Justificando, 15/04/17
Um comitê para gerir os negócios da burguesia
Por Márcio Sotelo Felippe*
A Odebrecht conseguiu livrar-se de 8 bilhões de impostos graças a algumas encomendas de Medidas Provisórias. Em meio a denúncias que atingem todo o sistema político, o detalhe escabroso é pinçado em sua crueza para chocar e atingir o partido que a mídia adora odiar. Mas nisto onde termina o “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht (e outros departamentos congêneres das grandes empresas) e onde começa o Estado?
Desde 1995, governo Fernando Henrique, dividendos de empresas estão isentos de Imposto de Renda. No entanto, o trabalhador às voltas neste momento com a sua declaração está pagando uma alíquota de 27,5% caso ganhe por mês a fabulosa quantia de 4.660 reais.
E ganhando essa fantástica quantia dependerá mais e mais de serviços públicos vitais – saúde e educação – que serão catastróficos daqui a pouco tempo porque os gastos públicos estão congelados por 20 anos; mas não para pagar os rentistas parasitários que abocanham 40% do orçamento da União.
Fundos privados de previdência esfregam as mãos na iminência de abocanhar uma parte de salários de 4.660 reais graças à destruição do sistema de previdência pública. O “déficit” da Previdência é um caso de pós-verdade. A seguridade social, que inclui a previdência, tem, por força da Constituição, receitas que não entram no cálculo do governo.
Há uma crise fiscal, mas desonerações, sonegação e juros nominais da dívida pública tomaram 8% do PIB em 2015.[1] Os jornais desta semana noticiam que o CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) isentou o Itaú do pagamento de 25 bilhões de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido devidos por ganho de capital no processo de fusão com o Unibanco.
O que é isto tudo se não um comitê para gerir os negócios da burguesia? O Estado do bem-estar social que parecia desfigurar ou atenuar o conceito de Marx desaparece. Construído em grande parte como resposta às lutas sociais, vai sendo aniquilado sob o influxo de uma tremenda ofensiva de um projeto e de uma visão ideológica a que se deu o nome de neoliberalismo. Essa visão ideológica inclui meritocracia, individualismo, egoísmo social e a crença no mercado como um fato da ordem natural das coisas, conceitos que, narcotizando as massas, responde pelo refluxo das lutas populares. No capitalismo do século XIX crianças de 8 anos faziam jornadas de 14 horas. No do século XXI idosos terão sua força de trabalho exaurida até a morte porque não poderão pagar previdência privada e não haverá uma pública.
Há um terremoto político quando se descobre que o comitê dos negócios da burguesia está funcionando sob propina. Mas não é a propina que explica a operação desse comitê. Ele funciona sempre, estruturalmente, no capitalismo, mesmo que políticos nunca ponham no bolso nada a não ser o próprio soldo.
A lista que abala o país não é, pois, uma questão que deva ser tratada no plano restrito da moralidade das pessoas ou de uma reforma política que resolva nossos problemas. A lista é a ponta do iceberg de algo que é estrutural. Agora estamos vendo a promiscuidade entre sistema político e as classes dominantes e aquele a serviço destas; o Estado como instrumento de acumulação do capital e de expropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores.
Hoje, findo o ciclo da social-democracia, já não temos o direito de duvidar da natureza do escorpião ou de suspeitar da retórica de Marx. Não se transforma a sociedade no interior de um aparelho – a política institucional – cuja natureza é exatamente impedir a transformação da sociedade. Isto retoma uma antiga questão da esquerda: o que estamos fazendo quando estamos no aparelho do Estado?
A experiência do PT termina com a tragédia pessoal de seus quadros. Preferiu o governo em vez do poder. Renunciou definitivamente, ao contrário do que nos permitia supor o discurso de seus primórdios, à organização das massas, à conquista do poder político de baixo para cima, nas ruas, nos sindicatos, nas organizações de base. Governou com políticas de compromisso com as classes dominantes e sequer formulou – porque precisava ser confiável nessa política de compromisso e conciliação – o que a social-democracia europeia conseguiu no pós-guerra: bens sociais, saúde, educação, habitação, etc. Em um cenário econômico internacional favorável, limitou-se a aumentar o poder de consumo dos miseráveis, capital político que se esgotou rapidamente. E os trabalhadores não foram ao enterro de sua última quimera. Ah, a “ingratidão”, essa pantera… enquanto isso a classe média zumbi tomou as ruas.
A esquerda que supõe possa haver uma luz no fim do túnel apenas apostando nas eleições de 2018 persiste no erro de ignorar a natureza do escorpião. Pode-se imaginar que o candidato mais à esquerda, se ganhar, reverterá sem mais a barbárie social do capitalismo brasileiro hoje? Irá com canetadas, projetos de leis ou emendas à Constituição restaurar a CLT, construir uma previdência social digna, investir em saúde, educação, recuperar o pré-sal para o patrimônio nacional? Com que força política?
Ao entregar-se de corpo inteiro à política institucional, renunciando ao poder que pode ser construído nas ruas e nas organizações populares, nada mais faz do que compor a engrenagem do sistema, mantê-la e reproduzi-la porque o poder não comporta vácuo. Ou é o deles ou é o nosso. Se não disputamos, é somente o deles. E não o disputamos elegendo a política institucional como o único instrumento de ação política. Nela, só há lugar hoje para o poder da elite predadora que não vê limites em sua sanha de acumulação e promove sem qualquer pudor a barbárie social.
Ou construímos um poder alternativo com a força social dos excluídos ou afundaremos cada vez mais no lodo da política institucional. Apostar apenas em eleições é jogar água no moinho da barbárie social que está, quase que literalmente, reduzindo a pó a existência dos brasileiros.
*Pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
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