Pragmatismo Político, 19/06/17
"Elite brasileira acha que tem direito a saquear a coisa pública", diz historiador
Por Clarissa Neher, DW
Há pouco mais de 80 anos do lançamento do clássico Raízes do Brasil,
o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, que não distingue o
público do privado, parece ainda presente na sociedade brasileira, apesar das
previsões do intelectual que a cordialidade desapareceria com a
industrialização.
Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda apresentou pela primeira
vez o conceito, resultado de uma sociedade rural autoritária caracterizada pela
família patriarcal. Segundo o intelectual, esse homem cordial dominou as
estruturas públicas do país, usando-as em benefício próprio.
No entanto, não foi exatamente isso o que ocorreu. Para o
historiador João
Cezar de Castro Rocha, a
cordialidade é uma característica de sociedades hierárquicas e desiguais.
Em entrevista à DW Brasil, o autor dos livros Literatura e cordialidade: O público
e o privado na cultura brasileira e Cordialidade à brasileira: mito ou
realidade? debate o conceito de homem cordial e sua ligação com a corrupção.
“O problema da
corrupção endêmica no Brasil só terá solução quando efetivamente constituirmos
uma nação, quando em lugar de homem cordiais e elites que se consideram
superior aos outros, nós formos de fato todos cidadãos”, destaca
Castro Rocha.
DW Brasil: O conceito de
“homem cordial” parece mais atual do nunca. Mas Sérgio Buarque de Holanda
previa que ele desapareceria com a industrialização e o fim da sociedade rural.
Na sua opinião, por que ele não desapareceu?
João Cezar de Castro Rocha: Eu proponho que, na verdade, o homem cordial
não é apenas fruto de uma sociedade agrária, mas característico de uma
sociedade hierárquica e desigual, como a sociedade brasileira, que foi
fundada sobre o trabalho escravo e que ainda hoje mantém a consequência do
longo período de escravidão. Então, o
homem e a mulher cordiais não apenas permaneceram, como pelo contrário,
cresceram e estão muito fortes.
E isso é visível também na
política?
A atual política brasileira, marcada por uma polaridade
radical, por intransigência inédita e por uma intolerância completa é
absolutamente cordial no sentido próprio do termo, ou seja, é uma
política que se faz com afetos, com estômago e não com a cabeça.
A corrupção seria
característica própria do “homem cordial”?
Seria ingenuidade
imaginar que o homem cordial é por vocação mais corrupto do que a seriedade
alemã ou puritanismo anglo-saxão. A corrupção faz parte de toda e qualquer estrutura de
poder, mas a questão central de uma
corrupção que pode ser caracterizada como cordial é a sua associação com a
ideia da hierarquia e da desigualdade.
No Brasil, historicamente, há uma elite que se considera
realmente superior ao restante da população e que, por isso, considera ter
direito a saquear a coisa pública. Nós não temos um Estado no sentido próprio
do termo, temos é um aparato estatal apropriado pelas elites.
O senhor fala da corrupção
nas elites, mas é possível afirmar que ela ocorre também nas camadas mais
baixas, que é algo generalizado?
É preciso diferenciar
a corrupção de uma sociedade que tem um cotidiano esquizofrênico. Em 1808,
quando a família real veio para o Brasil, não havia casas suficientes, e o rei
mandou pintar nas portas de algumas a inscrição “Propriedade Real”, PR,
obrigando os donos a deixá-las para os nobres portugueses. O povo traduziu PR como “ponha-se na rua”. A história da cultura
brasileira é uma oscilação constante entre propriedade real e ponha-se na rua.
Existe uma lei e sabemos que ela não é cumprida porque não há
as condições práticas para cumpri-la, ao mesmo tempo, não podemos verbalizar o
caráter vazio da lei, então, desenvolvemos
uma sociedade profundamente esquizofrênica no sentido próprio do termo. Dizemos
A sabendo que precisamos fazer B. Eu faria uma diferença entre o princípio
esquizofrênico e a corrupção.
Qual seria essa diferença?
Há um princípio de maleabilidade que pode levar a uma corrupção,
mas eu diria que corrupção hoje no Brasil é a apropriação privada dos recursos públicos.
Não dá para comparar o senhor Emilio Odebrecht,
roubando bilhões de dólares, com o pobrezinho do brasileiro que no serviço
público oferece um cafezinho para o atendente. Se dissermos que tudo é a mesma corrupção é
mais um meio que a elite tem de se desculpar.
Mas o jeitinho, esse
desvio do cotidiano, não legitimaria de alguma forma a corrupção nas grandes
esferas?
Acho isso é um
equívoco, pois o que está à disposição da elite brasileira, das empreiteiras,
dos partidos políticos e de políticos não é um jeitinho, é um tremendo jeitão,
não tem comparação. Além disso, a sociedade foi organizada de uma forma
esquizofrênica, o Estado sempre impôs ao povo inúmeros PR e o jeitinho é uma
estratégia, em alguns casos, para driblar a impossibilidade de cumprir o PR.
Mas se simplesmente legitimarmos o jeitinho, nós estaremos
favorecendo a corrupção. Acho importante que, no cotidiano, o brasileiro
comece, por exemplo, a apenas atravessar o sinal quando ele estiver aberto para
pedestres. É muito importante uma
mudança de cultura.
Como seria possível acabar
com esse ciclo desta corrupção generalizada?
Do ponto de vista do Estado brasileiro é preciso acabar com esse discurso tolo de
que tem muito Estado no Brasil, pois não tem. O Brasil tem Estado de menos
para o que de fato importa. É
preciso ainda implementar mecanismos eficientes de controle que tenham como
base a transparência. Do ponto de vista da sociedade é começar uma
discussão a longo prazo que necessariamente deve passar pela educação e,
sobretudo, por uma consciência crescente para mudarmos nossa forma de agir no
trato diário. Por exemplo, não posso defender a universidade pública e não dar
minhas aulas.
O problema da corrupção
endêmica no Brasil só terá solução quando efetivamente constituirmos uma nação,
quando em lugar de homem cordiais e elites que se consideram superior aos
outros, nós formos de fato todos cidadãos.
O que é preciso combater?
É preciso combater uma
sociabilidade que se baseia em tratar o público como o privado, e isso são o
homem ou a mulher cordial. A sociabilidade cordial é movida pelo coração, tanto
ama quanto odeia, tanto pode ser autoritária quanto afetiva, mas impõe
fundamentalmente a ordem pública a lógica do privado.
Sem dúvida para superar esse tipo de corrupção precisamos fazer que o Estado brasileiro
finalmente seja público e deixe de ser um parque de diversões para que as
elites econômicas, políticas e financeiras deste país continuem tirando os
recursos públicos como se fossem privados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário