domingo, 4 de junho de 2017

Pinel e o barbarismo que São Paulo assistiu




Folha.com, 04/06/17


Em 2017, não é possível achar que drogaditos não devam ter autonomia



Por Vladimir Safatle



Trata-se de um fato que ocorreu na Revolução Francesa. Um fato que influenciará, de forma decisiva, nossas ideias de liberdade. Ele ocorre em um asilo para loucos em Bicêtre, na periferia de Paris.

Há de se pensar no fato de uma dimensão fundamental de nossa concepção de liberdade se definir exatamente em um asilo periférico, em um lugar até então obscuro e profundamente violento. Lugar de invisibilidade, no qual aqueles que lá entravam eram destinados ao desaparecimento social.

Pois até então, asilos dessa natureza eram depósitos humanos, nos quais eram acorrentados indefinidamente aqueles descritos à época como "dementes", "insanos", portadores de "vesânias" juntamente com libertinos, pequenos criminosos, entre outros. Local no qual se aplicava toda forma possível de coerção física e brutalização, o que era apenas uma das consequências de as práticas clínicas serem baseadas no que deveríamos chamar de "estratégias de dessubjetivação".

No interior de tais estratégias, a loucura era vista como uma perda da humanidade, uma regressão em direção à animalidade. Por isso, não se tratava de ver diante de nós um sujeito, mas alguém cuja fala seria apenas fruto da perda absoluta da razão, cujos atos não teriam nada a respeito do qual deveríamos compreender, cujos comportamentos seriam puramente condicionados.

Mentes aprisionadas pela compulsão, pelo delírio, possuídas pelo que eliminaria de vez qualquer possibilidade de autonomia.



Foi neste contexto que um médico, imbuído dos ideais iluministas e recém-nomeado à frente do asilo de Bicêtre, decide desacorrentar os loucos. Seu nome era Philippe Pinel.

O princípio fundamental da prática clínica defendida por Pinel se baseava na afirmação de que a loucura não era a exclusão absoluta da razão, mas seu enfraquecimento.

Assim, toda intervenção clínica só poderia ser bem-sucedida à condição de apelar a essa espécie de razão enfraquecida. Um apelo que não poderia ocorrer se o médico e a instituição asilar fossem sinônimos de violência e de brutalidade.

Pois a doença mental é, de certa forma, uma rebelião fracassada contra a própria ordem médica e disciplinar que procura "curá-la". Há de se saber lidar com o sentido de tal rebelião, com seu conteúdo de verdade e com sua força produtiva.

Diante da proposição de desacorrentar os asilados feita por Pinel, a Assembleia Nacional decide enviar uma comissão para o asilo. Encabeçada por Couthon, ela se assusta ao contato com os loucos acorrentados. "Cidadão, você deve ser louco para querer libertar loucos como esses", diz Couthon. "Eles agem dessa forma porque os privamos de sua liberdade", responde Pinel. "Faça como quiser, mas temo que você será vítima de sua própria presunção."

Bem, foi graças a essa presunção que não apenas começou a história da psiquiatria moderna, mas também a longa e turbulenta história da experiência da liberdade como condição para a emancipação diante do sofrimento psíquico.

O gesto de Pinel, mesmo que limitado (como mostrará Foucault), foi decisivo para que as relações entre razão e loucura fossem repensadas, para sermos mais sensíveis à maneira com que a ideia de razão presente no senso comum é baseada em mecanismos profundos de exclusão e violência. O gesto de Pinel e sua exigência de ressubjetivação vale para todas as práticas clínicas que queiram lidar com o sofrimento psíquico, seja ele a esquizofrenia, a angústia ou a drogadição.

Não seria possível esquecer desse momento fundador de nossas expectativas de emancipação e liberdade diante do tipo de barbarismo que a cidade de São Paulo assistiu nos últimos dias ao se deparar com o desejo de internação forçada de sujeitos com drogadição.

Barbarismo bem sintetizado nas palavras de seu "prefeito": "Não é possível imaginar que um dependente químico tenha capacidade autônoma. Está possuído pela droga". Bem, retirem "dependente químico" e coloquem "louco", retirem "droga" e coloquem "loucura" e vocês entenderão para que época regredimos.

Na verdade, o que não é possível é que, em 2017, ainda se imagine que drogaditos sejam possuídos (o vocabulário teológico não está aqui por acaso) e que as pessoas não devem ser tratadas por meio de uma aliança com seu desejo de autonomia. Mas quem interna à força e o faz em nome da "autonomia" devia tentar descobrir o que é o velho princípio de não contradição.

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