04/01/2012
Brasil: a curiosa conversa da oligarquia financeira
Por Antonio Martins
Afirma-se que é preciso cortar serviços públicos agora, para (mais tarde…) reduzir os juros. Veja o que está por trás deste argumento
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, saiu de férias ontem (3/1), por quinze dias, segundo informou a repórter Luciana Otoni, no Valor. A motivação do jornal, cujo público inclui executivos financeiros, não é, claro, o merecido descanso do ministro. A viagem de Mantega – substituído interinamento pelo secretário-executivo do ministério, Nelson Barbosa – indica que deverá ficar para fevereiro a decisão do governo sobre um possível corte no Orçamento da União para 2012. Ao contrário do que fez o Estadão, no domingo (veja nosso comentário), o Valor reconhece que a decisão não está tomada. Portanto, talvez haja tempo para promover o que a oligarquia financeira [para conhecê-la, leia Patrick Viveret] mais teme: um debate sem mistificações sobre o tema.
Nos últimos anos, cresceu muito, entre a sociedade, o desconforto em relação ao pagamento dos juros da dívida pública – por meio dos quais o Estado transfere maciçamente recursos , do conjunto da população para uma ínfima minoria de grandes aplicadores endinheirados. O eventual corte no Orçamento visa, como sempre, abrir espaço para manter ou ampliar esta transferência. Mas, com o tempo, tornou-se impossível defender o movimento a seco. Por isso, surgiu um argumento curioso: ao reduzir as despesas com serviços públicos e direitos sociais agora, o Estado estaria abrindo espaço (este é o termo-chave) para reduzir o pagamento de juros… mais tarde.
A própria lógica do raciocínio é exótica. Todos compreendemos que, para realizar um novo gasto é necessário, às vezes, cortar outro, já existente ou programado (“adio uma viagem de férias para arrumar a casa”). Mas por que a redução de uma despesa perdulária dependeria da eliminação anterior de outra? Seria como se um jogador compulsivo dissesse: “vou cortar as despesas de educação da família agora para poder, daqui a seis meses, deixar o cassino”. Ou, no caso de um glutão voraz: “Em 2012, não como mais frutas. Assim, abro espaço para esquecer a mesa de doces em 2013”.
Na prática, a incongruência torna-se ainda mais clara. Em fevereiro de 2011, poucas semanas depois de tomar posse, a presidente Dilma decretou um corte equivalente a 50 bilhões de reais, nos serviços públicos. Isso não evitou que, ao longo do ano, o pagamento de juros batesse todos os recordes anteriores:R$ 216,1 bilhões até novembro. Em onze meses, a sociedade transferiu, para a oligarquia financeira, doze vezes mais recursos que os destinados à Bolsa-Família, ou sete vezes o valor a ser investido na Copa do Mundo, ao longo de quatro anos.
Se valores tão vultosos estão envolvidos, e vivemos numa democracia, seria natural que governo, Congresso e em especial a mídia estimulassem um amplo debate sobre o tema. Estranhamente, os mesmos jornais que fazem imenso alarde em torno de somas irrisórias (alguém se esqueceu do “escândalo da tapioca”?), emudecem por completo diante de rios de dinheiro. Haverá aí algo de cumplicidade? Será a isso que Ignacio Ramonet se refere, quando diz temer as democraduras – alianças entre os poderes econômico, midiático e eventualmente militar?
Da velha mídia, seria difícil esperar outro comportamento. Mas, ao menos em palavras, a presidente Dilma tem condenado o caminho desastroso seguido por governos que, diante da crise, atacam direitos e serviços. Oxalá o ministro Mantega, revigorado pelas férias e livre das pressões quotidianas, encontre inspiração para pensar a respeito. E não seria mau se os movimentos sociais, cujas reivindicações têm tanto a ver com um novo padrão de serviços públicos, entrassem no debate.
02/01/2012
Brasil: a mídia dá (péssimos) conselhos a Dilma
Por Antonio Martins
Numa matéria do Estadão, uma aula sobre como distorcer fatos, sugerir uma “saída única” para a crise financeira e evitar o debate público sobre as alternativas
Há uma razão a mais para acompanhar atentamente o ataque aos direitos sociais e serviços públicos na Europa, com seus resultados desastrosos. Na virada do ano, voltaram a se manifestar as pressões para que o governo brasileiro adote medidas muito semelhantes às que estão causando retrocessos históricos no Velho Continente. Dois setores, em especial, atuam nesta direção: os grandes aplicadores no mercado financeiro e quase toda a mídia comercial, aliada a eles. Pedem um novo corte no Orçamento da União, igual ou superior ao que colocou a economia em marcha lenta e quase provocou uma recessão, em 2011. Mas evitam o debate aberto. Seus meios são outros: ações nos bastidores do sistema político, distantes da opinião pública. E publicação, nos jornais, de matérias que apresentam o corte como “natural” ou “inevitável”.
A matéria de capa de O Estado de S.Paulo deste domingo (1º/11) é um modelo de como funciona este tipo de jornalismo. Desdobra-se em dois textos. Ambos são especulativos. Baseiam-se em informações de fontes não-identificadas. Trata-se de um recurso jornalístico que pode ser usado tanto para revelar fatos importantes, quanto para deformar a realidade, apresentando os desejos de grupos de poder como se fossem certezas, decisões já tomadas.
A primeira matéria é banal. Repete algo identificado há pelo menos seis meses: uma das estratégias de Dilma, em busca de apoio político, é ampliar sua popularidade entre os mais pobres, estendendo e reforçando programas como o Bolsa-Família. Está no segundo texto a tentativa de determinar a agenda política, trabalhando em favor de um ponto de vista sem explicitar esta opção aos leitores.
Nessa matéria, dois argumentos destacam-se: a) “Por ordem da presidente”, o governo vai promover, em 2012, um novo corte no Orçamento. Ele poderá chegar a R$ 60 bilhões, suplantando os R$ 50 bi de 2011; b) Embora possa contrariar alguns setores e atingir os interesses eleitorais dos partidos governistas, este ataque à “gastança” é inevitável: o Planalto percebeu que a crise financeira internacional o obriga a ser cauteloso e comedido internamente.
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