CartaCapital, 3 de junho de
2017
A miséria de Doria
Por Patrick Mariano
Para ser aceita na alta classe, ter
sucesso, crédito e moradia, Lacey Pound é uma mulher que tenta desesperadamente
conseguir curtidas em seu perfil de uma rede social. Lacey é uma personagem do
episódio “Perdedor”, da série da televisão britânica Black Mirror.
O drama e a ânsia de Lacey é uma assustadora crítica a quem faz de tudo para ter uma imagem “fake” na vida online. É estarrecedor assistir até onde pode ir a desconstrução do ser humano e da própria autoestima para se fazer aceito por um conjunto de regras sobre as quais jamais terá qualquer influência.
Para quem ainda não viu, Black Mirror explora e faz uma
perturbadora crítica da sociedade moderna. Notadamente, das consequências
das novas tecnologias e do aprisionamento das pessoas por elas.
João Doria vive e se
alimenta de uma bolha de ilusões e mentiras construídas no mundo virtual e nos
meios de comunicação de massa. Suas atitudes e decisões são todas pensadas
para receber curtidas e compartilhamentos em busca da construção no imaginário
popular de um personagem inexistente, impossível.
Tento imaginar o que se
passa em sua cabeça. Um dia, vou de roupa de gari e posto foto sorridente. No
outro, humilho e demito uma funcionária, gravo a cena e a torno pública. O dia
amanhece e penso: o que deveria fazer para bombar nas redes e nos meios de
comunicação? Já sei, vou mandar apagar murais de arte urbana e pintar tudo de
cinza.
Doria tenta suprir um profundo vazio político existencial
com ações de marketing as mais tacanhas. Não se sabe sua opinião sobre os problemas
brasileiros, quais suas referências históricas, sociológicas e até mesmo
políticas. Política que, aliás, nega. A
única ação concreta que apresentou foi a de entregar nacos do patrimônio
público aos interesses privados e pedir doações a empresas, uma estranha e
questionável gestão que agride a altivez, ética e a moralidade pública. Tudo ia
bem enquanto o mundo virtual desse conta da completude do real.
Cada vez que o personagem tenta sair do mundo virtual,
infelizmente toma decisões que tem implicado em consequências de maior
gravidade. Num desses lampejos, mandou aumentar a velocidade das vias da
cidade (seu lema é acelera São Paulo). Os resultados foram mais acidentes, mortes e
lesões.
Numa matéria
do Bom Dia Brasil, foi denunciado que o socorro a vítimas de acidentes nas marginas
está demorando mais de 1 hora. Mas, nada
disso importa ao nosso personagem.
Sua mais recente tentativa
de penetrar na realidade foi catastrófica. Sobre
centenas de homens, mulheres, jovens e crianças sob os quais incide o drama da
dependência química, da miséria e da falta de perspectiva, lançou centenas de
policiais, bombas e toda a sorte de violência. Aqueles cidadãos e cidadãs
desde então vagam pelas ruas da cidade não muito distante de onde viviam.
Noutro arroubo autoritário
tentou demolir um prédio com dezenas de
pessoas dentro. Pouco importa se naquele prédio havia seres humanos que
foram atingidos pelos escombros causados pelas suas máquinas, sua referência é o mundo virtual, a
construção de ilusões.
Quando se dá conta de que,
ao se expor no mundo real, nele precisa administrar dramas e problemas humanos
e isso às vezes leva a perda de “likes”, se recolhe ou coloca um avatar no
lugar. Ideal seria se pudesse apagar um post do qual se arrependeu.
Ao ser criticado quase que
unanimemente pela trágica intervenção na Cracolândia,
tentou outro golpe que foi o de determinar a internação compulsória daquelas
desafortunadas pessoas sobre as quais havia jogado bombas e destruído as
paredes da casa. Teve que assistir ao Poder Judiciário paulista lhe dar lições
de cidadania e sobre a Constituição da República.
Lacey Pound, a personagem
da série, termina por se dar conta que aquele mundo que imaginava existir, na
verdade, era uma quimera cruel e dilacerante. Doria precisa continuar no mundo
virtual alimentando ilusões. O trágico é saber que para cada flerte seu com a realidade, milhares de pessoas sofrem com a
insensibilidade e crueldade de desastradas e cruéis decisões. Se a realidade do contato com a cidade que
deveria administrar é insuportável para Doria, a recíproca tem sido verdadeira.
*Advogado e escritor
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