domingo, 11 de junho de 2017

Foucault, você e Temer

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Jornal GGN, 11/06/17



Foucault, você e Temer


Por Fernando Horta













Na década de sessenta e setenta, Michel Foucault revolucionou diversas áreas das ciências sociais. Existem, inúmeras noções e conceitos criados pelo pensador francês que poderiam ser citados aqui, me interessa a noção de poder.

Até Foucault, a ideia de Poder parecia um atributo concreto, mensurável. Diversas teorias foram formuladas para medir o “poder”, seja ligando com capital, ou com outros recursos materiais (como armas, tecnologia, população e etc.), o Poder era, portanto, algo quase palpável. Havia a possibilidade de “tomar” o poder, “manter” o poder, “aumentar” o poder, “perder” o poder ... quase como uma caixa, um anel, um pergaminho ...

Foulcault rompe radicalmente com esta ideia em favor de uma compreensão relacional. Poder é a relação que se forma entre pessoas, entre lugares e pessoas ou instituições e pessoas. Uma relação, portanto, precisa que o sujeito sobre o qual é projetado o poder o reconheça. Se não houver o reconhecimento, não há poder. É, portanto, um jogo que precisa, ao menos, de duas pessoas. Mesmo o poder projetado nos espaços (arquitetônicos, urbanos e etc.) tem origem numa relação entre dois sujeitos. Os espaços são apenas condutores temporais do poder. Quando você entra na Capela Sistina, por exemplo, o arquiteto Baccio Pintelli e os mestres, Michelangelo, Bernini, Botticceli e Rafael Sanzio exercem em você, diretamente do século XV, poder. O objetivo é sim fazer você se sentir pequeno, impotente e maravilhado com algo além das suas possibilidades.

Este poder simbólico, que se transmite pelo tempo, pelos espaços ou pelas instituições é a forma menos custosa de poder. Entre manter um grupo de homens a punir todos os que questionam ou se recusam a se submeter ao poder e criar formas religiosas, artísticas, culturais, legais, institucionais ou capitalistas de convencimento, é muito mais barato, no tempo, o poder simbólico. Por isto você entra num tribunal e ele é suntuoso, normalmente com mármore, espelhos, metais reluzentes para todo o lado. Com um teto alto, tapeçarias, pessoas impecavelmente trajadas, mesas imensas e postadas de forma a que você sempre fique mais baixo que o interlocutor que exerce poder. É a forma barata de exercer um poder invisível sobre maioria das pessoas.

No final da década de 90, houve uma moção na Câmara dos Lordes inglesa para que eles deixassem de usar as vestimentas do século XVIII (com as perucas brancas e as togas) nas sessões. Foi negada pela própria Câmara. Certamente não se deve pensar que os participantes daquela instituição acham confortáveis as teatrais perucas e adereços. A resposta está no poder simbólico. Ao deixarem de usar determinadas vestimentas, ostentar determinados símbolos ou deixar de fazer determinados rituais, o poder simbólico começa a se esvair. Se você entrar num elevador com um juiz e ver que ele tira cacaca do nariz, fala impropérios, fofoca e pode ter até um certo odor desconfortável, o símbolo “juiz” deixa de ser um distanciamento. Por isto existem os inconstitucionais elevadores privativos.

A Igreja Católica usa isto muito bem. Padres são deslocados de suas freguesias de crescimento e educação para irem exercer o sacerdócio em outros países até. Saber que um padre com 14 anos achava uma dona qualquer “gostosa”, quebrava vidraças ou roubava bombons não é algo que – para os detentores do poder – engrandeça o sacerdote. Melhor evitar. O exercício de poder é tanto mais limpo quanto menos questionamento. Existe aqui um pacto entre quem exerce poder e o sujeito sobre o qual se exerce. É preciso que tenham semelhantes códigos de linguagem, que haja algum tipo de compreensão entre eles e que aquele que sofre o exercício do poder assim o permita.

Se exerce poder sobre cães ao “domesticá-los”, mas não sobre leões. O animal selvagem não partilha dos códigos de linguagem e sobre ele só terá efeito o poder físico capital. Desde que Temer assumiu, após o golpe de 2016, ele esteve sempre amedrontado. Nos primeiros meses a quantidade de vezes que “voltou atrás” em suas decisões é imensa. Mas uma coisa Temer sempre fez e faz com competência: o uso dos símbolos. Desde a roupa e o cabelo impecáveis, o uso de um português com afrescos e arcaísmos, e mesmo a exploração de sua jovem mulher são símbolos que o distanciam “do resto”. O fato de ser maçônico (um grupo de homens que o que fazem verdadeiramente é cultuar símbolos sem muito sentido), de ter sido por anos parte da “política brasileira” também conferem um poder simbólico a uma criatura tão comezinha como o vice-presidente.

Retornando a Foucault, é preciso perguntar qual o preço pago pela manutenção desta crença? Ou seja, o que os indivíduos que não são convencidos pelo poder simbólico querem para não dizer que “o Rei está nu”? O congresso foi pago a preço de ouro. Não apenas de forma direta, mas tudo o que era crime com Dilma (troca de cargos por apoio, por exemplo) virou “qualidade política” em Temer. O judiciário cobrou sua cota quando Temer assentiu com os aumentos e os manteve na simbologia do intocável. A Lei de Abuso de Poder poderia tirar suas excelências do local de conforto e Temer tem usado ela como trunfo o tempo todo. Os meios de comunicação também foram comprados, não apenas com pagamentos à vista, mas com a promessa de manutenção do seu status com o engavetamento de qualquer controle econômico sobre suas empresas. A promessa de que “tudo continuará como está” é poderosa. Ao povão, a mídia ofereceu um Temer “honesto”, “brioso”, “corajoso” e que não era petista.

Diuturnamente Temer era apresentado simbolicamente como o “salvador da pátria”, e esta narrativa acachapante estava em vias de dar certo. Até que se colocou um dilema sobre o vice: para ser “honesto” e “não-petista” a narrativa exigia o combate aos males imputados ao PT. Era necessário combater a corrupção. E aí, o preço para a continuidade da farsa simbólica do “salvador da pátria” não eram mais apenas cargos, discursos e fotos de Marcela Temer como “bela, recatada e do lar”. A Odebrecht, seguiu-se Eike Batista e o capital percebeu que o pacto requereria a cabeça de bilionários. Os irmãos JBS não quiseram pagar e o espelho mágico quebrou-se.

A questão agora é saber quanto tempo levará para que aqueles que estão sentados no sofá parem de aceitar este acordo espúrio de poder que os faz acreditar que Temer tem alguma legitimidade. Quanto tempo para saírem do torpor criado pela dominação simbólica que “ser-lhes-foi” (sic) imputada. Depois de Foucault, todo poder pode ser descrito como um pacto entre quem o exerce e quem sofre. O pacto não é, normalmente, racional nem consciente. Mas ele existe. Cabe a quem reconhece esta relação ajudar a denunciar aos que não tem ferramental cognitivo suficiente para isto. E este é o trabalho agora. Mostrar a todos que o Rei está – e sempre esteve – nu.

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