Jornal GGN, 15/06/17
Por Luis Felipe Miguel, em seu Facebook
Eu não queria mais falar do affair Míriam Leitão, mas há algo que está incomodando demais. É a epifania que o episódio gerou em alguns, a visão de que há uma "selvageria" que a esquerda precisa a todo custo extirpar. Com argumentos delirantes e um bom-mocismo de gelar os ossos.
Primeiro, muita gente ignora um fato central: a tal agressão provavelmente nunca existiu. Há as incongruências do relato dela, há o timing estranhíssimo, há os depoimentos, vários, que a contradizem. Daí eu leio gente dizendo que não se pode duvidar da vítima. Isso, me perdoem, é uma demência. Há uma falha lógica. Se não houve agressão, não há vítima, então não há porque deixar de duvidar...
A regra de aceitar a denúncia da vítima como ponto de partida nasceu no contexto do descaso generalizado das polícias diante de casos de violência sexual. É uma regra muitíssimo razoável. Mas não implica negar a possibilidade de denúncia falsa, muito menos estabelecer um dogma de que qualquer pessoa que acuse outras de uma violência sempre merecerá crédito irrestrito e a despeito de quaisquer evidências contrárias.
Parece que o que sobra são algumas cantorias esparsas contra a Rede Globo em momentos isolados do voo, algo pouco educado, talvez, mas que nem de longe justifica tamanho auê. Muito menos que se compare com linchamento, amarrar em poste etc. É o tipo de discurso que evoca um clássico da minha infância, sempre útil para encerrar a discussão: apelou, perdeu.
Caso a agressão tivesse se desenrolado de fato da maneira como Leitão a narra, caberia discutir a gravidade dela. Eu, pessoalmente, acho que o escracho é algo sério, que deveria ser reservado para circunstâncias igualmente sérias.
Acho, sobretudo, que é necessário pesar seu resultado líquido: escrachar um torturador tem certamente um resultado diferente de escrachar uma jornalista reacionária. O torturador é desnudado; a jornalista pode posar de mártir da liberdade de expressão. Portanto, o escracho no avião teria sido provavelmente uma besteira, um exercício mal direcionado de agressividade, uma catarse politicamente mal calculada. Mas está longe de ser um crime de lesa-humanidade.
Li também gente dizendo que não se podia escrachar Leitão porque ela é reacionária mas "sempre defendeu os direitos humanos". Com que conceito de "direitos humanos" se está trabalhando, em que a proteção ao trabalhador e a garantia da velhice digna, por exemplo, não entram?
O meu incômodo, afinal, está nisso. Tanta indignação porque, aparentemente, está faltando finesse do nosso lado. Enquanto isso, a opressão cotidiana das maiorias continua normalizada. Antes que saquem a carta de gênero, não custa lembrar que, com o retrocesso nos direitos, as mulheres trabalhadoras são as primeiras vítimas do golpe que Leitão contribuiu, no limite das suas forças, para produzir. Então vamos pensar no tamanho da violência sofrida, entre a jornalista da Globo no avião e a operária, a balconista ou a camponesa, e calibrar nossa indignação de acordo.
Esse bom-mocismo é a marca de uma esquerda que tem medo do embate político, que vê o conflito social como diletantismo, que está focada na admiração de suas próprias qualidades.
Minha linha divisória não está nas boas maneiras; é quem quer a democracia e a garantia dos direitos contra quem não quer. Do lado de cá, tem gente rude, tem gente que perde a cabeça, tem gente que xinga, tem gente com uma visão política que acho limitada. Discordo, muitas vezes, às vezes posso até me exasperar, mas discordo estando do mesmo lado.
O caso de Míriam Leitão, mesmo que fosse verdade, estaria longe de justificar tamanha revolta moral. Afinal, estamos falando de política, do futuro de milhões de pessoas de carne e osso e do envolvimento muitas vezes apaixonado com causas e ideais. E no Brasil. Não estamos falando de um baile à fantasia em alguma Noruega mítica.
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