quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Chuva de vampiros


José Arbex Jr.

A real catástrofe na região serrana do Rio de Janeiro é apenas a contrapartida do fal­so triunfo militar do "combate ao narcotráfico" nos morros cariocas, vastamente celebrado, no final do ano, pela mídia e pelos governos fluminense e fede­ral. Ambos, a catástrofe real e o falso triunfo, têm como denominador comum o absoluto e total des­prezo do Estado brasileiro para com as populações de trabalhadores miseráveis, jogados como entulho e carne podre às condições mais aviltantes que o ser (ainda) humano pode suportar.

Mas não se trata, aqui, de fazer uma condenação moral das elites responsáveis pela violência sistemá­tica e pelas sucessivas tragédias que se abatem sobre a imensa maioria da população brasileira. Não basta desqualificar moralmente a Rede Globo e a vasta ca­deia midiática que, cinicamente, descrevem a tragé­dia como um resultado "natural" das chuvas exces­sivas, assim como antes enalteceram o uso puro da força bruta como meio supostamente eficaz de er­radicar o narcotráfico. Os barões da mídia não pro­movem a mistificação por serem "malvados" - tal­vez até sejam, mas não é o que importa -, mas por obedecerem a uma lógica que, há 500 anos, assegu­ra uma tremenda acumulação de capital e a perpe­tuidade do controle do poder pelas elites.

A lógica é simples: o Estado brasilei­ro funciona como um aparelho privado nas mãos de um grupo que controla e monopoliza o capital e o poder político, em detrimento absoluto dos interes­ses da imensa maioria da nação. Certo, OK: em tra­ços bem gerais o mesmo poderia ser dito de qualquer Estado burguês. Mas, generalidades dessa amplitu­de não servem para nada, a não ser ocultar os fatos. Não há como comparar as condições de dominação do capital no Brasil com as que vigoram em outros países onde, por força de grandes acontecimentos históricos, os trabalhadores conseguiram consolidar importantes conquistas sociais (a começar da refor­ma agrária, passando pela universalização dos direi­tos elementares até a semana de 35 horas).

Historicamente, as elites brasileiras, sempre su­bordinadas transnacional, utilizaram  a maquina de guerra do Estado contra a nação, como condição de acumulação de suas imensas fortunas. Um índice "puro", matemático e inequívoco disso é a mundialmente conhecida e vergonhosa desigualdade que impera no país.

A pobreza subsiste, não por falta de crescimento, como argumentam os cínicos econo­mistas clássicos, agora secundados pelos novos ge­rentes do capital. Ao contrário. Estatísticas  do IBGE mostram que entre 1900 e 2000, o PIB brasileiro foi multiplicado por 110, ao passo que a po­pulação foi multiplicada por 11. Seria apenas razo­ável supor que, em 2000, cada brasileiro estivesse bem melhor de vida (mesmo que não dez vezes mais rico, como sugere a aritmética) do que se vivesse em 1900, escassos 12 anos após a suposta abolição.  Nada disso. A fome, as condições subumanas, a miséria e a falta de perspectiva persistem, ao passo que a riqueza dos mais ricos aumenta.

E um equívoco completo, desse ponto de vista, afirmar que o Estado brasileiro "não tem po­líticas públicas para combater as enchentes". Tem sim. São aquelas cujo resultado contemplamos todo começo de ano, invariavelmente, na forma de gran­des espetáculos de sofrimento e angústia. Da mesma forma, tem sim uma política pública para a saúde: é a que condena os setores mais miseráveis a agonizar e a eventualmente morrer nas filas do SUS. Tem tam­bém uma política para a educação pública: é a que mantém a imensa maioria da população num estado de analfabetismo funcional. E tem, igualmente, uma política de segurança pública: é aquela que multipli­ca mandados coletivos de busca (um expediente de natureza fascista) nas favelas e bairros miseráveis, que trata como crime a mobilização dos movimen­tos sociais, que convive com ou mantém alguns dos mais altos índices de matança extrajudicial do pla­neta (cerca de 50 mil mortes por ano).

São políticas de Estado, e não a sua ausência. Não há "bolsa família" — as migalhas que sobram após a farta remuneração do capital - que resolva a ques­tão da natureza terrorista do Estado brasileiro. Tra­ta-se de um terrorismo que se alastra, contamina e penetra de forma insidiosa até no universo dos há­bitos e costumes, tornando "naturais" práticas que em qualquer país mais ou menos civilizado causa­riam horror. Basta mencionar dois fatos:

A extrema violência da guerra civil irlandesa, sem­pre e justamente lembrada com horror e consterna­ção na Europa, causou 3 mil mortes em 30 anos; no Brasil, esse mesmo número morre de forma violenta em... três semanas. Ninguém mais se assusta nem se espanta com isso. Outro fato: na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos, é proibida, ou, pelo menos, extremamente controlada a publicidade de produtos infantis na TV, por uma série de razões, das quais duas são centrais. A criança não distingue bem a realidade da fantasia, e por isso, ao desejar um produ­to qualquer, demanda sua compra dos pais, sem levar em consideração as condições materiais da família, assim criando uma situação de chantagem emocio­nal, frustração e angústia no lar. Além disso, a publi­cidade de produtos infantis tende a tratar a criança como um "adulto em miniatura", o que, invariavel­mente, produz a erotização precoce de seu mundo.
No Brasil, não apenas esse tipo de publicidade não é controlada, como programas supostamente "infantis" estimulam a pedofilia em escala industrial.

ISSO tudo só acontece porque, historicamen­te, a extrema violência do Estado brasileiro logrou impedir o processo de construção e consolidação de partidos, organizações e movimentos sociais repre­sentativos dos trabalhadores e dos setores popula­res. Em geral, seus integrantes foram massacrados (como em Palmares e Canudos) ou cooptados (como agora acontece, em particular, mas, não só com os setores lulistas do PT e da CUT, sem desmerecer os demais militantes que ainda resistem no seu inte­rior). E precisamente porque essa relação perversa entre Estado e nação permanece intocada é que nos próximos meses e anos novos desastres "naturais" ocorrerão, assim como novas matanças, novas mor­tes nas filas do SUS e novas cenas de barbárie ali­mentarão o circo de horrores de cada dia.

A tragédia na região serrana é o retrato verdadei­ro e sem retoques dos vampiros que monopolizam o poder no Brasil.

José Arbex Jr. é jornalista.

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