Conversa Afiada, 19/04/17
Como tratar a delação de Emílio Odebrecht: ousando
mais democracia
Por Eugênio
José Guilherme de Aragão
Ich nahm
die Wahrheit mal aufs Korn
Und auch die Lügenfinten.
Die Lüge macht sich gut von vorn,
Die Wahrheit mehr von hinten.
(Certa feita mirei na verdade
e também nos dribles da mentira.
A mentira fica bem de frente;
a verdade, melhor de costas)
Und auch die Lügenfinten.
Die Lüge macht sich gut von vorn,
Die Wahrheit mehr von hinten.
(Certa feita mirei na verdade
e também nos dribles da mentira.
A mentira fica bem de frente;
a verdade, melhor de costas)
Wilhelm Busch
(1832-1908)
O
"depoimento" de Emílio Odebrecht é nauseabundo. Merece as
aspas, pois mais parece um monólogo em conversa de botequim. A narrativa vem recheada de suposições e visões pessoais,
particulares, miúdas. Confirma os estereótipos sobre a política nacional como
negócio imundo.
Inevitável
é a comparação com a ira ensaiada do discurso de Roberto Jefferson da tribuna da Câmara, que abriu o escândalo do
chamado "mensalão". A diferença está no estilo. Enquanto o burguesão
Odebrecht se dá ao luxo de olhar com desprezo arrogante para a inhaca em que
seu grupo se meteu, o canastrão Roberto Jefferson deblatera com oratória digna
advogado de num júri de arrabalde. Já a semelhança está na atitude e no
objetivo político. Ambos não estão "arrependidos", de suas
confissões. Querem criar uma comoção social para desviar a atenção da gravidade
dos seus malfeitos. Para tanto, fazem bom uso do poder midiático que os atores
parlamentares ou judiciais – igualmente "atores", no sentido próprio
do termo – lhes proporcionam no teatro farsesco.
É tudo farinha do mesmo saco.
Jefferson e Odebrecht são delinquentes que se gabam da sua "coragem". Querem passar de gatunos a heróis, às custas da estabilidade
política e econômica do país e com a preciosa ajuda da mídia comercial. Esta
perdoa a gatunagem ao gatuno delator do inimigo político. Festeja-o como se
mocinho fosse, permitindo-lhe posar e esbanjar deboche e cinismo na cara da
platéia idiotizada.
Ao mesmo
tempo, há uma diferença significativa entre o político e o empresário. Jefferson nada produz. Só subtrai. Já
Emílio Odebrecht foi e é o pilar de um dos maiores grupos empresariais do país.
Esse grupo tem que ser reconhecido como
verdadeiro patrimônio social, gerador de empregos, pagador de tributos, criador
de tecnologia e ponta-de-lança da indústria brasileira no mundo globalizado. Um
ator desse peso na economia nacional e internacional não escapa de ser também
um operador político. A simples magnitude dos recursos por ele movimentados
faz com que suas atividades se entrelacem inevitavelmente com interesses do
Estado, da Política.
Isso não
justifica a inhaca supostamente revelada, apenas a explica. De resto, à
diferença de Jefferson, as operações de Odebrecht não tinham viés partidário,
mas iam ao encontro das pretensões de todos os políticos, da esquerda à
direita. Praticamente ninguém escapou. Quando
a infração à norma vira regra, é preciso avaliar se não há algo de errado com
ela, porque nesse contexto a infração se sobrepõe à norma, ao aparentemente
correto, talvez não tão correto assim.
Para
começar, seja qual for a atitude do observador político, de dar ou não crédito
ao deboche cínico de Odebrecht, tal
atitude deverá ser uniforme diante dos malfeitos de gregos e troianos. Não dá
para considerar, de antemão, 100% verdadeiras as afirmações sobre uns e 100%
erradas as sobre outros, conforme a simpatia política. As circunstâncias e
personalidades envolvidas sugerem ser mais fácil achar que a turba em volta de Temer esteja enterrada até o pescoço na lama do
que acreditar no locupletamento pessoal de Lula.
Quem conhece a turba, sabe do que eles
são capazes. Quem armou um golpe contra a
democracia e dele se beneficiou tem menos credibilidade do que quem honrou a
soberania popular, fortaleceu no seu mandato os órgãos da persecução penal,
dinamizou a economia brasileira e praticou uma política externa "ativa e
altiva" e deu ao Brasil uma visibilidade internacional que ele nunca antes
tivera.
Mas isso
não faz a delação de Odebrecht parecer mais ou menos crível. Sua mácula está no
método da sua extração ou extorsão, já que seu
autor não parece minimamente arrependido para fazê-la de livre e espontânea
vontade. Emílio Odebrecht delatou por temer não só a violência processual
contra si e seu filho, mas também o desmoronamento do seu império empresarial.
Por isso, tomou uma decisão estratégica
que implica entrega tática de informações selecionadas e com endereço
conhecido. Isso nada tem a ver com a
verdade toda que se quer colocada a nu.
Para o
Ministério Público, esse defeito – estético apenas, não processual – parece
irrelevante. Tornou pública a delação, assumindo dolosamente o risco da
turbulência política que causaria. Mais importante e igualmente dolosa foi a
intenção de salvar a própria pele. Tamanha foi a escala de informações, que
estas não poderiam ficar em segredo por muito tempo. Pior ainda teria sido o
vazamento seletivo, a sepultar de vez a credibilidade da instituição. Importou agora fingir a isenção que o
Ministério Público não mostrara antes. Tal atitude revela mais desespero do que
um esforço de transparência.
Na operação "Lava Jato",
a violência processual e o desrespeito aos direitos fundamentais dos
investigados e dos acusados são rotina, a começar pela presunção de inocência, esfolada
com a exibição pública de presos e conduzidos. Escutas e outras provas
sensíveis tem sido escancaradas à curiosidade coletiva, para destruir
reputações perante a sociedade. Tudo foi
feito num timing para causar o máximo de impacto político. Juiz e
procuradores anunciaram sem qualquer pejo que o apoio da opinião pública era
fundamental para o sucesso de sua missão, como se estivessem à cata de uma
legitimidade que só o voto pode dar. Paralelamente lançaram anteprojeto corporativo de lei,
disfarçado de iniciativa popular, para alavancar seus poderes.
Questionados sobre os abusos cometidos, reagiram e reagem sempre com histeria e
histrionismo, acusando os críticos de querer inviabilizar seu "combate à
corrupção". Nesse clima de
conflagração, a delação, menos do que um prêmio, é uma proteção mínima contra a
continuidade do linchamento público. Quem a faz não tem convicção de nada, a
não ser da necessidade de se preservar.
Vê-se,
pois, uma
atuação sobretudo politiqueira do Ministério Público, parte de um projeto de
poder corporativo, com uso de instrumentos institucionais. Seu objetivo é o fortalecimento de uma
burocracia estatal em detrimento de atores políticos de todos os matizes
ideológicos. O resultado é um ataque vil à democracia, reduzida a patinho feio,
supostamente deformado pela "corrupção". Querer trocar a soberania popular expressa
no voto universal por práticas autoritárias de agentes concursados de uma elite
administrativa não é um bom negócio para o país.
É
importante que a sociedade tenha clareza sobre o que está acontecendo no
Brasil, para não se deixar enganar pela balbúrdia decorrente do trato midiático
de indícios processuais de pouco valor. Sempre é bom lembrar que no Estado de Direito é melhor absolver um
culpado pela imprestabilidade da prova do que condenar um inocente: In dubio pro reo.
O
verdadeiro desafio para a democracia brasileira, neste momento, não está no
noticiário da delação de Emilio Odebrecht, mas na forma como lidaremos com a
própria delação. Os inimigos da
democracia são os que, tendo se omitido diante do golpe, destroem de forma
irresponsável o país, vendendo moralismo barato em troca de reconhecimento
público.
Diante de
corruptos não cabe ser tolerante, mas depois de produzida a prova prestável e
rejeitada a prova imprestável, sem qualquer parti pris e sem qualquer
esforço de fortalecimento corporativo. É fundamental, também, distinguir entre
o que é genuíno desvio de recursos públicos e locupletamento ilícito do que é
admitido e tolerado na prática dos embates eleitorais. A criminalização da política não revigora o regime democrático, antes o
debilita. Se tais práticas são agora
percebidas como inaceitáveis, deverão ser mudadas daqui para frente, por meio
de ampla reforma política, que conte com a participação da sociedade e seja
feita por quem tenha condições políticas de fazê-la.
Não
esqueçamos, porém, que essa reforma é tão importante como a reforma do Estado, que restitua os poderes
em seu leito normal, impeça o uso de atribuições funcionais para o reforço de
pretensões corporativas e devolva a credibilidade e autoridade às instituições.
Só assim sairemos da crise em que nos encontramos, limpando a mancha do golpe e
– para citar o famoso lema de Willy Brandt na
campanha eleitoral de 1969, da qual ele saiu como chefe de governo da República
Federal da Alemanha – “ousando mais democracia”.
Se
quisermos combater
- o
obscurantismo e o analfabetismo político,
- a privatização e o desmonte do Estado brasileiro,
- a entrega das nossas riquezas a uma autoproclamada elite predatória e a interesses estrangeiros,
- a destruição do mercado interno e das nossas empresas,
- a corrupção,
- a reabilitação da escravidão,
- o ódio,
- a demonização dos que já ousaram mais democracia e interpretaram a democracia não em termos meramente formais, retóricos – na acepção neoliberal de liberdade, que é apenas a liberdade de poucos, dos mais fortes e mais espertos, e exclui os mais fracos –, mas ampliaram-na na direção da longínqua igualdade e da ainda mais longínqua fraternidade...
- a privatização e o desmonte do Estado brasileiro,
- a entrega das nossas riquezas a uma autoproclamada elite predatória e a interesses estrangeiros,
- a destruição do mercado interno e das nossas empresas,
- a corrupção,
- a reabilitação da escravidão,
- o ódio,
- a demonização dos que já ousaram mais democracia e interpretaram a democracia não em termos meramente formais, retóricos – na acepção neoliberal de liberdade, que é apenas a liberdade de poucos, dos mais fortes e mais espertos, e exclui os mais fracos –, mas ampliaram-na na direção da longínqua igualdade e da ainda mais longínqua fraternidade...
Se
quisermos, em resumo, impedir o
alastramento da guerra civil, que já está em curso e termina na barbárie, a palavra
de ordem será OUSAR MAIS DEMOCRACIA!
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