Jornal GGN, 11/06/17
Perseguição à Teologia da Libertação foi baseada em fraudes
Por Mauro Lopes
Houve três razões, nenhuma delas efetivamente teológica,
que moveram o combate à Teologia da Libertação no Brasil e na América Latina a
partir de 1978, início do pontificado de João Paulo
II e durante todo o papado de Bento XVI,
até 2013 – 35 anos, portanto. O presente artigo, apesar de
mencionar as três, tem foco em duas delas e apresenta pesquisas recentes
segundo as quais: i) ambas basearam-se
em argumentos fraudentos; ii) o governo conservador da Igreja Católica no
Brasil nesse período foi um rotundo fracasso.
As três
razões:
1. A primeira tem fundo
político-ideológico: demonizou-se
a Teologia da Libertação como se fosse uma adesão ao marxismo e/ou comunismo,
enquanto os dois papas e seus apoiadores eram e são arraigadamente
capitalistas e defensores do direito à propriedade e à acumulação irrestrita de
riquezas. A Igreja no Brasil
virou as costas aos pobres como sujeitos da ação pastoral para fazer deles, no
máximo, objeto de um olhar piedoso. O artigo não se deterá sobre este
assunto.
2. A segunda razão foi eclesiológica (de
ecclesia, Igreja) e vincula-se ao tema do poder: os dois papas, João Paulo II e
Bento, a Cúria romana e a maioria da hierarquia católica no Brasil e América
Latina consideram os leigos (pessoas que não são ordenadas sacerdotes) cidadãos
de segunda categoria na Igreja. Defendem que a autoridade e o poder devem
concentrar-se integralmente nas mãos da hierarquia. Para eles, todo o poder
emana do clero e em seu nome será exercido – para implementar essa visão,
amealharam apoio entre em sem número de leigos temerosos e oportunistas. É o que se chama clericalismo.
As experiências das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e dos conselhos de leigos nas
paróquias horrorizaram os conservadores, que as desarticularam. Para os
defensores do clericalismo, uma Igreja circular, não hierárquica, romperia “o
mistério”, tornando-a secular, banal, pois as pessoas comuns demandariam ritos
de conotação mágica e subserviência à autoridade. Para os conservadores, a
solução seria a obediência irrestrita dos leigos à hierarquia e investimentos
que garantissem ordenação de mais padres e a abertura novas paróquias. A
estratégia mostrou-se equivocada, como você verá nas pesquisas, mas serviu para
concentrar o poder da Igreja nas mãos dos hierarcas.
3. A terceira motivação para a campanha de
ódio e aniquilamento contra a Teologia da Libertação foi pragmática: os conservadores alegavam à época
(segunda metade dos anos 1970) que os princípios, opções litúrgicas e prática
pastoral de leigos, padres e teólogos vinculados de alguma maneira a esta
corrente estavam afugentando os fiéis e esvaziando as igrejas.
O combate à Teologia da Libertação traduziu-se numa
campanha sistemática de perseguição a cardeais, bispos, padres, freiras, teólogos e
ativistas leigos nas paróquias e comunidades promovidas por Roma, com
iniciativas similares da hierarquia local (veja, sobre isso, esclarecedora
entrevista do padre Paulo Sérgio Bezerra
ao blog). Vários gestos de João Paulo II e Bento XVI indicaram os novos
rumos da Igreja, na contramão do
Vaticano II, e autorizaram as campanhas. Alguns deles: os processos e
punições nos anos 1980 e 1990 a Leonardo Boff da
Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida por Joseph Ratzinger, a divisão da Arquidiocese de São Paulo, em
1989, com o objetivo de enfraquecer
dom Paulo Evaristo Arns, a repreensão
pública ao padre Ernesto Cardenal, aliado dos sandinistas na Nicarágua, por
João Paulo II, em 1983; as seguidas repreensões ao arcebispo de San Salvador,
dom Oscar
Romero, sinalizando ao clero
ultraconservador e aos militares do país que estava desautorizado pelo Papa,
num claro sinal verde à campanha contra ele, até o
assassinato por paramilitares durante a celebração da missa, em 1980.
Como se
deu o governo da Igreja no Brasil nesses 35 anos? O primeiro passo foi o
rompimento dos moderados, pressionados por Roma e por seu desejo de fazer
carreira na instituição, com os progressistas ligados de alguma forma à
Teologia da Libertação. O segundo foi a composição de uma nova aliança
dos moderados com dois segmentos: os conservadores “tradicionalistas” e a
corrente “carismática”, os neopentecostais da Igreja Católica (cujas expressões
mais barulhentas foram a Renovação Carismática Católica e a Canção Nova).
Hoje é possível constatar que os restauracionistas, como qualifica o Papa
Francisco (aqui), inimigos abertos ou velados do Concílio Vaticano II, campo
que reúne tanto conservadores como carismáticos, vivenciam os primeiros sinais
da crise de sua hegemonia de 35 anos, com a primavera em Roma.
Com a primavera, salta aos olhos o fracasso
retumbante do governo de mais de três décadas: 1) a perda
de fiéis católicos tornou-se uma torrente e 2) a Igreja deixou de ser protagonista, tornando-se mero objeto decorativo
no sistema de dominação dos ricos do continente – mesmo em sua função de
controle social/moral dos pobres, os conservadores viram sua influência ser
transferida em boa medida para as correntes neopentecostais protestantes, das
quais o pentecostalismo católico (os “carismáticos”) é uma cópia mal acabada.
O que
aconteceu durante os 35 anos de hegemonia conservadora/carismática?
1. Quanto
ao número de católicos no Brasil, uma sangria sem precedentes.
Veja a
evolução do número de católicos no país desde 1872[1]:
Há um
processo de redução da presença católica no país constatada pelas pesquisas
desde fins do século 19. Ela apresenta uma pequena aceleração ao longo dos anos
1970 que se torna uma curva acentuada a
partir da instalação do ciclo conservador/carismático: o percentual de
católicos declarados nos censos despenca a uma velocidade brutal a partir dos
anos 1980, caindo de 88,96% para 68,43% ao final da primeira década do século
21.
No ritmo atual, estima-se que num prazo entre 10
anos (DataFolha) e 20 anos (IBGE) o número de católicos será superado em pelo
de evangélicos no Brasil, conforme as projeções realizadas por José Eustáquio Diniz Alves no
portal EcoDebate –aqui e aqui.
A grande aposta da aliança moderada/conservadora/
Por isso,
há uma constatação que se torna imperativa e tem sido escamoteada pela Igreja
no Brasil: “os dados do Censo não
permitem que se continue a sustentar uma acusação comum em muitos ambientes na
década de 1980 de que teria sido a pastoral das Comunidades Eclesiais de Base e
dos grupos de reflexão bíblico a responsável pela diminuição relativa dos
católicos e aumento dos evangélicos”.[2]
2. O
clericalismo como estratégia fracassada
Ao
combater a descentralização do poder na Igreja e o protagonismo dos leigos e
leigas, com destaque para o combate à liderança feminina, a aliança entre
moderados, conservadores e carismáticos construiu um discurso segundo o qual o
crescimento da Igreja institucional teria como consequência direta o incremento
no número de católicos. Dito de outro modo: para eles, a falta de padres e
paróquias seria responsável pelas dificuldades de enraizamento dos católicos.
Portanto,
tratar-se-ia de implementar um projeto de criação de paróquias e ordenação de
padres em larga escala para ampliar o número de católicos. A tese revelou-se um
fiasco, pois a crise do catolicismo no
país não é institucional, mas cultural: as pessoas olham para cardeais e bispos
encastelados nas arquidioceses e padres nas paróquias e não enxergam verdade,
autenticidade. Quem tem afirmado isto seguidamente é ninguém menos que o Papa Francisco.
Ao
cruzarem os dados do Censo 2010 do IBGE com pesquisas do Centro de Estatística
Religiosa e Investigação Social (Ceris), Carlos Alberto Steli
e Rodrigo
Toniol constataram que nas mais de três décadas de hegemonia
conservadora à sangria de fiéis correspondeu um aumento ímpar da estrutura
clerical (sacerdotes, diáconos e paróquias). Veja o quadro: é significativo
que apenas
uma dimensão do perfil eclesial no Brasil tenha encolhido, o de mulheres
religiosas (freiras e monjas), que compuseram a linha de frente da Teologia da
Libertação na base da Igreja e foram alvo dos ataques machistas e misóginos
típicos do clericalismo[3].
O crescimento da estrutura clerical no país não se
deu apenas em números absolutos. Há um enorme salto na proporção sacerdotes por
habitante.
Enquanto em 1980 – início da ofensiva
conservadora – havia 8.347 fiéis para cada sacerdote, este número passou para
5.570 em 2010!
Portanto,
enquanto a Igreja no Brasil virou as
costas aos pobres, ordenou mais padres e responsabilizou a Teologia da
Libertação pela perda de fiéis, o que se assistiu foi uma sangria sem
precedentes na história. Até agora não houve qualquer movimento explícito
de reflexão sobre esta questão crucial por parte da hierarquia católica no
Brasil. O que tem acontecido, em parte por conta do fiasco, em parte pela
liderança do Papa Francisco, é um estremecimento da aliança entre os moderados,
que comandam a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os grupos
conservadores e carismáticos. Há sinais, ainda tímidos, de uma reconstrução da
aliança entre os moderados e os progressistas, herdeiros da Teologia da
Libertação.
____________________
[1] Neri,
Marcelo. Coordenador. Novo Mapa das
Religiões. Rio de Janeiro, FGV, CPS, 2001. Link: http://www.cps.fgv.br/cps/bd/ rel3/REN_texto_FGV_CPS_Neri. pdf
[2]
Andrade, Paulo Fernando Carneiro de. O
Censo de 2010 e as religiões no Brasil: reflexões teológicas em uma perspectiva
católica, in O Censo e as Religiões no Brasil. Bingemer, Maria Clara
Luccchetti e Andrade, Paulo Fernando Carneiro de, orgs. Rio de Janeiro, 2014.
Editora PUC-Rio e Editora Reflexão. P. 118.
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