quarta-feira, 12 de abril de 2017

A epidemia de infalibilidade nos EUA e o retorno do politicamente incorreto





Folha.com, 20/03/17



A epidemia de infalibilidade nos Estados Unidos



Por Paul Krugman




Duas semanas depois de o presidente Donald Trump bizarramente afirmar que o governo Obama havia ordenado escutas contra sua campanha presidencial, o secretário de imprensa da Casa Branca deu a entender que o GCHQ, o serviço de escuta eletrônica do governo britânico, havia sido o responsável pela escuta imaginária. As autoridades britânicas ficaram indignadas. Pouco depois, a imprensa britânica reportou que o governo Trump havia se desculpado. 

Mas não. Em reunião com a chanceler [primeira-ministra] da Alemanha, mais um aliado que ele está alienando, Trump insistiu em que não havia motivo para se desculpar. "Tudo que fizemos foi citar uma mente jurídica muito talentosa" - um comentarista do canal Fox News (é claro). 

Alguém se surpreendeu? O atual governo opera sob a doutrina da infalibilidade de Trump. Nada que o presidente diz está errado, quer seja sua falsa afirmação de que venceu no voto popular, quer sua asserção de que o índice de homicídios no país, que vinha registrando baixa histórica, na verdade estava em alta recorde. Nenhum erro é admitido. E jamais há motivos para que o governo peça desculpas. 

Bem, a esta altura já não é novidade que o comandante em chefe das forças armadas mais poderosas do planeta é um sujeito que não merece confiança nem como manobrista, ou para dar comida a um gato. Obrigado, Comey. Mas a incapacidade patológica de Trump para aceitar responsabilidade é apenas a culminação de uma tendência. A política dos Estados Unidos — pelo menos a de um dos dois grandes partidos — está sofrendo de uma epidemia de infalibilidade, sob a qual pessoas poderosas jamais admitem cometer erros, de maneira alguma. 

Mais de uma década atrás, escrevi que o governo Bush estava sofrendo de um "mensch gap" [uma lacuna de hombridade]. ("Mensch" é uma palavra usada para descrever uma pessoa reta, que assume a responsabilidade por suas ações.) Naquele governo, ninguém parecia disposto a aceitar a responsabilidade por propostas políticas fracassadas, quer se tratasse da ocupação do Iraque ou da resposta ineficiente ao furacão Katrina. 

Mais tarde, depois da crise financeira, uma incapacidade semelhante de admitir erros foi exibida por muitos comentaristas econômicos. 

Um exemplo é a carta aberta enviada por por numerosos líderes conservadores ao então presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, em 2010, para alertá-lo de que suas políticas conduziriam a uma "depreciação da moeda e inflação". Isso não aconteceu. Mas quatro anos depois, quando a Bloomberg News procurou muitos dos signatários da carta, nenhum deles estava disposto a admitir seus erros. 

Aliás, a imprensa revelou que um desses signatários, Kevin Hassett — coautor de 'Dow 36.000', um livro de 1999 que previa alta permanente para as bolsas de valores norte-americanas — será apontado para a presidência do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca. Outro dos signatários, David Malpass — antigo economista chefe do banco Bear Stearns e responsável por afirmar que "a economia é robusta" logo antes da crise — foi apontado como subsecretário do Tesouro para assuntos internacionais. Eles com certeza se encaixarão muito bem. 

Que fique claro: todo mundo comete erros. Alguns desses erros se enquadram à categoria "não havia como saber". Mas também existe a tentação de desenvolver raciocínios motivados, de permitir que nossas emoções se sobreponham às nossas faculdades críticas — e quase todo mundo sucumbe a essa tentação de vez em quando (como aconteceu comigo na noite da eleição presidencial). 

Ninguém é perfeito, portanto. Mas o ponto é que é preciso tentar melhorar — o que significa admitir os erros e aprender com eles. Mas isso é algo que as pessoas que agora governam os Estados Unidos jamais fazem.

O que aconteceu conosco? Parte da questão certamente tem a ver com ideologia: quando você está investido em uma narrativa fundamentalmente falsa sobre o governo e a economia, o que acontece com praticamente todo o Partido Republicano hoje em dia, aceitar os fatos se torna um ato de deslealdade política. Em contraste, membros do governo Obama, a começar do presidente mesmo, sempre se mostraram muito mais dispostos a aceitar responsabilidades do que era o caso de seus predecessores na era Bush. 

Mas o que está acontecendo com Trump e com as pessoas que o cercam parece ter menos a ver com ideologia e mais com egos frágeis. Admitir que estavam errados sobre qualquer coisa, eles parecem imaginar, faria deles perdedores, e os levaria a perder estatura. 

Na verdade, claro, a incapacidade de realizar reflexão e autocrítica é a marca de uma alma pequena, mesquinha — mas eles não têm a grandeza necessária a perceber esse fato. 

Por que tantos norte-americanos votaram em Trump, cujas falhas de caráter deveriam ter ficado óbvias para todos muito antes da eleição?

Falhas catastróficas da mídia e prevaricação por parte do Serviço Federal de Investigações (FBI) são parte importante da resposta. Mas minha sensação é de que há algo acontecendo em nossa sociedade. Muitos norte-americanos já não parecem compreender que linguagem um verdadeiro líder deveria empregar, e acreditam que beligerância e bazófias equivalem a um verdadeiro pulso forte. 

Por quê? Será que a causa é a cultura da celebridade? Será que o desespero da classe trabalhadora está sendo canalizado em forma de um desejo por pessoas que proferem slogans simplórios? 

A verdade é que não sabemos. Mas podemos no mínimo esperar que acompanhar Trump em ação seja uma experiência de aprendizado — não para ele, porque o presidente jamais aprende, mas para o organismo político dos Estados Unidos. E talvez, quem sabe, um dia levemos um adulto responsável de volta à Casa Branca.


*Prêmio Nobel de Economia 2008

Tradução de Paulo Migliacci






Carta Maior, 12/04/17


Trump e o retorno do politicamente incorreto



Por Slavoj Zizelk*




Alguns meses atrás, o empresário e pré-candidato Republicano à presidência dos EUA Donald Trump foi carinhosamente comparado a um sujeito que defeca barulhentamente no canto de uma sala durante um respeitável coquetel formal. Mas será que os demais candidatos Republicanos à presidência dos EUA são substancialmente melhores?

Todos lembramos da infame cena do filme O fantasma da liberdade, dirigido por Luis Buñuel, em que as relações entre comer e excretar sao invertidas: as pessoas se sentam à volta da mesa em suas privadas conversando normalmente, e quando sentem fome, discretamente se dirigem ao mordomo – “Por favor, onde fica aquele lugar de…?” – e se escapolem para um quartinho nos fundos para comer.


Pois bem, não seriam os debates dos candidatos Republicanos – para prolongar a metáfora – muito semelhantes a essa reunião do filme de Buñuel? E o mesmo não valeria também para muitos dos principais políticos no mundo hoje? Erdogan não estava também defecando em público quando, num recente estouro de paranoia, taxou os críticos a sua política em relação Curdos como traidores e agentes estrangeiros? E Putin não estava também defecando em público quando (em um ato calculado de vulgaridade pública que visava elevar sua popularidade em casa) ameaçou um crítico de suas políticas para a Chechênia de castração química? E, por fim, não estava Sarkozy também defecando em público quando, lá em 2008, estourou com um fazendeiro que se recusou a apertar sua mão – “Casse-toi, alors pauvre con!” (uma tradução generosa seria algo como “Então sai fora, seu idiota!”, mas seu real significado é muito mais grosseiro)?

E a lista continua… Em um discurso no Congresso Sionista Mundial em Jerusalém, no dia 21 de outubro de 2015, o primeiro ministro de Israel Benjamin Netanyahu sugeriu que Hitler só queria expulsar os judeus da Alemanha, e não exterminá-los, para defender que, na verdade, teria sido Haj Amin al-Husseini, o mufti palestino de Jerusalem, que teria de alguma forma persuadido o Führer a realmente matá-los.

Netanyahu então narrou um suposto encontro entre as duas figuras, datado de novembro de 1941, em que al-Husseini teria dito que se Hitler expulsasse os judeus da Europa “eles viriam todos para aqui [para a Palestina]”. Segundo Netanyahu, o Führer alemão teria retrucado, “Então o que você sugere que eu faça com eles?”, ao que o mufti teria respondido, “Queime-os”. Os principais pesquisadores israelenses do Holocausto imediatamente problematizaram essas afirmações, assinalando que a conversa entre al-Husseini e Hitler não pode ser comprovada, e que o genocídio dos judeus europeus pelas unidades móveis da SS já estava sendo levada a cabo há um bom tempo, antes do suposto momento em que os dois teriam se reunido em pessoa.

Por isso, não devemos nos iludir quanto ao verdadeiro significado de afirmações como essas de Netanyahu: trata-se de um claro sinal da regressão de nossa esfera pública. Acusações e ideias que estavam até agora confinadas ao obscuro submundo da obscenidade racista e do lamaçal xenofóbico estão agora ganhando respaldo nos discursos oficiais.

O problema aqui está no que Hegel chamou de Sittlichkeit: a eticidade dos costumes, o espesso pano de fundo de regras (não ditas) da vida social, a densa e impenetrável substância ética que nos diz o que podemos ou não fazer. Essas regras estão desintegrando hoje: o que era simplesmente indizível em um debate público algumas décadas atrás pode agora ser proferido com absoluta impunidade.

Pode parecer que essa desintegração está sendo relativamente contraposta pelo crescimento do “politicamente correto”, que prescreve exatamente o que pode e não pode ser dito; no entanto, um olhar mais atento imediatamente revela como a regulação dita “politicamente correta” participa do mesmo processo de desintegração da substância ética. Para demostrar esse ponto, basta retomar o impasse do politicamente correto: a necessidade de regras “politicamente corretas” surge quando os valores não ditos de uma sociedade não são mais capazes de regular efetivamente as interações cotidianasno lugar de costumes consolidados seguidos de forma espontânea, ficamos com regras explícitas (“negro” se torna “afro-americano”, “favela” se torna “comunidade”, um ato de “tortura” passa a ser denominado oficialmente de “técnica aprimorada de interrogação”… de tal forma que “estupro” poderia muito bem passar a ser chamado de “técnica aprimorada de sedução”). O ponto fundamental é que a tortura – um ato de violência brutal praticada pelo Estado – passa a ser tornada publicamente aceitável a partir do momento em que a linguagem pública se verte ao politicamente correto para proteger as vítimas da violência simbólica. Os dois fenômenos são lados da mesma moeda.

Podemos identificar um fenômeno semelhante em outros domínios da vida pública. Quando se noticiou que, de julho a setembro de 2015, o “Jade Helm 15” – uma série de exercícios militares estadunidenses – ocorreria no sudoeste dos EUA, imediatamente começaram a pipocar alegações conspiratórias. Levantou-se a suspeita de que os exercícios integravam uma grande trama do governo federal para submeter o estado do Texas à lei marcial, num ato de violação direta da Constituição. Encontramos todos os suspeitos usuais participando dessa paranoia conspiratória – até o ator Chuck Norris se pronunciou! Mas o mais maluco de todos certamente é o que lemos no site All News Pipeline, que associou esses exercícios ao fechamento de uma série de megalojas da Wal-Mart no Texas: “Serão esses enormes galpões usados como ‘centros de distribuição alimentar’ e abrigar o QG das tropas chinesas invasoras, que desembarcariam aqui visando desarmar os americanos um a um, como prometeu Michelle Obama, antes de Obama deixar a Casa Branca?” Mas o que deixa o caso realmente sinistro é a reação ambígua da própria oficialidade política republicana texana: o Governador Greg Abbott mobilizou a Guarda do Estado para monitorar o exercício e Ted Cruz exigiu detalhes ao Pentágono.

Donald Trump é a expressão mais pura dessa tendência de aviltamento de nossa vida pública. Veja: o que Trump faz para “roubar a cena” nos debates públicos e nas entrevistas? Ele oferece uma salada de vulgaridades “politicamente incorretas”: estocadas racistas (contra imigrantes mexicanos), alimenta suspeitas sobre o local de nascimento de Obama e sobre seu diploma universitário, profere ataques de extremo mal gosto contra as mulheres e não poupa ofensas a heróis de guerra como John McCain.

Essas tiradas grosseiras funcionam para indicar que Trump não está nem aí para os falsos costumes, que ele pode dizer “abertamente o que ele (e muitas pessoas comuns) pensam.” Ou seja, ele deixa claro que, apesar de ser um empresário bilionário, ele é também um sujeito ordinário e vulgar assim como nós, pessoas comuns.

No entanto, essas vulgaridades não devem nos iludir: o que quer que Trump possa ser, ele não é um perigoso elemento externo. Na verdade, seu programa é até relativamente moderado (ele reconhece muitas das conquistas democráticas, e sua posição em relação ao casamento gay é ambíguo). A função de suas provocações “refrescantes” e estouros vulgares é precisamente a de mascarar a incontornável ordinariedade de seu programa.

Seu verdadeiro segredo é de que se, por algum milagre, ele ganhar, nada vai mudar – em contraste com Bernie Sanders, o candidato democrata de esquerda cuja principal vantagem sobre a esquerda liberal, politicamente correta, é que ele compreende e respeita os problemas e os medos dos trabalhadores e fazendeiros comuns. O duelo eleitoral realmente interessante seria aquele entre Trump como candidato Republicano contra Sanders como candidato Democrata.

Mas por que falar de educação, polidez e modos em público hoje, num momento em que estaríamos diante de problemas muito mais urgentes e “reais”? Bem, porque os modos importam sim – em situações tensas, são uma questão de vida ou morte, uma linha tênue que separa a barbárie da civilização. Há um fato surpreendente sobre os mais recentes estouros de vulgaridade pública que merece ser ressaltado. Em 1960, vulgaridades ocasionais eram associadas à esquerda política: revolucionários estudantis muitas vezes usavam linguagem comum para enfatizar sua distância da política oficial, com seus jargões polidos. Hoje, a linguagem vulgar é praticamente apanágio exclusivo da extrema direita. De forma que a esquerda se vê na espantosa posição de defensora da decência e dos modos públicos.
 

É por isso que a direita Republicana “racional” e moderada está em pânico: depois do declínio das fortunas de Jeb Bush, ela está desesperadamente em busca de uma nova cara, brincando até com a ideia de apelar para a figura do Bloomberg.

Mas a verdadeira lição a ser registrada aqui é a seguinte: o real problema está na própria fragilidade da posição moderada “racional”. Porque o fato é que o discurso capitalista “racional” já não convence mais a maioria da população, que está em verdade muito mais propensa a endossar uma posição populista anti-elitista. E isso não deve ser descartado como um mero caso de primitivismo das classes baixas: os populistas corretamente detectam a irracionalidade dessa abordagem racional; sua ira contra as instituições anônimas que regulam suas vidas de forma intransparente é, nesse sentido, completamente justificada.



*Nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014) e o mais recente O absoluto frágil (2015).

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