quinta-feira, 1 de junho de 2017

Ser mãe é padecer na inquisição da maternidade






Folha.com, 01/06/17



Ser mãe é padecer na inquisição da maternidade

Por Mariliz Pereira Jorge*



Causou alvoroço no mundo maravilhoso – e implacável – da maternidade a reportagem sobre uma escola que oferece todo tipo de serviço (de lavanderia à comida congelada) para que as famílias possam deixar seus filhos em horário integral. Mãe, desavisada das maldades do mundo e no jornalismo, com um filho de três anos matriculado na escola desde os quatro meses, uma advogada entrevistada falou que "nunca precisou fazer uma papinha de bebê na vida".

Para quê? 

Estava aberta mais uma temporada no tribunal da internet. Decretamos que o que ela faz é terceirização da educação, que ir ao mercado e fazer compras com os filhos faz parte da relação entre mães e filhos, que é um absurdo dar comida congelada para os rebentos aos finais de semana. Por isso há tanta criança desajustada, tornam-se esses adultos destrambelhados que cresceram sem afeto. Aquilo não é escola, mas um orfanato onde os pais despejam os filhos. Filho não é bicho de estimação.

Mas o pior dessa surra de sarrafo sobrou, adivinhe, para quem? Para a vaca da mãe, que não foi poupada pela inquisição da irmandade, formada por mães perfeitinhas que têm a fórmula ideal, não apenas para formar as suas crias, mas as dos outros. 

Eu tenho medo de ter filho. Medo porque é possível que eu, com todos os meus defeitos, minha falta de experiência, de rotina, me encaixasse nessa descrição nada abonadora que fizeram à pobre da advogada. 

Por que, então, ter filho?, foi o questionamento geral. Irresponsável. Covarde. Folgada. Preguiçosa. Egoísta. Péssima mãe. Isso não é ser mãe. Tomara que o filho se vingue e não lhe preste assistência na velhice. Não é para rir, falaram isso seriamente

Foi uma malhação virtual. Pelo que entendi, entre os critérios das it-mães têm que saber fazer papinha e lavar roupa para ser uma boa progenitora. Você não faz essas coisas? Vaca desnaturada. 

É o tipo de coisa que acontece todos os dias. Amigas me contam que são eternas devedoras, sentem-se fracassadas quando o assunto é a criação dos filhos. Hoje, o primeiro motivo para desfazer amizade é política, o segundo é participar de grupo de mães no Whatsapp. Eu minto, disse uma delas, para evitar conflito.
 
Vamos logo apontando o dedo para mulheres que não conhecemos. Ninguém sabe nada daquela mãe, além do fato de que ela não faz papinha e deixa o filho na escola em período integral. Não sabemos se ela tem outra alternativa a não ser a de encontrar o melhor lugar possível para deixar o filho enquanto trabalha. Se a criação depende apenas dela, sem a ajuda de familiares ou de um companheiro para dividir obrigações. Conheço gente que larga os filhos com os avós, enfia um tablet para a criança não encher o saco e estava lá espinafrando a vida alheia. 

Talvez essa mulher esteja apenas tentando ter a vida que muitas de nós reclamamos não ter. Carreira bem-sucedida, promoções, responsabilidades, cargos de chefia e filhos. Então, quando tentamos equilibrar essa equação da forma que é possível, do jeito que conseguimos, aparece um batalhão de mu-lhe-res para jogar na cara que uma de nós não é boa mãe. 

Em nenhum momento, em nenhum dos centenas de comentários que li, e muito menos na tal reportagem, vi alguém fazer uma simples pergunta: e o raio do pai? Sabe por que não houve esse questionamento? Porque o dever e a culpa são sempre da vaca da mãe. Como disse um conhecido, podemos morar em cidades grandes, mas continuamos com a moral de senhorinhas do interior. 

Não há jamais essa cobrança em relação aos homens. Se a frase "nunca precisei fazer papinha de bebê na vida" tivesse sido proferida por um, a maioria acharia a coisa mais normal do mundo. Ahhh, homem, né?! Sempre ocupado, trabalha demais, não leva jeito, mas me ajuda. 

Homem, quando é bom pai, vira influenciador. Faz blog, escreve livro, canal no YouTube, ganha dinheiro com palestras, tem milhares de seguidores no Instagram para mostrar que ele, pasme, também faz papinha e troca fralda suja. É ovacionado por uma legião do que? De mu-lhe-res. 

Acho bacana pai participativo, mas, desculpe, não faz mais do que a obrigação. Duvido que haja grupos de pais em que um diz para ao outro, "nossa, você viu como fulaninho chegou todo ranhento na escola? Só tem hambúrguer na geladeira. Aquele cara só trabalha e os filhos são criados pela babá." Não acontece. Grupos de pais no Whatsapp só existem para falar de futebol, marcar chopes e trocar pornografia. 

Você, mãe limpinha exemplar, que tomou ômega-3, fez parto humanizado, comeu a placenta, amamentou, prepara papinhas com suas próprias mãos, enriquecidas por cenourinhas e couve-de-Bruxelas orgânicas, parabéns. Podemos providenciar uma salva de palmas. De verdade. É bonito ver quem pode se dedicar, se não em tempo integral, mais do que a maioria. Mas você não é todo mundo.
 
E vejam só, uma amiga que decidiu parar de trabalhar e cuidar do filho de dois anos disse que é sempre criticada porque "não faz nada". Ela não tem babá, faz papinha, lava, passa, decorou Galinha Pintadinha e investe a maior parte do seu tempo ao pequeno. "Sou vista por outras mulheres como dondoca ou fracassada profissionalmente."

Não tem como agradar esse tribunal.


*Jornalista e roteirista

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