terça-feira, 25 de abril de 2017

À greve, para evitar uma 'Guernica' brasileira





Carta Maior,  25/04/17



À greve, para evitar uma 'Guernica' brasileira


Por Saul Leblon 


Um registro curto mas claro incluído no especial do Valor Econômico sobre os 80 anos do bombardeio de Guernica, em 26 de abril de 1937, revela que o jornal O Globo manipulou o noticiário da crise espanhola à época, naquela que foi a primeira operação aérea massiva da história contra uma população civil.

A barbárie fascista dissimulada pelo jornalismo da família Marinho da qual não há registro de pedido desculpa até hoje imortalizou-se na arte de Picasso em um monumental grito de horror  de sete metros de comprimento por três de altura.


Em óleo sobre tela o pintor deu universalidade a uma das mais torturantes sensações do martírio humano.

Aquela que despenca sobre a existência de homens e mulheres indefesos abalroados pelas grandes massas de forças que dominam a história de uma época.

Expressas em artefatos bélicos ou artefatos econômicos essas colisões implodem as referências do cotidiano num vácuo de destruição, perda, perplexidade, prostração e descrença.

Durante dias sucessivos ao massacre de Guernica o Globo flanou nesse vácuo e o alimentou.

Com a sua especialidade.

As manchetes do jornal sobre a responsabilidade pela tragédia, que passaria à história como um preâmbulo do que ocorreria depois em Auschwitz, primeiro levantariam dúvidas sobre a autoria.

Depois tornar-se-iam categóricas.

Todo o esforço do martelete conservador destinava-se a convencer a opinião pública brasileira de que a responsabilidade pelas 50 toneladas de explosivos despejados contra a comunidade basca pela Legião Condor, da força aérea nazista  - aliada do golpismo espanhol, seria dos ‘vermelhos’.

Sim, os ‘vermelhos’, dizia o Globo em manchete.

Os ‘lulopetistas’ da época.

Assim denominados os socialistas, os anarquistas, os comunistas, os trotsquistas, os democratas, os cristãos progressistas...

‘Vermelhos’.

Culpados, segundo o jornal, pelo experimento nazista que testou em Guernica todo o arsenal destrutivo desenvolvido pela máquina de guerra aérea de Hitler, já de olho em alvos mais abrangentes.

‘Os vermelhos’, insistiria a ardilosa máquina de camuflagem de guerra.

Não a sublevação da extrema direita contra a República dos Trabalhadores, que vencera o pleito legislativo de 1936 - a exemplo do que já ocorrera em 1931, mas cuja repto não seria reconhecido pela elite do dinheiro e do poder.

Essa que partiu para o cerco e o golpe contra o mandato das urnas até desembocar no divisor de águas de Guernica.

Lembra algo?

Sim.

E o escárnio jornalístico, ainda que não apenas ele, também.

O conjunto enlaça a fúria da cavalgada fascistas do mundo de 1937 às horas decisivas de 2017 vividas no Brasil.

Infelizmente neste caso a seta do tempo não se quebrou.

O martelete da propaganda agigantou-se.

Hoje opera uma máquina de jornalismo de guerra de dimensões inimagináveis há 80 anos.

O alvo agora são 200 milhões de ‘bascos’ submetidos a uma lavagem diuturna para convencê-los de que a sede não deve ser saciada com água.

Prescreve-se ao contrário vinte anos de privação.

O austericídio e o politicídio - destinado este a desintegrar o Partido dos Trabalhadores, são ogivas siamesas do mesmo bombardeio.

Compõem uma fogueira destinada a inocular prostração, desmoralização e descrédito na democracia e na sua capacidade de comandar o desenvolvimento, de modo a reduzir a sociedade a uma ‘guernica’ de joelhos diante do diktat dos mercados.

Sobretudo, porém, trata-se de camuflar a responsabilidade conservadora pela enorme bola de fogo de desmonte e destruição que envolve toda a estrutura produtiva brasileira nesse momento.

O rescaldo de um ano sob o maçarico golpista compõe uma fornalha de recursos e esperança só mitigada por quantidades industriais de cinismo midiático.

O Brasil é hoje um vasto cemitério de obras paradas (R$ 55 bilhões), fábricas fechadas, ferrugem encastoada em projetos estratégicos e um estuário de desemprego fluvial feito de 13 milhões de sobras humanas.

Na versão espanhola, em 1937, foram quatro horas de ataques aéreos sucessivos, com intervalos aleatórios para a troca do repertório que o engenho nazista queria testar contra alvos vivos e adensados.

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Os seis mil habitantes da cidadela basca que, na versão do Globo, teriam se autoimolado.

Guernica estava no meio do caminho da sublevação do general de Exército Francisco Franco.

Devastá-la para atingir Bilbao tornara-se crucial para compensar o fracasso da tentativa anterior de tomar o poder central republicano em Madri.

A operação genocida irmanou duas conveniências.

Ambas impulsionadas pelo ódio à democracia social das frente amplas,  vitoriosas em duas das três eleições legislativas realizadas na Espanha depois que a crise obrigou a monarquia a ceder espaço à república e ao voto popular.

O republicanismo progressista espanhol assustava os donos de um mundo dividido entre a depressão de 29 e o desconhecido.

A elite, o alto clero e o Exército espanhol não aceitaram a continuidade da experiência republicana autorizada pelas urnas de 1936 por diferença mínima de votos contra a Falange direitista.

Pronunciamentos golpistas sucederam-se em diferentes pontos do país na forma de um jogral conhecido.

Conflitos irromperiam em seguida em escalada de violência, com anarquistas e socialistas já enfrentando o levante fascista no campo das armas.

Não, não é Caracas. É da experiência republicana espanhola que se fala aqui.

Guernica abrigara ‘vermelhos’ foragidos de um desses embates com tropas sublevadas.

A tocha de fogo na qual se transformou 80% do seu perímetro urbano pavimentaria o caminho da guerra civil que iria sangrar a Espanha durante três anos.

Era um preâmbulo do que viria depois em todo o mundo.

As vísceras do século XX estavam explicitadas ali opondo dois projetos de futuro.

O jornal O Globo se pôs a serviço de um deles, exercitando aquilo que sabe fazer melhor: manipular o discernimento da sociedade diante das escolhas decisivas da história.

A demonização dos ‘vermelhos’ é o esperanto dessa operação.

De jornalismo de guerra.

Em 1937, a mensagem escrita com ferro, fogo e sangue alertava para o embate cruento entre o anseio popular por democracia social e a resposta da interdição emitida pelos detentores da riqueza e da alma de um mundo que não cabia mais nos limites ditados por seus donos.

O primeiro ensaio de um governo progressista espanhol para ampliar esses limites havia durado pouco (1931 a 1933).

Mas o suficiente para assustar as elites pelo que falava ao corpo e ao imaginário das grandes massas populares.

Seu apelo reformista e anticlerical — a igreja espanhola era uma extensão do poder do dinheiro — descortinara possibilidades de uma outra sociedade mesmo sem efetivá-la.

Havia forte demanda por ela no ar.

Os acenos republicanos na Espanha traziam um pedaço da oferta.

Instituiu-se insista-se, na Espanha em 1931 o casamento civil, o divórcio e o voto feminino.

Os aluguéis foram congelados. Os salários reajustados.

A educação pública tornou-se o espaço laico destinado a propiciar às crianças um mesmo ponto de partida igual para todos.

 Os latifúndios tiveram sua extensão limitada.

As terras da igreja foram circunscritas.

Iniciou-se uma reforma agrária — cuja timidez, porém, desencadearia conflitos internos que enfraqueceriam a frente progressista e contribuiriam para sua derrota nas eleições seguintes, em 1933.

Mas não só.

A lufada de ar fresco atingiu em cheio o nó górdio que rege o poder na sociedade: as relações de trabalho.

Aquilo que Vargas faria no Brasil 12 anos depois, em 1943 e que o golpe agora se dedica a desmontar em 2017 a República espanhola anunciaria pioneiramente em 1931.

A República dos Trabalhadores, assim autodenominada, decretou uma espécie de CLT que estendia às famílias assalariadas a jornada de oito horas de trabalho, férias remuneradas, direito à aposentadoria, sindicalização, licença maternidade etc.

A profusão das mudanças congestionadas na sabotagem conservadora, ademais das divergências no governo, desgastariam o poder republicano.

A derrota eleitoral para um diretório de forças conservadoras (CEDA) em 1933 jogaria a população espanhola em um liquidificador de regressão política e social de virulência equivalente à vivida hoje no Brasil.

A restauração agiu comme il faut.

Como agem os batalhões com prazo de validade para operar o serviço sujo.

A mesma sofreguidão desavergonhada, a mesma sensação de um exército de ocupação a saquear direitos e patrimônio - como as escórias parlamentares em assembleia permanente contra o povo.

O efeito pedagógico do desmonte acendeu o discernimento popular.

Em 1936, o conservadorismo seria derrotado nas urnas por uma frente progressista maior que a de 1931.

Deu-se então a escalada golpista.

O que a elite imaginava ser uma blitzkrieg, dada a supremacia de meios e recursos — do judiciário ao exército, passando pelo dinheiro, a igreja e a imprensa — bateu de frente com a consciência popular agigantada pela curta mas intensa experiência republicana.

Franco não venceria, como venceu em 1939, não fosse o apoio decidido de Hitler e Mussolini ao golpe na forma de aviões, bombas e tropas.

Além do ‘experimento’ em Guernica, Berlim enviou 19 mil soldados para apoiar a sublevação, enquanto governos democratas da Inglaterra e França se abstiveram de uma solidariedade efetiva à legalidade.

A inferioridade republicana só não foi maior graças à mobilização das brigadas internacionais.

Elas trariam dezenas de milhares de voluntários de todo o mundo para a trincheira libertária e socialista, a maioria porém inexperiente a compor uma resistência  militarmente dispersa e politicamente fragmentada.

O conflito civil especialmente doloroso abriria os olhos do mundo para a encruzilhada da história em meio à desordem capitalista para a qual os mercados  só tinham — como hoje — um remédio a oferecer.

Esse que o golpe despeja agora no Brasil na forma de um bombardeio de artefatos de arrocho, desemprego, desmonte e alienação econômica, que ameaça desintegrar o futuro nacional em uma imensa ‘guernica’ de fogo.

A destruição do povoado basco explicitou o teor explosivo desse acerto de contas entre as possibilidades da democracia social e do planejamento público, de um lado, e o fascismo de outro.

Muitos dos que ainda teimavam em não enxergar a gravidade da escalada viram nas  labaredas de Guernica o potencial destrutivo que a desordem simbolizada na quebra de 1929, nos EUA, encerrava.

A incapacidade dos mercados para superar impasses geopolíticos e financeiros que se arrastavam desde a Primeira Guerra tornara-se uma ameaça à humanidade.

A desordem clamava por uma nova ordem.

As demandas por pão, terra, teto, trabalho, dignidade e poder popular ecoavam sua pertinência em um outro projeto de futuro acenado pela arrebatadora vitória socialista na revolução de 1917 na União Soviética.

As escolhas e suas consequências ganhavam transparência nas esquinas do mundo.

O poder de esclarecimento dos fatos se infiltrava no imaginário das nações.

À revelia do dinheiro e dos seus veículos de propaganda jornalística.

A democracia se tornava perigosa para as classes proprietárias.

Foi nesse divisor que a fábrica de manipulação do Globo reagiu à altura no Brasil.

Como Franco fez na Espanha.

Ambos atribuíram o crime à vítima: Guernica fora uma perversidade do sionismo comunista, acusava o generalíssimo.

A resposta definitiva de Picasso não se limitou à pintura.

Indagado por um oficial nazista em Paris se fora o autor de ‘Guernica’, fuzilou: ‘Não, foram vocês’.

A roda-gigante da manipulação, das interdições e sacrifícios atingira um ponto de saturação em que o efeito adicional de cada linha a mais de cinismo é o descrédito.

Estamos falando de 1937 na Espanha...

O que avultava era o mesmo anseio hoje órfão de respostas no Brasil.

Por novos espaços de futuro, pelo direito de escolher e experimentar novas formas de se viver — indissociáveis da renovação em modos sustentáveis de se produzir, por uma repactuação generosa capaz de resgatar a sociedade da areia movediça da polarização imobilizante, da qual não se escapa facilmente depois da imersão...

A guerra civil espanhola durou três anos; o poder franquista estendeu-se por quase quarenta anos.

Pegou carona na escalada nazista e sobreviveu a ela, como um tampão imprescindível à tarefa de asfixiar a respiração libertária que só agora com o Podemos volta a injetar ar fresco ao pulmão político espanhol.

Derrotar uma experiência social não esgotada por meio da repressão, da judicialização, da mentira, da guerra e das bombas não significa vencê-la, mas interditá-la.

A diferença ajuda a entender a longeva manutenção da salmoura repressiva na sociedade espanhola, da qual só se libertaria quase quatro décadas depois da guerra civil, a partir da morte de Franco, em 1975.

A estreiteza da opção fascista esclarece boa parte do longo eclipse armado.

Mas não esclarece tudo.

As divisões passionais no campo republicano entre socialistas, democratas, anarquistas, comunistas e trotsquistas  — que espelhavam divergências internacionais naquela bifurcação entre duas guerras, uma revolução socialista e uma crise sistêmica do capitalismo — dificultariam sobremaneira a construção das linhas de passagem imprescindíveis entre o presente de uma sociedade cindida e o futuro promissor acenado pelo projeto progressista.

Esse emparedamento do conflito empurrou a solução para o campo das armas, onde a direita tinha maior capacidade de arregimentação bélica, como mostrou a tragédia de Guernica.

Erguer pontes para trazer um pedaço da classe média e do PIB para fora do golpe é o desafio correlato que as forças progressistas enfrentam hoje no Brasil.

Não é um desafio a ser enfrentado no veludo da retórica.

Trata-se de uma capacitação de força e consentimento a ser sedimentada nas ruas.

Mas em torno de uma proposta de repactuação do país e do seu desenvolvimento.

A direita, o ódio elitista, o preconceito belicista contra as demandas populares jamais sentará à mesa de negociação se não for conduzida a isso pela mudança na correlação de forças e no imaginário da sociedade.

Seu projeto é a longa salmoura franquista expressa no Brasil na suspensão da Carta de 1988 por vinte anos.

Colocada diante desse esbulho, segundo o qual os desafios do desenvolvimento se tornam insolúveis na vigência da justiça social, a sociedade se reduz a um objeto inerte, um estorvo do mercado.

O regime autoritário se impõe por dedução.

Para desarmar essa bola de fogo o campo progressista não pode ceder no essencial.

A pedra angular da travessia consiste em saltar o deserto conservador com o impulso da ousadia e da criatividade que fizeram a bandeira republicana espanhola, de fato, ser vista como a porta para um novo futuro.

Um futuro no qual caiba um modo de vida urbano renovado, com arquitetura singular para a solução dos problemas habitacionais e de mobilidade, mas também de integração e segurança.

Um futuro no qual o repto de soberania no pré-sal configure uma ‘opção norueguesa’ de uso sagrado dos recursos num  pacto de futuro sustentável e justo para a infância brasileira de hoje e de amanhã.

Um futuro no qual salvar os rios urbanos e preservar os demais, por exemplo, seja uma aposta coletiva na regeneração do convívio humano com a natureza, impulsionando os requisitos intrínsecos a essa interação.

Um futuro no qual a  educação de qualidade para todos seja a nova catedral da cidadania.

Um futuro no qual a prática da democracia na solução das divergências — inevitáveis — se intensifique em sintonia com as oportunidades de comunicação e escuta forte inscritas na tecnologia digital.

Um futuro no qual o eixo principal de consenso seja fazer do Brasil uma referência mundial de inovação em políticas públicas, na cooperação para o desenvolvimento convergente de todos os povos.

É essa ocupação desassombrada da rua pela ousadia, e do imaginário pela possibilidade de um outro futuro, que poderá abortar a longa noite conservadora determinada a encapsular a nação em uma guernica de recessão e desencanto — com o país, com a política e com a vida.

Há uma pedra no meio do caminho.

A repactuação de um futuro amplo entre visões distintas do presente requer a largueza generosa de princípios e horizontes.

Esse sempre foi um apanágio dos libertários, dos socialistas, dos comunistas, dos cristãos progressistas, dos democratas e liberais sinceros.

Da república de todos, enfim.

Acolhedora e desassombrada, assim deve ser a ocupação das ruas e da pauta política para, de fato, alcançar também os corações e mentes fatigados de toda a gente brasileira.

Parar hoje em greve geral é o repto da guernica brasileira para mover a engrenagem virtuosa de uma verdadeira república de iguais.

Arriba.

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