segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Os Índios Tabajaras


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ÍNDIOS TABAJARAS - O BRASIL QUE O BRASIL NÃO CONHECE

Por Cludeíde Oliveira

Fortaleza, início dos anos sessenta. Um pequeno grupo de adolescentes, terminadas as aulas no Ginásio Municipal, costumava encontrar-se na Vox, na Rua Guilherme Rocha. Era o nosso ponto de encontro diário e o local onde tomávamos conhecimento dos últimos lançamentos da indústria fonográfica. Nas prateleiras, disputando espaço com Trio Irakitan, Nelson Gonçalves, The Beatles, eles estavam lá. Um amigo me chama a atenção: “Tá vendo aquele LP ali, com dois índios na capa? São cearenses, são índios de verdade e aprenderam a tocar um violão que encontraram perto da tribo. Hoje vivem nos Estados Unidos, onde são considerados estrelas do rádio e da TV, além de campeões de vendagem de discos”. Não acreditei em nada do que o meu colega dizia. “Mas é sério, - disse ele – pede o disco pra gente ler a contra capa e ouvir as músicas”. Não dei ouvidos, pois eu estava mais interessados em ouvir o som que nos chegava de Liverpool, Inglaterra. E justo nesse instante houve uma espécie de frenesi junto aos frequentadores – todos jovens como eu,- pois começamos a ouvir os primeiros acordes e logo a seguir as vozes inconfundíveis de nossos novos ídolos gritando à plenos pulmões, I wanna hold your hand.

E foi assim que eu não conheci e nunca mais ouvi falar em Índios Tabajaras. Até que...

Fortaleza, Fevereiro de 2010. Conhecer a história dos Índios Tabajaras é como se estivéssemos lendo um Conto das Mil e Uma Noites. A diferença é que essa história, com todos os contornos de uma fábula, é real. Absolutamente real. Mas como levar a sério tal estória?: “Um grupo de índios, como tantos ainda existentes nesse país, sem sequer falar o idioma português, entra em contato com o homem branco, dito civilizado, larga a vida selvagem em que vivia e parte para uma longa jornada pelo interior do Brasil, até chegar ao Rio de Janeiro. Entre a vida na tribo e a chegada à então Capital da República, eles encontram um violão e aprendem à tocar, toscamente, sem nenhuma lição. Sem meandros, a história termina em pleno Século XXI, onde Mussapére, ou melhor, Natalício Moreira Lima viveu até os 91 anos, quando morreu em seu apartamento nas imediações do Central Park, em Nova Iorque, depois de ter conquistado com a sua arte o topo do mundo, juntamente com seu irmão Erundi, que com ele formou o duo "Os Índios Tabajaras”.

Essa fábula verdadeira tem início na Serra da Ibiapaba, nas imediações onde hoje se situam os municípios de Tianguá, Viçosa e Ubajara, no Ceará. No final da década de 1920 e início da década seguinte, chega à região um grupamento militar para apaziguar a área disputada em litígio pelos estados do Piauí e do Ceará. Os militares encontraram, vivendo em estado totalmente selvagem, algumas tribos da etnia tupi-tabajara. É aqui que vamos encontrar os nossos personagens principais, Mussapére e Erundi, que na linguagem nativa significa respectivamente, Terceiro e Quarto, nomes dados por seu pai, o guerreiro Ugajara Mitanga.

Após a pacificação da região a tropa chefiada pelo coronel Hildebrando Moreira Lima partiu e Ugajara e seu grupo família resolveram seguir atrás dos militares até o Cariri, onde viveram por cerca de dois anos, aprendendo a falar português e passando por um processo de aculturação. Nessa época já andavam com roupa de homem branco, pois ao passarem pelas primeiras cidades tiveram alguns problemas por andarem totalmente nus. Antes de descerem a serra, encontraram um violão. Dos filhos de Ugajara, dois deles se interessaram pelo instrumento e o comandante militar, que lhes dera seu sobrenome, achou que Mussapére e Erundi levavam muito jeito para música e os incentivou a partirem para o Rio de Janeiro, onde as oportunidades surgiriam mais facilmente. Mussapére recebeu o nome cristão de Natalício Moreira Lima e Erundi foi batizado como Antenor Moreira Lima. E assim, rumaram em uma longa jornada, que duraria três anos, não sem antes passarem por Fortaleza, capital cearense, onde viram o mar pela primeira vez.


No Rio de Janeiro, conseguiram hospedagem em um albergue e passaram a se apresentar nas ruas, em praças e feiras, cantando e tocando (às vezes, apenas batendo no violão) quando conseguiram ganhar algum dinheiro e até comprar uma casa, onde mora ainda hoje, Assis Lima, o mais velho dos irmãos. (Assis também seguiu a carreira de músico, tendo se dedicado a bandas marciais e chegou a ser regente da Banda do Estado da Guanabara). O grupo logo chamou a atenção e um produtor da
Rádio Cruzeiro do Sul, Paulo Roberto, os levou para uma audição. Impôs como única condição que a dupla se apresentasse como índios -a família ouvira falar que se descobrissem que eram índios, seriam todos mortos, razão pela qual tentavam disfarças suas origens. O grupo todo adaptou-se plenamente à cidade e ao modo de vida dos brancos. Natalício/Mussapére serviu ao exército e por pouco não seguiu com as tropas brasileiras que foram lutar durante a 2º Guerra Mundial.

Mas voltemos à música. Das apresentações na Rádio Cruzeiro do Sul até chegar ao célebre Cassino da Urca, foi um salto. Nessa época, a dupla Os Índios Tabajaras estava formada por aqueles que mais se interessaram e demonstraram aptidão para o instrumento, Mussapére e Erundy. Um empresário os convidou e eles seguiram para uma longa jornada por países da América, começando pela Argentina até chegar ao México. Na Capital mexicana, foram apresentados em um show pelo ator Ricardo Montalbán, que os definiu como “analfabetos musicais”. Provavelmente não havia nenhuma intenção pejorativa na expressão, talvez, até pelo contrário, quisesse o posteriormente famoso astro hollywoodiano destacar a importância dos jovens músicos tocarem tão bem e executarem seus instrumento “de ouvido", como se diz no jargão musical. A verdade é que Mussapére (Nato Lima), não gostou, Comprou algumas partituras e varou noites estudando, a princípio sozinho, sem nenhum professor.

Nos Estados Unidos, a dupla gravou um disco, com a canção mexicana Maria Elena, de Lorenzo Barcelata, interpretada por eles em ritmo de foxtrote. O disco não obteve sucesso e eles voltaram ao Brasil, não sem antes passarem pela Venezuela, no caso de Natalício/Mussapére, onde estudou música com Francisco Christancho, maestro da Sinfônica de Caracas, e Erundi/Antenor foi para Buenos Ayres, onde viveu algum tempo também se dedicando ao estudo da música e do canto.

No Brasil, aproveitaram algumas economias obtidas durante os anos de excursão e compraram um terreno nas proximidade da lagoa de Araruama, região dos Lagos no estado do Rio de Janeiro, onde, com o restante da família, passaram a viver da agricultura, abandonando a carreira musical. Afinal, depois de algumas tentativas, perceberam que não teriam nenhuma chance no Brasil. Viveriam ali, pacifica e anonimamente, se o destino não tivesse outros planos para eles. Por essa época, em Nova Iorque, um produtor de uma rádio local, em busca de músicas para um programa que estava sendo produzido e procurando temas para compor o fundo musical, descobriu nas prateleiras da emissora, a antiga gravação de Maria Elena. Diante do sucesso do programa e da trilha sonora, os ouvintes começaram a escrever e telefonar para emissora, querendo informações sobre os dois violonistas. A gravadora RCA Victor não sabia onde encontrá-los e entrou em contato com a filial brasileira, que também não tinha ideia do paradeiro da dupla, até descobri-los no sítio de Araruama.

Convidados pela gravadora, Nato e Antenor viajaram para os EUA, onde passaram a se apresentar em shows por diversas cidades americanas. Enquanto isso, a gravação de Maria Elena, relançada, batia recordes de venda, chegando a ocupar o 4º lugar entre as mais vendidas, conseguindo superar uma certa banda inglesa chamada The Beatles, em início de carreira nos Estados Unidos. Após algumas audiências na televisão, inclusive no Ed Sullivan Show a dupla, já então conhecida como Los Índios Tabajaras, passou a ser muito requisitada no normal show business americano, quando tocavam canções conhecidas, americanas ou não, e também executavam músicas clássicas, adaptadas por Nato Lima (Mussapére) para o seu violão solo e para o violão base de Antenor (Erundi).

Interessante observar que a dupla fazia duas apresentações em cada show: em trajes típicos de índios estilizados, uma mistura de índios brasileiros, americanos e incas, tocavam na primeira parte, músicas populares, boleros, blues, temas de filmes, entre outros sucessos do hit parade internacional -Maria Elena entre esses- e na segunda parte, voltavam vestidos à rigor, para executarem peças de Chopin, Tchaikovsky, Rinsky-Korsakov, Villa Lobos, entre outros, além de músicas especialmente compostas para violão, como as obras de Joaquim Rodrigo, Manuel de Falla, Francisco Tárrega, Antônio Lauro, etc.

As implicações comerciais praticamente impossibilitaram a dupla de executar um repertório brasileiro. Afinal, a carreira normal  de Los Índios Tabajaras foi construída a partir do mercado americano, para o público daquele país, além de Europa, Japão e América Latina, onde a música brasileira era pouco conhecida. Ainda assim, tivemos a oportunidade de conhecer algumas gravações de músicas brasileiras, como Tico Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu, Ave Maria no Morro, de Herivelto Martins, Prelúdio Pra Ninar Gente Grande (Menino Passarinho), de Luiz Vieira, entre outros solos de violão, além de algumas músicas cantadas, como Meu Pinhão, de Zé do Norte, Caminhemos,
de Herivelto Martins, Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso, entre outras. Chegaram mesmo a gravar a marchinha Mamãe Eu Quero, sucesso carnavalesco de Jararaca.


A OBRA

Difícil qualificar o trabalho dos Índios Tabajaras. Nos Estados Unidos, diziam que eles faziam um soft jazz, rótulo criado pela indústria fonográfica americana para definir um som refinado e elegante, com uso de guitarras acústicas (violão, para nós brasileiros) sem deixar de enfatizar os elementos tradicionais do jazz. Poderíamos até dizer: um jazz “mais fácil” de se escutar. No entanto, pela variedade de seu repertório, é impossível e até mesmo inútil a intenção de enquadra-los dentro de um modelo. Afinal, eles iam de Maria Elena à La Cumparcita; de Chopin à Manuel de Falla; de La Mer à música dos povos Mapuches.Se formos fazer uma avaliação muito crítica e severa, podemos chegar à conclusão de que as gravadoras por onde passaram impuseram um repertório de ocasião, seja para vender boleros, seja para vender a trilha sonora do filme do momento.
Isso é verdade. Mas não é menos verdade que eles, ao aceitar as imposições, o faziam com rigor profissional, interpretando e criando um estilo que chegou a ser reverenciado por astros como o guitarrista mexicano Carlos Santana, além de nomes consagrados do jaz, como Chet Atkins, que convidou a dupla para a gravação de um álbum em Nashville, juntamente com o pianista Floyd Cramer. Mas a música que mais trazia realização pessoal ao violonista Nato Lima era a obra dos autores clássicos.

Desde o início da carreira, quando no Chile um garoto lhe apresentou a Fantasia Improviso, de Frédéric Chopin, Nato apaixonou-se por essa estilo de música. Foi essa paixão que o levou a aprender a ler partitura, e à partir dela, adaptar para o violão peças de autores consagrados. “Foi tempo de muita dureza”, declarou em entrevista ao violonista brasileiro Fábio Zenon, em seu programa na Rádio Cultura, de São Paulo. “Eu comprava partituras e varava a noite, sozinho, aprendendo a ler e também treinando para aprimorar a técnica interpretativa. Eu tocava com os dedos, mas conheci a técnica da palheta, que dava muita velocidade. Resolvi juntar as duas técnicas e criei um estilo próprio de tocar, com uma velocidade que poucos no mundo conseguiram”.

A admiração de Fábio Zenon pelos Índios Tabajaras era tão grande que, ao entrevistar Natalício/Mussapere para seu programa O Violão Brasileiro na Rádio Cultura (SP), declarou se sentir como um adolescente frente a frente com seu herói, o Capitão Nemo. (Zenon é claro, estava se referindo ao célebre personagem de Júlio Verne).Para o jornalista e crítico musical Luís Nassif, Mussapére atingiu uma técnica e virtuosismo que o destacam como um dos gênios do violão no mundo. “No Brasil, poucos existem com quem compará-lo. Em todas as faixas, mesmo nas mais óbvias, há uma técnica refinada, um estilo de tocar vigoroso, próprio da escola de João Pernambuco e Dilermando Reis. Aliás, não há termo de comparação entre Nato Lima e Dilermando: o talento de Nato é desproporcionalmente superior". (Luís Nassif, em Os Íncríveis Índios Tabajaras, em 23.09.2006 - Portal de Luís Nassif). Um exemplo da velocidade interpretativa de Nato Lima está na música O Voo do Besouro, da Ópera O Conto do Czar Saltan, de Nicholay Rinsky-Korsakov, quando chega estabelecer um recorde de execução de notas por minuto.

Mas as surpresas não terminam aí. Natalício Moreira Lima, o Mussapére também compôs algumas obras para violão, músicas que, executadas pelo mundo afora, lhes permitiram, através do direito autoral, tivesse uma vida digna até ser derrotado por um câncer de estômago, em 15 de Novembro de 2009. Sua esposa, a violonista japonesa Michiko Lima, também vítima de câncer, sobreviveu ao tratamento e vive ainda em Nova Iorque, no mesmo apartamento nas proximidades no Central Park, onde Natalício costumava receber artistas do mundo inteiro, entre eles, os brasileiros Sérgio Abreu, Turíbio Santos, Barbosa Lima e os irmãos Assad, Sérgio e Odair.

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As informações mais completas sobre Os Índios Tabajaras podem ser encontradas no site do jornalista Nelson Augusto "http://www.nelsons.com.br" em artigo de Francisco Cavalcante e no blog da jornalista Laura Macedo, que encontrei no Portal de Luís Nassif, além de informações obtidas na entrevista de Nassif com Nato Lima. Também muito contribuiu ouvir o Programa O Violão Brasileiro, de Fábio Zenon, quando entrevistou Nato Lima pessoalmente. Outras informações complementares me foram prestadas por Pablo Lima, sobrinho–neto de Mussapere e neto de Assis Lima, o mais velho dos filhos de Ugajara e que vive ainda hoje no Rio de Janeiro.
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Ah!, Antes que alguém pergunte: O conflito entre o Ceará e o Piauí, a que se refere o artigo acima, foi contornado com a posse definitiva, pelo Ceará, da área em conflito. O Ceará cedeu ao Piauí, como compensação, parte de seu litoral. Como se vê, evitou-se a deflagração antecipada da 2ª Guerra Mundial!
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Alguns vídeos de Los Índios Tabajaras podem ser encontrado a partir do Google e do YouTube, gravados em apresentações na Tevê americana, como no Ed Sullivan Show. Vale a pena conferir.
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Estes apontamentos foram rascunhados em Fevereiro de 2010, após trabalho de pesquisa da vida e do acervo musical dos Índios Tabajaras, a pedido do radialista Nelson Augusto (Radio Universitária-Fortaleza), com o objetivo de produzir um programa especial sobre a dupla. O Programa não chegou a ser realizado, mas eu me senti feliz por conhecer a história desses brasileiros incríveis.

Em novembro próximo (dia 15), completa-se um ano da morte de Mussapére em Nova Iorque. Morreu quase anonimamente, sem realizar seu último sonho: comprar um sítio e voltar a viver no Brasil, como fez o irmão mais novo Antenor (Herundi), que enfastiado do show business largou tudo e foi viver em Araruama, Rio de Janeiro, dedicando-se, enquanto viveu, a causas ecológicas.


Claudeide Oliveira

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