquietadores.
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