quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O general e a História


Jornal do Brasil, 06/01/2011

O general e a História

Por Mauro Santayana


Temos, sim, por que nos envergonhar do que ocorreu em 1964 e em todos os anos que se seguiram. Se o general José Elito Siqueira disse o que lhe foi atribuído, cometeu erro político irreparável e juízo equivocado sobre a História. O erro político foi tocar em assunto delicado e constrangedor, em qualquer governo democrático, e não só no de Dilma Rousseff: o dos desaparecidos durante o regime militar. Se assim pensava, não deveria ter aceitado o cargo.
Temos, sim, por que nos envergonhar do que ocorreu em 1964 e em todos os anos que se seguiram. Todos, militares e civis, sacerdotes e ateus, mulheres e homens, de esquerda e de direita, do governo e da oposição, que vivemos aquele tempo, temos, uns menos, outros mais, culpa pela supressão dos ritos democráticos. Como diriam os anarquistas, não houve inocentes, e, se os houve, eles também cometeram o pecado do conformismo. Responsáveis foram dirigentes políticos de esquerda, que avaliaram mal a correlação de forças e pretenderam queimar etapas, ainda que o fizessem com os melhores sentimentos humanos, como os da igualdade e da liberdade.
A História costuma ser implacável contra os que violam seu ritmo e suas razões.
Responsáveis, e com muito maior dolo, foram os que se aliaram aos estrangeiros, esquecendo os nossos interesses nacionais e os nossos valores, e se uniram aos Estados Unidos no confronto da Guerra Fria, com o argumento de que as fronteiras eram ideológicas e não geográficas.
As nossas razões eram as de não tomar partido algum na disputa entre os brancos nórdicos, e muitos brasileiros, em nome dos ideais de justiça e igualdade, defendiam – mesmo depois do relatório Khruschev contra Stalin – a política externa russa.
Devíamos ter tido posição mais ativa no Grupo dos Não Alinhados. Isso não nos impediria de continuar fazendo negócios com Moscou e com Washington, como, aliás, americanos e soviéticos sempre fizeram entre eles.
Temos, sim, que nos envergonhar. Também foram responsáveis os que aplaudiam, nos estádios, o general presidente, enquanto nas masmorras, jovens e velhos, mulheres e homens, intelectuais, como Mário Alves, jornalistas, como Vladmir Herzog, e operários, como Manuel Filho, eram torturados e trucidados. Lembro-me do que me disse dom Paulo Arns, sobre aquele tempo.
Contou-me que, ao visitar, em São Paulo, as presas políticas, depois de ouvi-las, queixou-se ao diretor do presídio. Ele se desculpou, dizendo que elas exageravam, e que devia descontar uns 50% em suas queixas. Dom Paulo lhe disse, então, que se apenas 5% do que se queixavam fossem verdade, todos os culpados pelo que elas sofriam, incluídos ele e o interlocutor, deviam ser condenados ao inferno. Responsáveis foram os veículos de comunicação que não só aplaudiram a repressão como com ela colaboraram e apoiaram o sistema autoritário, durante o período mais sangrento daquelas duas décadas.
Anistia, voltamos a lembrar, é esquecimento. Mas não podemos negar aos que perderam os seus filhos, pais e irmãos, naqueles anos pesados, o direito de saber onde foram sepultados, e as circunstâncias de sua morte. É da cultura de todos os povos o respeito e a veneração aos mortos. Assim é de seu direito resgatar seus restos e lhes dar sepultura, a fim de a eles levar as lágrimas da saudade.
Temos, sim, que nos envergonhar, e muito, todos os que vivemos aquele tempo. Não fizemos o bastante para evitar que homens como Manuel Fiel Filho e Vladmir Herzog fossem mortos, da forma como foram, sem nem mesmo o direito à honra do combate.
É hora de venerar os heróis que combateram de peito aberto os inimigos em Guararapes, como lutou e morreu Marcílio Dias, na Batalha do Riachuelo, e como pelejaram os heróis da FEB na Itália, mas, acima de todos, Caxias, o grande pacificador nos desencontros internos, que, uma vez vitorioso, recomendava a imediata anistia política aos revoltosos.
.....


São Paulo, quinta-feira, 06 de janeiro de 2011
 
Vergonha é não ter vergonha

CLÓVIS ROSSI
 
Dilma Rousseff deveria ter demitido no ato o general José Elito Carvalho, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, para quem não há motivo para vergonha no fato de o país ter desaparecidos políticos.
No mínimo, no mínimo, a presidente deveria ter exigido de seu subordinado que emitisse nota oficial explicando as declarações que deu e que, segundo ele, foram mal interpretadas. Não cabia interpretação nenhuma. O general produziu a mais indecente declaração que ouvi até hoje em 40 anos de acompanhamento de questões vinculadas aos direitos humanos nas muitas ditaduras sul-americanas.
Achar que se trata de "fato histórico" é zombar do público. Quer dizer então que os desaparecidos foram tragados por um tsunami, por um terremoto, um vendaval, "fatos" naturais contra os quais não há mesmo remédios nem culpados?
Não, meu Deus do céu, não. Foram produzidos por mãos humanas, se é que são de fato humanas pessoas capazes de tal barbaridade. Mãos que, até agora, não tiveram as digitais colhidas nem as responsabilidades devidamente apuradas, é bom lembrar.
Por extensão, há, sim, todas as razões do mundo para ter vergonha do que aconteceu. Como é possível a um ser humano não sentir vergonha de o Estado brasileiro, em uma determinada etapa, ter feito desaparecer adversários políticos? É indecente, é obsceno.
Um funcionário público, graduado ou não, fardado ou não, que não sinta vergonha não é digno de continuar a serviço da sociedade, muito menos ainda na posição de responsável pela segurança institucional da República. É, visivelmente, um promotor da insegurança, jurídica e pessoal, ao tomar como "fato histórico" o que é crime.
Ou o general explica, limpidamente, o que pensa sobre o assunto ou se demite.

.....

Vencedores e vencidos

JANIO DE FREITAS


POR QUANTO TEMPO haverá ainda a disputa entre a busca das verdades documentais da ditadura e os autores diretos, patrocinadores e cúmplices da tortura, dos assassinatos e dos desaparecimentos não é questão que caiba em perspectivas, promessas e nem mesmo em compromissos. Mas não é questão cega.
Houve motivos para a espera de que o presidente-professor-sociólogo-intelectual levasse a busca a avanços decisivos. O que apareceu foi um governo acoelhado, fingindo enganar, um presidente ensaboado de maneirismo a escorrer-se quando o assunto se aproximava.
Veio o presidente-companheiro-operário-preso PT. Razões bastantes de passado, desprendimento e compromisso para dar dignidade ao trato do assunto. Foi comovente o esforço dos fervorosos, Paulo Vannuchi capaz de representá-los todos, nos oito anos em que viram mãos estendidas do poder, em sua direção, com a condição de não as pegarem. Toda iniciativa, além de retardatária, era destinada ao primeiro impulso para perder-se no ar. Ainda assim, para evitar a perda de controle, com uns fardados nas canelas ou cortando a frente dos fervorosos.
Deputada de pouca exposição e presença muito qualificada, Maria do Rosário, nova ministra Especial de Direitos Humanos, já na posse deu a mensagem de sua determinação. A presidente, nos seus dois discursos de posse, não diminuiu, ao negar ódio e ressentimentos, o valor que atribui ao passado dos oponentes da ditadura.
O que os dois casos significam, porém, é, no máximo, o que se sabe em qualquer caso: o embate entre a busca das verdades documentais e os comprometidos com essas verdades criminosas será mais ou menos o mesmo. Não por acaso, ainda hoje cadetes saem da Academia Militar das Agulhas Negras na Turma Garrastazu Médici, uma turma com o dever de honrar, usualmente honrar em qualquer sentido, o símbolo do período reconhecido como de maior e pior marginalidade da ditadura.
Mas o embate, em certa medida, já está decidido. Os pretensos guardiães das verdades podem vencer as famílias, e talvez não todas, que procuram conhecer o destino dado aos seus que a ética e a honradez militares não pouparam de tortura, assassinato, desaparecimento. Podem vencer o desejo de alguns sobreviventes de identificar seus algozes. Isso ainda podem.
Todo o essencial das verdades, no entanto, está conhecido. O buscado conhecimento das verdades documentais é uma dívida moral para com o país. Se não quitada, por quem pode fazê-lo, é como um ato traidor à história do Brasil.
Não haverá, porém, capítulos brancos. Já não faltarão traços nem cores ao registro pleno da ditadura, quando se reproduza o exemplo inaugural do "Tortura Nunca Mais" com todos os acréscimos disponíveis. Aos quais não falta, sequer, o "outro lado" confessional, digamos, de um cabo Anselmo, entre outros já conhecidos ou por serem - que não faltarão - legados. O tempo, como sempre, fará o restante em favor da história.
No interior do embate que seguirá, embora já com o lado vencedor e o vencido, o novo ministro de Segurança Institucional, general José Elito Siqueira, e sua frase são representativos, sínteses da concepção contrária às verdades: "Os desaparecidos são história da nação, de que não temos que nos envergonhar ou nos vangloriar".
Nada a fazer: vergonha, quem tem, tem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário