CartaCapital (Ed. 956), 14 de junho de 2016
O
PCC aplaude a Lava Jato
Por
Najla Passos, de Pedro Juan Caballero
Com a
Polícia Federal praticamente à disposição da força-tarefa da Operação Lava
Jato, a principal facção criminosa brasileira, o Primeiro Comando da Capital,
encontrou o ambiente propício para prosperar, internacionalizar suas atividades
e iniciar, no Paraguai, uma guerra contra o seu principal rival, o Comando
Vermelho.
Nascido em
São Paulo, o PCC tem ganhado musculatura nos últimos 20 anos, baseado em
uma visão empresarial sólida e
premiado pela sucessão de erros das forças de segurança pública, que vão das
péssimas condições do sistema carcerário à falta de interlocução entre as
polícias. Só agora, e não por acaso, a facção conseguiu entrar de fato no radar
internacional.
Além do
Brasil, há provas da presença do PCC no Paraguai e na Bolívia e indícios de que
o grupo alcançou a Argentina e o Uruguai. Segundo a própria Polícia Federal, a
organização chegou à África Ocidental. Um crescimento vertiginoso,
respaldado pela falta de articulação brasileira para enfrentar o problema.
Em tese, quem deveria combater facções com essa
capilaridade deveria ser a PF, responsável por investigar crimes
transnacionais. Há dúvidas, porém, se as leis permitiriam aos federais atuar em
investigações de assaltos a carros-fortes ou assassinatos em pontos
localizados. Na dúvida, ninguém faz nada. Ou quase nada.
O caso da PF é emblemático. De acordo com o
presidente da Federação Nacional
dos Policiais Federais, Luís Antônio
Boudens, está tudo errado. A corporação tem cerca de 15 mil profissionais, mas menos de mil atuam
ao longo dos 17 mil quilômetros de fronteiras do Brasil com outros dez países
da América Latina. Para agravar a situação, normalmente são designados
agentes em início de carreira, menos experientes. Mais, explica Boudens: “Quando há uma ação prioritária, os agentes
são realocados e deixam a fronteira aberta. Na época dos grandes eventos
esportivos, a PF parou”.
Maior
produtor de maconha da América Latina, o Paraguai é uma área cobiçada pelas
facções. “O Brasil volta-se para
questões internas, o que criou uma oportunidade enorme para o PCC e para o CV
crescerem e atuarem nos países vizinhos. Assistimos neste momento a uma guerra de traficantes brasileiros em
território paraguaio”, afirma o jornalista paraguaio Cândido Figueredo, do jornal ABC
Color, especialista no tema.
O tráfico
movimenta, segundo Figueredo, ao
menos 300 milhões de dólares ao ano apenas no aglomerado urbano formado por
Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, e Pedro Juan Caballero, no Paraguai,
principal rota do tráfico para a América do Sul e a Europa, onde é possível
atravessar de um país a outro sem nenhum trâmite burocrático ou aduaneiro.
“Se o PCC e o CV não entrarem em acordo sobre como dividir esse dinheiro, será
um banho de sangue”, prevê.
A
circulação de drogas na fronteira é realmente livre. Reconhecido como o órgão mais eficiente no combate ao
narcotráfico, o Departamento de Operações de Fronteira, ligado à Secretaria
de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, apreendeu 7 mil toneladas de maconha entre janeiro e maio. O volume é 46% maior do que no ano
anterior.
No comando do órgão há um ano, o coronel Kleber Haddad Lane atribui o incremento ao trabalho da unidade.
“Decidimos centrar nossas operações na região
de Ponta Porã, que, por causa da localização geográfica, escoa também a cocaína
produzida na Bolívia, no Peru e na Colômbia.”
Lane admite, entretanto, que a estratégia adotada
está longe de deter o problema. “Somos reconhecidos pelo alto número de
apreensões por fazermos um trabalho contínuo. Sabemos que, se partirmos para o enfrentamento direto com o narcotráfico, vamos
perder.” No departamento, compara, falta até rádio para comunicação, enquanto
os traficantes dispõem de drones, fuzis e aviões.
Crimes com alto grau de sofisticação e violência,
com DNA atribuído ao PCC, são cada vez mais frequentes nas fronteiras com o
Paraguai e a Bolívia. Os roubos de carros-fortes e, mais recentemente, dos
depósitos das próprias empresas que transportam dinheiro, crescem
vertiginosamente. O mais emblemático episódio, considerado o marco zero da
guerra em curso, foi o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani, 56 anos, há
um ano. Considerado “o rei do tráfico”, Rafaat dominou a fronteira durante duas
décadas. Com prisão decretada no Brasil, circulava por Pedro Juan Caballero com
status de chefe de Estado. “Ele fechava a rua para entrar ou sair de casa,
sempre com dois carros de seguranças à frente e dois atrás”, conta Figueredo.
O traficante foi morto durante uma ação conjunta
do PCC com o CV, quando circulava em uma caminhonete blindada, que não suportou
o impacto da metralhadora de calibre .50, utilizada pelo Exército dos Estados
Unidos para derrubar aviões. Mais de cem
homens fortemente armados participaram da operação, cujos custos foram
estimados em cerca de 1 milhão de dólares. O “narcoexército” desapareceu no
ar. Até hoje ninguém foi preso, nem no Brasil nem no Paraguai. Depois da
operação conjunta e da eliminação do inimigo comum, o PCC e o C V entraram em
guerra pelo controle da área.
Sem efetivo necessário para garantir a segurança
dos seus próprios agentes, a delegacia
da PF em Ponta Porã terceirizou o serviço. Glauber
Araújo, delegado responsável pela área, não informa o tamanho do
atual efetivo, por “questões de segurança”. E não nega a contratação de segurança privada. “Sabemos que a
região de fronteira é mais delicada e tomamos mais precauções”, limita-se a
dizer. Boudens critica a terceirização. “Em Pernambuco há decisão judicial para
a PF retirar os terceirizados dos aeroportos, pois segurança pública é função do Estado.” A Polícia Federal não
respondeu às perguntas encaminhadas por CartaCapital.
Na Polícia Civil, a questionável solução serve de
apoio ao baixo efetivo. Com apenas três agentes para cuidar dos registros e
investigações de ocorrências, o titular
da 2a Delegacia de Polícia de Ponta Porã, Patrick
Linares da Costa, decidiu tomar uma atitude discutível quando soube que
o PCC pretendia invadir o local para resgatar um dos seus integrantes preso: amarrou o criminoso em um bujão de gás e colocou na porta.
“Até hoje não apareceram”, gaba-se.
A falta de recursos causa outros
constrangimentos. O principal aeroporto da região está localizado há cerca de
100 quilômetros do foco da guerra, no município de Dourados. Mantida pela
prefeitura, a pista recebe dois voos comerciais nos dias de semana e um aos
sábados e domingos. Conforme um servidor municipal que pediu o anonimato, o aeroporto não tem raio X para inspecionar
bagagens. E o controle com cães farejadores, função da PF, foi interrompido
há meses.
De todas as soluções inusuais utilizadas pelas
forças de segurança da fronteira para sobreviver à guerra do tráfico, a mais
polêmica foi adotada pela Polícia Militar paranaense, em parceria com a Polícia
Nacional do Paraguai. Após a morte de Rafaat, quando o aumento dos roubos
passou a assustar a população e os enfrentamentos com os narcotraficantes
começaram a atemorizar os policiais, firmou-se o seguinte pacto bilateral.
“Pelo
nosso acordo, qualquer uma das polícias pode atuar no país vizinho, em caráter
excepcional, desde que em situação de diligência. Isso aumenta a segurança
da população, pois os criminosos sabem que não podem mais atravessar uma rua e
sair impunes como ocorria antes”, acredita o coronel Waldomiro Centurião, comandante do
Batalhão da PM em Ponta Porã. “Nossa
parceria prevê também que, em caso de ataque do narcotráfico, possamos acessar
os dois países para uma ação mútua”, acrescenta o comissário Manuel Irrazabal,
comandante do Grupo de Operações Táticas da PNP. “A população quer resultados.
Não importa quem prenda o criminoso. Com esse acordo, reduzimos a criminalidade
em 80%.”
Por causa da presença das facções brasileiras,
descreve o comissário, policiais passaram a comprar armas e munições com o
próprio salário para se defender. O major Ulisse Canete encaixa-se nesse perfil. Apesar de
carregar um fuzil de propriedade do governo paraguaio, achou por bem pagar 2
mil dólares por uma pistola de fabricação tcheca. “O Paraguai possui uma
política muito permissiva em relação à venda e ao porte de armas. Qualquer um
pode comprar com facilidade. Os criminosos, por consequência, estão muito mais
bem armados do que as polícias”, avalia Irrazabal.
O pacto
local não tem respaldo das relações diplomáticas dos dois países, também
inoperantes em relação ao tema. Centurião rebate, porém, as críticas de que a
atuação de policiais estrangeiros em outro país possa ferir a soberania
nacional. “O acordo respalda-se no
princípio da garantia da dignidade humana, que se sobrepõe ao da
territorialidade. O intuito não é atentar contra a soberania dos países, mas
protegeras populações.”
A parceria na fronteira anima quem vive e atua na
região, principalmente os agentes ameaçados pelo poder de fogo do tráfico. Em
maio, Irrazabal foi condecorado com a Medalha Tiradentes pelo comando da PM em
Campo Grande (MS). Tornou-se herói em uma terra sem lei.
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