sábado, 30 de outubro de 2010

Resposta de um aposentado para um doutor

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Meu caro Demétrio Magnoli,


Seu artigo na no Globo– Um mito de papel - chega a ser assustador. Uma desconstrução teórica, recheada de cópias dos clichês disparados pela grande imprensa. Vestido com o fraque do academicismo e com uma profusão de desconsiderações contra Lula, o PT e a esquerda. Mas, principalmente , contra a maior parte da população brasileira. A que não lê manchetes, muito menos graduados articulistas bissextos.
Quando digo assustador é porque, a cada dia que passa – e especialmente durante esta eleição – uma avalanche de textos na mídia me exibe pessoas que parecem habitar um país diferente do meu.
A começar pelo título. Você é outro que decidiu se apropriar da História. Sem contar a total falta de acuidade e de isenção para analisar a figura do presidente.
É muito difícil para alguns próceres da imprensa e da “alta inteligência” brasileira entender Luís Inácio. Ele não nasceu para prestar conta ao jogo de xadrex mental dos doutores. Lula é o caboclo que fala fundo, falando o raso. É um personagem sagaz, esperto, desculturado e permanentemente humano em acertos e erros. Um sujeito assim, assim, roseano do sertão de Pernambuco, cabra da peste pendurado num poste que não era para ser seu. Querer transformá-lo em mito nunca foi o mote de sua platéia. Lula é um emblema.
Seu texto, carregado pela erudição emparedada por citações e significados, tem a arrogância típica dos escritórios. Mas, quando precisa, desce fácil à linguagem dos bordéis, rebaixando os personagens que não lhe agradam: Dilma Rousseff, candidata a presidente, virou duas vezes a “mulher do Lula”. O carimbo que você lhe põe é típico de sua classe, Demétrio. Não repito arrogância para não ficar redundante. Dilma Rouseff tem nome.
O Brasil que frequento não sai nas páginas do Globo. O Brasil tingido, escrachado, cujos coadjuvantes deveriam ser os protagonistas, só tinha lugar no tanque e na pia da cozinha. Agora entrou na sala. Este é o Brasil que admira Lula. É o da mesma raça dele: brincalhão, gaiato, zombeteiro, carinhoso e às vezes brigão. E muito ruim de palavreado. Quando leva uma televisão pra consertar não fala que está estragada, fala que está “sem feição e sem proseado”. Ou seja, sem imagem e sem som. Pra entender isso é preciso ter comido calango rosado de Minas ou pastel de posto de gasolina em Juazeiro.
Um Brasil às vezes vaidoso que, em sua pobreza simbólica, pede um presente de aniversdário. Como Lula fez.
Não exagere, Demétrio. Tem coisa pior no mundo.
Seria mais fácil, quando você simplifica a esquerda brasileira, dar logo nome às reses. Aos meus ouvidos parece que você quis dizer Niemeyer, Aldir Blanc, Ziraldo, Eric Nepomuceno, Leonardo Boff etc. Transcrevo: “pela vertente dos intelectuais de esquerda que renunciaram às suas convicções básicas(...) Eles retrocederam à trincheira de um anti- americanismo primitivo e, ecoando uma melodia tão antiga quanto anacrônica, celebram uma imagem de um líder salvacionista que fala ao povo por cima das instituições da democracia.”
Ora, Demétrio, quantos chavões! Lula sempre foi um democrata, do chapéu às meias.
Você só deve ler os jornais das quatro famílias (por falar em família, lembrei-me de Marlon Brando). Vá na internet, descubra onde está hoje a imprensa independente do Brasil. A única pessoa que você deu nome, ao falar da esquerda, foi a Marilena Chauí. Rebaixando-a imediatamente a “pós-mensalão”. Saco de pancada fácil, feito o José Dirceu. Marilena vai ser, na História, com todos os seus defeitos, uma expressão brasileira. Nítida e beligerante como sempre o foi.
Não adianta seu vaticínio, ninguém mais arranca isto dela. Sugiro: desanque o Chico Buarque. Tire a toga, Demétrio.
Você fala em jornalismo honesto e eu pergunto: qual? O que você lê e o que estampa a vinte quatro quadros por segundos qualquer farsa que lhe for conveniente? O casal da Globo vibrando diante de uma foto borrada lhe trás mais prazer do que uma bolinha de papel quicando na cabeça de um político que se deixou ridicularizar ao longo da campanha?
Demétrio, não importa o resultado de domingo no qual, pelo que vejo, você opta pelo Serra ou pelo voto em branco.
Importa é que você , com todos seus considerandos e finalmentes, não vai ser outro a tentar rebaixar Lula à poeira da História.
E acrescento: Lula não “urra”, Lula grita. Erudições e submissão de Lula à sua crítica – e à de milhões de brasileiros- é uma pretensão pra cair no vazio.
Eu me apresento como Carlos Torres Moura, aposentado, 62 anos, segundo grau, artigo 99. Ex-bancário. Não para me fazer de humilde ou inferior. Só como referência. Lamento que O Globo – e a imprensa que carrega o ranço do baronato – crave no final de cada artigo uma identificação de antemão qualificatória: Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana.
Já passou da hora de os brasileiros desqualificados deixarem de abaixar a cabeça por serem pedreiros, bancários, comerciários, açougueiros, camelôs, empregadas domésticas, comerciários, pipoqueiros, entregadores de pizza, porteiros de edifício, diaristas, comerciantes, padeiros, frentistas, operadores de telemarketing, faxineiros, lavradores, palhaços de circo, professores, carteiros, catadores de lixo, biscateiros, policiais, estivadores, garçons, camareiros, bombeiros, comerciantes, eletricistas, lanterneiros, marinheiros......

Carlos Torres Moura
Além Paraiba-MG
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Um mito de papel
DEMÉTRIO MAGNOLI


“Não me importo de ganhar presente atrasado.
Eu quero que o Brasil me dê de presente a Dilma presidente do Brasil”, conclamou Lula, do alto de um palanque, dias atrás. Não foi um gesto fortuito.
Antes, a Executiva do PT definira a campanha “Dê a vitória de Dilma de presente a Lula”. Aos 65 anos, a figura que deixa o Planalto cumpre uma antiga profecia do general Golbery do Couto e Silva. O “mago” da ditadura militar enxergara no sindicalista em ascensão o “homem que destruirá a esquerda no Brasil”. Quando o PT trata a Presidência da República como uma oferenda pessoal, nada resta de aproveitável no maior partido de esquerda do país
Lula vive a sua quarta encarnação.
Ele foi o expoente do novo movimento sindical aos 30, o líder de um partido de massas aos 40, o presidente salvacionista aos 60. Agora, aos 65, virou mito. O mito, contudo, é feito de papel.
Ele vive nos ensaios dos intelectuais que se rebaixam voluntariamente à condição de áulicos e nos artigos de jornalistas seduzidos pelas aparências ou atraídos pelas luzes do poder.
Todavia, ele só existe na consciência dos brasileiros como fenômeno marginal.
Daqui a três dias, Lula pode até mesmo ficar sem seu almejado carrinho de rolimã. A mera existência da hipótese improvável de derrota de Dilma evidencia a natureza fraudulenta da mitificação que está em curso.
“É a economia, estúpido!”, escreveu James Carville, o estrategista eleitoral de Bill Clinton, num cartaz pendurado na sede da campanha, em 1992. George H. Bush, o pai, disputava a reeleição cercado pela auréola do triunfo na primeira Guerra do Golfo, mas o país submergia na recessão. Clinton venceu, insistindo na tecla da economia.
Por que Dilma não venceu no primeiro turno, se a economia avança em desabalada carreira, num ritmo alucinante propiciado pelo crédito farto e pelos fluxos especulativos de investimentos estrangeiros? A pergunta deve ser esclarecida. Lula abordou a sua sucessão como uma campanha de reeleição. No Brasil, como na América Latina em geral, o instituto da reeleição tende a converter o Estado numa máquina partidária. A Presidência, os ministérios, as empresas estatais e as centrais sindicais neopelegas foram mobilizados para assegurar o triunfo da candidata oficial.
Nessas condições, por que a “mulher de Lula”, o pseudônimo do mito vivo, não conseguiu reproduzir as performances de Eduardo Campos, em Pernambuco, Jaques Wagner, na Bahia, Sérgio Cabral, no Rio de Janeiro, Antonio Anastasia, em Minas Gerais, ou Geraldo Alckmin, em São Paulo? “Há três tipos de mentiras — mentiras, mentiras abomináveis e estatísticas”, teria dito certa vez Benjamin Disraeli.
Os institutos de pesquisa registram uma taxa de aprovação de Lula em torno de 80%. Cerca de dois terços da aprovação recordista originam-se de indivíduos que conferem ao presidente a avaliação “bom”, não “ótimo”. Nesse grupo, uma maioria não votou na “mulher de Lula” no primeiro turno. Mas a produção intelectual do mito, a fim de fabricar uma “mentira abominável”, opera exclusivamente com a taxa agregada.
Há muito mais que ingenuidade no curioso procedimento.
As águas que confluem para o rio da mitificação de Lula partem de dois tributários principais, além de pequenas nascentes poluídas pelos patrocínios oriundos do Ministério da Verdade Oficial, de Franklin Martins. O primeiro tributário escorre pela vertente dos intelectuais de esquerda, que renunciaram às suas convicções básicas, abdicaram da meta de reformas estruturantes e desistiram de reivindicar a universalização efetiva dos direitos sociais. Eles retrocederam à trincheira de um antiamericanismo primitivo e, ecoando uma melodia tão antiga quanto anacrônica, celebram a imagem de um líder salvacionista que fala ao povo por cima das instituições da democracia. Nesse conjunto, uma corrente mais nostálgica, que se pretende realista, enxerga em Lula a derradeira boia de salvação para a ditadura castrista em Cuba. A Marilena Chauí pós-mensalão, transfigurada em porta-estandarte do “controle social da mídia”, é a síntese possível do lulismo dos intelectuais.
“As pessoas ricas foram as que mais ganharam dinheiro no meu governo”, urrou Lula num comício eleitoral em Belo Horizonte, pronunciando um diagnóstico inquestionável. O segundo tributário da mitificação desce da vertente de uma elite empresarial avessa à concorrência, que prospera no ecossistema de negócios configurado pelo BNDES e pelos fundos de pensão. Essa corrente identifica no lulismo o impulso de restauração de um modelo econômico fundado na aliança entre o Estado e o grande capital. Os empresários da Abimaq divulgaram um manifesto em defesa do BNDES, enquanto Eike Batista, um sócio do banco estatal, o cobria de elogios. Na noite do primeiro turno, os analistas financeiros quase vestiram luto fechado. Tais figuras, tanto quanto os controladores da Oi e os proprietários da Odebrecht, representam o lulismo da elite econômica.
O mito ficou nu no primeiro turno.
Todos os indícios sugerem que o aguardado triunfo de Dilma foi frustrado exatamente por Lula — que, na sequência do escândalo de Erenice Guerra, afrontou a opinião pública ao investir contra a imprensa independente.
“Nem sempre é a economia, estúpido!”: os valores também contam. Naquele momento as curvas de tendências eleitorais se inverteram, expressando a resistência de mais de metade dos brasileiros ao lulismo. O jornalismo honesto deveria refletir sobre isso, antes de reproduzir as sentenças escritas pelos fabricantes de mitos.
Os mitos fundadores pertencem a um tempo anterior à história. No fundo, desde a difusão da escrita na Grécia do século VIII a.C., só surgiram mitos de papel — isto é, frutos da obra política dos filósofos. Por definição, tais mitos estão sujeitos à desmitificação.

Já é hora de submeter o mito de Lula a essa crítica esclarecedora.

DEMÉTRIO MAGNOLI
é sociólogo e doutor em Geografia Humana.

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