São Paulo, terça-feira, 26 de outubro de 2010
Serra, os genéricos e outros mistérios
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
Como consequência da Guerra das Malvinas, quando a Argentina, por ter abdicado da produção própria de fármacos, ficou desabastecida de medicamentos, o governo militar brasileiro aprovou um programa, por mim proposto, de desenvolvimento dos princípios ativos (fármacos) dos 350 remédios constituintes da farmácia básica nacional.
Estimava-se que, em dez anos, seria possível desenvolver, por engenharia reversa, pelo menos 90% desses produtos. De fato, em pouco mais de três anos, cerca de 80 processos já haviam sido desenvolvidos e 20 produtos já estavam sendo produzidos e comercializados por empresas brasileiras.
O sucesso inicial desse projeto permitiu que fosse iniciada por mim, nesta Folha, uma campanha de esclarecimento sobre medicamentos genéricos, o que não teria sentido sem a produção própria de fármacos.
Precipitadamente, o governo Itamar Franco tentou lançar a produção de genéricos. O poderoso cartel de multinacionais de medicamentos se insurgiu. Ameaçou-nos de desabastecimento, de verdadeira guerra. Derrotou e humilhou o Ministério da Saúde.
Poucos anos depois, esse cartel não somente cedeu prazerosamente ao ministro José Serra, então na pasta da Saúde, como até fez dele seu "homem do ano".
Seria o costumeiro charme do ministro? Seu sorriso cândido? Senão, qual o mistério?
Como consequência da isenção de impostos de importação para o setor de química fina, da infame lei de patentes e de outras obscenidades perpetradas pela administração FHC, mais de mil unidades de produção no setor de química fina, dentre as quais cerca de 250 relativas a fármacos, foram extintas.
Além do mais, cerca de 400 novos projetos foram interrompidos.
Os dados foram extraídos de boletim da Associação Brasileira de Indústria da Química Fina. Em poucos anos, o deficit da balança de pagamentos para o setor saltou de US$ 400 milhões para US$ 7 bilhões. Quem acha que, com isso, Serra não merece o título de homem do ano das multinacionais de medicamentos?
Também os "empresários" brasileiros do setor de genéricos têm muito a agradecer ao ex-ministro da Saúde, pelas suas margens de lucro leoninas. Basta ver os imensos descontos oferecidos por quase todas as farmácias, que com frequência chegam a 50%. Os genéricos do Serra nada têm a ver com os genéricos que planejamos.
E persiste o fato de que, durante a administração Serra na Saúde, os recursos destinados ao saneamento, à época atribuídos a esse ministério, não foram aplicados.
Mesmo sem contar mistérios como aqueles dos "sanguessugas" e da supressão do combate à dengue no Rio, entre outros, considero pífia, eminentemente pífia, a atuação de Serra no Ministério da Saúde.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 79, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha.
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