Carta Maior, 20/04/17
A soberania econômica e o desmonte do Estado no Brasil
Por Gilberto Bercovici
A soberania econômica é relativa. Como o sistema
capitalista mundial é um sistema hierarquizado, cada país percebe a soberania
econômica a seu modo. Na potência hegemônica, por exemplo, o debate sobre
soberania econômica é quase inexistente. Já para os países periféricos, em que
se compreende o subdesenvolvimento como um fenômeno de dominação, como uma
realidade histórico-estrutural, simultânea, e não como uma etapa prévia, ao
desenvolvimento, a questão da soberania econômica é fundamental, pois diz
respeito à autonomia das decisões de política econômica e à percepção de suas
limitações e constrangimentos internos e externos. A recente crise financeira
internacional, desde setembro de 2008, vem demonstrando, inclusive, que a crise
econômica é sentida nacionalmente, portanto, as soluções buscadas, em boa
parte, são também soluções nacionais.
Segundo Celso Furtado, os fins do desenvolvimento devem ser fixados pela própria sociedade nacional, como faz o texto constitucional de 1988. No entanto, a vontade política para orientar e favorecer as transformações econômicas e sociais é indispensável para impulsionar e conduzir o processo de desenvolvimento endógeno. Um dos objetivos deste processo é a homogeneização social, com a garantia da apropriação do excedente econômico pela maior parte da população. O desenvolvimento endógeno exige também a internalização dos centros de decisão econômica, a dinamização e a integração do mercado interno, com grande ênfase para o desenvolvimento tecnológico.
A soberania econômica nacional, prevista formalmente no artigo 170, I da Constituição de 1988, pretende viabilizar a participação da sociedade brasileira, em condições de igualdade, no mercado internacional, como parte do objetivo maior de garantir o desenvolvimento nacional (artigo 3º, II do texto constitucional), buscando a superação do subdesenvolvimento. O mercado interno, por sua vez, foi integrado ao patrimônio nacional (artigo 219 da Constituição), como um corolário da soberania econômica nacional. O significado deste dispositivo é justamente a endogeneização do desenvolvimento tecnológico e a internalização dos centros de decisão econômicos, seguindo o programa de superação do subdesenvolvimento proposto por Celso Furtado e pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) e incorporados no texto constitucional de 1988.
Afinal, desde as concepções da CEPAL, entende-se o Estado, através do planejamento, como o principal promotor do desenvolvimento. Para desempenhar a função de condutor do desenvolvimento, o Estado deve ter autonomia frente aos grupos sociais, ampliar suas funções e readequar seus órgãos e estrutura. O papel estatal de coordenação dá a consciência da dimensão política da superação do subdesenvolvimento, dimensão esta explicitada pelos objetivos nacionais e prioridades sociais enfatizados pelo próprio Estado. As reformas estruturais são o aspecto essencial da política econômica dos países subdesenvolvidos, condição prévia e necessária da política de desenvolvimento. Coordenando as decisões pelo planejamento, o Estado deve atuar de forma muito ampla e intensa para modificar as estruturas socioeconômicas, bem como distribuir e descentralizar a renda, integrando, social e politicamente, a totalidade da população.
A soberania energética é um componente essencial da soberania econômica nacional, pois abrange um setor chave da economia do país. O Estado deve tomar decisões autônomas sobre a produção e destino dos seus recursos energéticos, planejando o seu desenvolvimento e evitando a dependência tecnológica e de fatores externos para a produção de energia. Deste modo, o controle estatal sobre as fontes de energia consiste em um eixo central de um projeto democrático em que a política macroeconômica esteja a serviço dos interesses nacionais, além de poder propiciar um planejamento energético de longo prazo.
O Brasil necessita de uma infraestrutura complexa, capaz de articular as várias regiões do país. A prestação dos serviços públicos de energia e comunicações precisa ser acompanhada de preços básicos, o mais uniformizados possível, e instalações interligadas, para que não se excluam regiões e setores inteiros e importantes da possibilidade de participar do mercado interno e do mercado internacional. Além das filiais das empresas multinacionais, o Brasil era dotado de empresas estatais globais pelo seu tamanho, capacidade técnica, financeira e organizacional para operar tanto no país como no exterior e dotadas de um sistema de planejamento estratégico, que eram responsáveis por grande parte da infraestrutura e do desenvolvimento tecnológico do país: a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobrás, a Eletrobrás e o Sistema Telebrás (em conjunto com a Embratel).
Ao invés de dotar estas empresas de maior capacidade operacional e reforçar o controle público e a transparência sobre seus recursos, o Governo Fernando Henrique Cardoso optou por desmontá-las, cortar seus investimentos e desestruturar suas finanças, a fim de justificar a privatização da maior parte delas. A privatização das empresas estatais significou, de acordo com Maria da Conceição Tavares, a desestruturação dos sistemas energético e de comunicações integrados, que eram fundamentais para a manutenção de um mercado interno de dimensões continentais, como o brasileiro, e uma inserção internacional competitiva, não subordinada. A fragmentação das empresas estatais de infraestrutura substituiu, na maior parte dos casos, o monopólio estatal pelo monopólio ou oligopólio privados, além de romper com o planejamento estratégico e integrado da rede de serviços básicos e com um sistema interligado de tarifas cruzadas.
No Brasil, por exemplo, a política brasileira de exploração dos recursos minerais e energéticos foi desestruturada nos anos 1990, com o processo de privatização, cuja principal polêmica se deu em torno da venda da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997. Com a decisão de privatizar a Companhia Vale do Rio Doce, o Governo Fernando Henrique Cardoso ignorou o papel que a empresa tinha no desenvolvimento regional do país. A Companhia Vale do Rio Doce tinha capacidade autônoma de atrair investimentos e parcerias, além de ser internacionalmente competitiva. A sua política não era exclusivamente voltada à mineração e exportação, mas também articulava espacialmente as várias áreas abrangidas por sua atuação, sendo, na expressão de Maria da Conceição Tavares, um "vetor de dinamização econômica e integração produtiva nacional". O argumento principal utilizado para justificar a privatização, o da necessidade de obtenção de recursos para diminuir a dívida interna do país, não possui veracidade alguma. O Estado brasileiro perdeu parte de sua capacidade autônoma de decisão sobre a política econômica, uma empresa essencial para o planejamento do desenvolvimento nacional e seu grande instrumento de atuação no setor mineral, além de divulgar as informações estratégicas sobre os recursos minerais do subsolo para os competidores estrangeiros da Companhia Vale do Rio Doce que se habilitaram para participar do leilão de privatização. Com a privatização, as empresas multinacionais ficaram sozinhas na pesquisa e exploração mineral no Brasil.
A privatização trouxe consigo a criação de órgãos reguladores “independentes”, que substituiriam a incapacidade estatal de regular eficientemente os vários setores econômicos. A garantia da concorrência e da defesa dos direitos dos consumidores (não da população em geral, bem entendido) seriam os grandes objetivos perseguidos, tanto na regulação das atividades econômicas propriamente ditas, como na regulação dos serviços públicos. Propõe-se como solução a substituição do Estado Democrático de Direito, à mercê das indesejáveis “influências políticas”, por uma estrutura tecnocrática e oligárquica, sem legitimidade popular ou qualquer outra forma mais incisiva de controle político e democrático de seus atos. Estes órgãos se legitimariam pela sua “neutralidade técnica”, o que consagraria sua independência em relação ao Estado, mas não ao mercado. O Estado parece, assim, ter renunciado à sua soberania em matéria econômica.
A adoção das políticas ortodoxas de ajuste fiscal e a implementação das medidas de redução do papel do Estado na economia e de atração de investimentos estrangeiros fez com que se tornasse necessário garantir determinadas medidas de política econômica mesmo contra as maiorias políticas, gerando um processo de reformas constitucionais em vários países, cujo objetivo foi "constitucionalizar a globalização econômica". Com a garantia dos investimentos constitucionalizada e a retórica sobre "segurança jurídica", "regras claras", "respeito aos contratos", "Estado de direito" (ou "rule of law") sendo utilizada contra qualquer atuação estatal que contrarie os interesses econômicos dominantes, instituiu-se um fenômeno que denominei "blindagem da constituição financeira", ou seja, a preponderância das regras vinculadas ao ajuste fiscal e à manutenção da política monetária ortodoxa que privilegia os interesses econômicos privados sobre a ordem constitucional econômica e as políticas distributivas e desenvolvimentistas.
Segundo Celso Furtado, os fins do desenvolvimento devem ser fixados pela própria sociedade nacional, como faz o texto constitucional de 1988. No entanto, a vontade política para orientar e favorecer as transformações econômicas e sociais é indispensável para impulsionar e conduzir o processo de desenvolvimento endógeno. Um dos objetivos deste processo é a homogeneização social, com a garantia da apropriação do excedente econômico pela maior parte da população. O desenvolvimento endógeno exige também a internalização dos centros de decisão econômica, a dinamização e a integração do mercado interno, com grande ênfase para o desenvolvimento tecnológico.
A soberania econômica nacional, prevista formalmente no artigo 170, I da Constituição de 1988, pretende viabilizar a participação da sociedade brasileira, em condições de igualdade, no mercado internacional, como parte do objetivo maior de garantir o desenvolvimento nacional (artigo 3º, II do texto constitucional), buscando a superação do subdesenvolvimento. O mercado interno, por sua vez, foi integrado ao patrimônio nacional (artigo 219 da Constituição), como um corolário da soberania econômica nacional. O significado deste dispositivo é justamente a endogeneização do desenvolvimento tecnológico e a internalização dos centros de decisão econômicos, seguindo o programa de superação do subdesenvolvimento proposto por Celso Furtado e pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) e incorporados no texto constitucional de 1988.
Afinal, desde as concepções da CEPAL, entende-se o Estado, através do planejamento, como o principal promotor do desenvolvimento. Para desempenhar a função de condutor do desenvolvimento, o Estado deve ter autonomia frente aos grupos sociais, ampliar suas funções e readequar seus órgãos e estrutura. O papel estatal de coordenação dá a consciência da dimensão política da superação do subdesenvolvimento, dimensão esta explicitada pelos objetivos nacionais e prioridades sociais enfatizados pelo próprio Estado. As reformas estruturais são o aspecto essencial da política econômica dos países subdesenvolvidos, condição prévia e necessária da política de desenvolvimento. Coordenando as decisões pelo planejamento, o Estado deve atuar de forma muito ampla e intensa para modificar as estruturas socioeconômicas, bem como distribuir e descentralizar a renda, integrando, social e politicamente, a totalidade da população.
A soberania energética é um componente essencial da soberania econômica nacional, pois abrange um setor chave da economia do país. O Estado deve tomar decisões autônomas sobre a produção e destino dos seus recursos energéticos, planejando o seu desenvolvimento e evitando a dependência tecnológica e de fatores externos para a produção de energia. Deste modo, o controle estatal sobre as fontes de energia consiste em um eixo central de um projeto democrático em que a política macroeconômica esteja a serviço dos interesses nacionais, além de poder propiciar um planejamento energético de longo prazo.
O Brasil necessita de uma infraestrutura complexa, capaz de articular as várias regiões do país. A prestação dos serviços públicos de energia e comunicações precisa ser acompanhada de preços básicos, o mais uniformizados possível, e instalações interligadas, para que não se excluam regiões e setores inteiros e importantes da possibilidade de participar do mercado interno e do mercado internacional. Além das filiais das empresas multinacionais, o Brasil era dotado de empresas estatais globais pelo seu tamanho, capacidade técnica, financeira e organizacional para operar tanto no país como no exterior e dotadas de um sistema de planejamento estratégico, que eram responsáveis por grande parte da infraestrutura e do desenvolvimento tecnológico do país: a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobrás, a Eletrobrás e o Sistema Telebrás (em conjunto com a Embratel).
Ao invés de dotar estas empresas de maior capacidade operacional e reforçar o controle público e a transparência sobre seus recursos, o Governo Fernando Henrique Cardoso optou por desmontá-las, cortar seus investimentos e desestruturar suas finanças, a fim de justificar a privatização da maior parte delas. A privatização das empresas estatais significou, de acordo com Maria da Conceição Tavares, a desestruturação dos sistemas energético e de comunicações integrados, que eram fundamentais para a manutenção de um mercado interno de dimensões continentais, como o brasileiro, e uma inserção internacional competitiva, não subordinada. A fragmentação das empresas estatais de infraestrutura substituiu, na maior parte dos casos, o monopólio estatal pelo monopólio ou oligopólio privados, além de romper com o planejamento estratégico e integrado da rede de serviços básicos e com um sistema interligado de tarifas cruzadas.
No Brasil, por exemplo, a política brasileira de exploração dos recursos minerais e energéticos foi desestruturada nos anos 1990, com o processo de privatização, cuja principal polêmica se deu em torno da venda da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997. Com a decisão de privatizar a Companhia Vale do Rio Doce, o Governo Fernando Henrique Cardoso ignorou o papel que a empresa tinha no desenvolvimento regional do país. A Companhia Vale do Rio Doce tinha capacidade autônoma de atrair investimentos e parcerias, além de ser internacionalmente competitiva. A sua política não era exclusivamente voltada à mineração e exportação, mas também articulava espacialmente as várias áreas abrangidas por sua atuação, sendo, na expressão de Maria da Conceição Tavares, um "vetor de dinamização econômica e integração produtiva nacional". O argumento principal utilizado para justificar a privatização, o da necessidade de obtenção de recursos para diminuir a dívida interna do país, não possui veracidade alguma. O Estado brasileiro perdeu parte de sua capacidade autônoma de decisão sobre a política econômica, uma empresa essencial para o planejamento do desenvolvimento nacional e seu grande instrumento de atuação no setor mineral, além de divulgar as informações estratégicas sobre os recursos minerais do subsolo para os competidores estrangeiros da Companhia Vale do Rio Doce que se habilitaram para participar do leilão de privatização. Com a privatização, as empresas multinacionais ficaram sozinhas na pesquisa e exploração mineral no Brasil.
A privatização trouxe consigo a criação de órgãos reguladores “independentes”, que substituiriam a incapacidade estatal de regular eficientemente os vários setores econômicos. A garantia da concorrência e da defesa dos direitos dos consumidores (não da população em geral, bem entendido) seriam os grandes objetivos perseguidos, tanto na regulação das atividades econômicas propriamente ditas, como na regulação dos serviços públicos. Propõe-se como solução a substituição do Estado Democrático de Direito, à mercê das indesejáveis “influências políticas”, por uma estrutura tecnocrática e oligárquica, sem legitimidade popular ou qualquer outra forma mais incisiva de controle político e democrático de seus atos. Estes órgãos se legitimariam pela sua “neutralidade técnica”, o que consagraria sua independência em relação ao Estado, mas não ao mercado. O Estado parece, assim, ter renunciado à sua soberania em matéria econômica.
A adoção das políticas ortodoxas de ajuste fiscal e a implementação das medidas de redução do papel do Estado na economia e de atração de investimentos estrangeiros fez com que se tornasse necessário garantir determinadas medidas de política econômica mesmo contra as maiorias políticas, gerando um processo de reformas constitucionais em vários países, cujo objetivo foi "constitucionalizar a globalização econômica". Com a garantia dos investimentos constitucionalizada e a retórica sobre "segurança jurídica", "regras claras", "respeito aos contratos", "Estado de direito" (ou "rule of law") sendo utilizada contra qualquer atuação estatal que contrarie os interesses econômicos dominantes, instituiu-se um fenômeno que denominei "blindagem da constituição financeira", ou seja, a preponderância das regras vinculadas ao ajuste fiscal e à manutenção da política monetária ortodoxa que privilegia os interesses econômicos privados sobre a ordem constitucional econômica e as políticas distributivas e desenvolvimentistas.
A Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que
instituiu o “Novo Regime Fiscal” e suspendeu a Constituição de 1988 por vinte
anos, se insere neste fenômeno, que ocorre em um contexto de estado de exceção
econômico permanente, em que se utilizam as medidas emergenciais a todo o
momento para salvar os mercados, caracterizando uma subordinação do Estado ao
mercado, com a exigência constante de adaptação do direito interno às
necessidades do capital financeiro, que busca reduzir a deliberação democrática
ao mínimo necessário, como se esta fosse uma mera formalidade.
A partir dos anos 1980 e 1990, com a crise da dívida externa, o neoliberalismo e a crise de financiamento do Estado, a política industrial autônoma ou soberana teve que ser abandonada para que os países latino-americanos fossem admitidos na nova ordem mundial da globalização neoliberal, com a adesão ao chamado “Consenso de Washington” (privatização, desregulação de mercados, liberalização do fluxo de bens e capitais). A América Latina reverteu, então, sua estratégia de desenvolvimento, regredindo da industrialização por substituição de importações para a exportação de produtos primários, aproveitando-se de uma elevação dos preços internacionais daqueles produtos agrícolas ou minerais. Com preços internacionais favoráveis, os países latino-americanos aceleraram seu processo de crescimento baseado na primarização ou reprimarização das exportações (apenas um exemplo: a participação de produtos primários na pauta de exportações do Brasil cresceu de 48,5% em 2003 para 60,9% em 2009).
Os regimes ditos pós-neoliberais na América Latina a partir dos anos 2000, no entanto, continuaram dirigindo sua política econômica para a extração de recursos naturais e consagraram a exportação de produtos primários (commodities) como estratégia de desenvolvimento nacional, instaurando uma política que hoje vem sendo denominada de “Novo Extrativismo” (“New Extractivism”). O “novo extrativismo” é uma política que combina ativismo estatal e uma estratégia de crescimento fundada na exploração de recursos naturais com o objetivo de ampliar a inclusão social. Para tanto, estes governos entendem que os recursos naturais seriam uma verdadeira benção, gerando rendas facilmente tributáveis que poderiam ser utilizadas para financiar as políticas sociais. A extração de recursos foi entendida como uma mera questão da capacidade do Estado regular as operações de mineração ou exploração petrolífera ou o agronegócio para conseguir acordos melhores com as agências financiadoras internacionais e tentar aplicar às empresas regras de controle em relação aos seus impactos sociais e ambientais. O pressuposto do “novo extrativismo” é um Estado mais intervencionista e um regime regulatório mais forte.
A demanda da China e do Leste Asiático por produtos agrícolas e florestais, combustíveis fósseis e outras fontes de energia e por minerais industriais estratégicos acarretou a ampliação do investimento estrangeiro nos setores agrícola e minerário e consagrou, com as políticas do “novo extrativismo” a reprimarização das economias latino-americanas, impedindo a recuperação das políticas industriais abandonadas nos anos 1990. O “novo extrativismo” não passa, assim, de uma nova forma de subordinação da estratégia de desenvolvimento dos países latino-americanos aos fluxos do comércio internacional.
Na sua ânsia de agradar os mercados, o governo golpista instaurado em 2016 buscou, além de uma política excessivamente rigorosa de garantia do pagamento do serviço da dívida pública em detrimento de todo e qualquer gasto público, implantar uma política de desnacionalização do que restou em poder do Estado extremamente rápida e agressiva. Desde a retirada da Petrobrás como operadora única do pré-sal (Lei nº 13.365, de 29 de novembro de 2016), os ativos da empresa estatal vêm sendo vendidos sem licitação, como determina a legislação brasileira (Plano Nacional de Desestatização e o artigo 29 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016). A Petrobrás não precisa vender ativos para reduzir seu nível de endividamento. Ao contrário, na medida em que vende ativos ela reduz sua capacidade de pagamento da dívida no médio prazo e desestrutura sua cadeia produtiva, em prejuízo à geração futura de caixa, além de assumir riscos empresariais desnecessários. O plano da Petrobrás tem viés de curtíssimo prazo e ignora a essência de uma empresa integrada de energia que usa a verticalização em cadeia para equilibrar suas receitas, compensando a inevitável variação do preço do petróleo, de seus derivados e da energia elétrica, característica essencial para minimizar os riscos empresariais. Na medida em que a Petrobrás seja fatiada, o agente privado tende a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao consumidor, o que restringe o crescimento do mercado interno.
Não bastasse a ausência de licitação, a venda de ativos da Petrobrás vem ocorrendo a preços bem abaixo dos preços de mercado, como é notório exemplo a venda do campo de Carcará para a empresa estatal norueguesa Statoil por cerca de US$ 2,5 bilhões, quando valeria cerca de dez vezes mais. Este tipo de “venda” pode ser equiparada ao crime de receptação. Um bem público foi subtraído do patrimônio público de forma ilegal, sem licitação, e vendido a preço vil, por um preço que é vinte por cento do valor de mercado. A empresa compradora obviamente sabe que está adquirindo um ativo valiosíssimo por vinte por cento do preço e sem concorrência pública. Ou seja, não há nenhum terceiro de boa-fé envolvido neste tipo de negócio. Neste tipo de situação, a obrigação do Estado brasileiro e dos órgãos de defesa do patrimônio público é anular a transação, recuperar o bem sem indenização e buscar a responsabilização de quem promoveu o negócio.
Estamos vivenciando, ainda, uma política de substituição do monopólio estatal por monopólios privados, o que é absolutamente vedado pela Constituição, em seus artigos 170 e 173, §4º. É exemplar o que ocorre na infraestrutura de gasodutos. Atividade tipicamente monopolista, as redes de gasoduto do Sudeste e do Nordeste, incorporam um enorme investimento histórico da Petrobrás, estão integradas à empresa pela própria natureza do serviço que prestam. Não obstante, a rede Sudeste, a mais lucrativa, foi vendida a um fundo canadense que atuará como intermediário privado monopolista. O Conselho de Administração da Petrobrás aprovou a venda de noventa por cento da sua maior e mais lucrativa malha de gás. A Nova Transportadora do Sudeste (NTS), subsidiária responsável pelo escoamento de setenta por cento do gás natural do país, será entregue a um grupo de investidores estrangeiros.
O problema central é o fato de que a soberania do Estado brasileiro, como soberania de um Estado periférico, é uma “soberania bloqueada”, ou seja, enfrenta severas restrições externas e internas que a impedem de se manifestar em toda sua plenitude. Deste modo, a constante pressão das forças políticas populares é fundamental para que o Estado possa atuar no sentido de levar a soberania popular às suas últimas consequências e superar a barreira do subdesenvolvimento.
A superação do subdesenvolvimento significa a construção de um Estado nacional verdadeiramente autônomo, o que implica na remoção de obstáculos internos, enfrentando as classes economicamente dominantes, e externos, rompendo com a situação de dependência. O desenvolvimento não é mero crescimento econômico, pois envolve transformações estruturais profundas. Se não ocorrem estas transformações, não se trata de desenvolvimento, mas de mera modernização, que apenas assimila o progresso técnico, mantendo as estruturas de dominação social e econômica e perpetuando o subdesenvolvimento. É necessário, portanto, uma política deliberada de desenvolvimento, na qual a tarefa do Estado, nas palavras de Caio Prado Jr., é "libertar as forças anticolonialistas já presentes no interior da atual estrutura econômica do país". A superação do subdesenvolvimento tem que ser um projeto político mobilizador.
A "Campanha do Petróleo" foi, nas palavras de Carlos Lessa, a "maior mobilização popular e social da história do Brasil em defesa de algum projeto de desenvolvimento". Não haveria nada similar antes, nem depois. A campanha abriu espaço para a manifestação política popular, cuja mobilização era uma novidade na história do país. Um projeto nacional de desenvolvimento precisa estar presente no imaginário coletivo da sociedade, sob pena de não sair do papel. Afinal, não é um simples plano de governo, mas uma construção coletiva que busca essencialmente os objetivos de uma sociedade melhor, mais igualitária e mais democrática no futuro. A existência de um marco simbólico que agregue a maioria dos cidadãos é imprescindível. A "Campanha do Petróleo" conseguiu realizar isto, ao defender a soberania nacional. O nacionalismo econômico é uma forma de chamamento do povo, para que este tenha consciência plena de suas limitações e possibilidades, um verdadeiro esforço de consciência coletiva. A aprovação do monopólio estatal do petróleo não teve como causa única a "Campanha do Petróleo", mas, certamente, a campanha contribuiu de modo decisivo para influenciar as lideranças políticas e foi crucial para o Presidente Getúlio Vargas se posicionar diante das pressões provenientes do governo norte-americano. A Petrobrás, como bem afirmou Barbosa Lima Sobrinho, é uma conquista do povo brasileiro, cujo irresistível movimento de opinião superou todos os obstáculos para fazer prevalecer a vontade nacional. O que a "Campanha do Petróleo" revelou foi uma dimensão política não esperada para um projeto nacional de desenvolvimento. Afinal, o que se estava decidindo não era apenas a forma de exploração de um recurso mineral estratégico, mas a própria soberania econômica nacional. A causa do petróleo foi identificada à afirmação da soberania nacional. Por isso o discurso da campanha é uma espécie de "discurso fundador". Há a tentativa deliberada de criar em torno do tema do petróleo a identidade com a soberania nacional e a perspectiva de fundação de um novo país, um país soberano e industrializado. A "Campanha do Petróleo", ao defender a soberania econômica do Brasil, propunha que se completasse a superação da economia colonial e se fizesse efetiva a Nação.
A renacionalização dos setores estratégicos para a superação do subdesenvolvimento, como petróleo, energia, água e recursos minerais é um desafio histórico que se faz necessário se quisermos aproveitar esta que, talvez, seja a última chance de termos condições efetivas e concretas para superar o subdesenvolvimento. A renacionalização é a reafirmação da soberania econômica, o que, em uma democracia verdadeira, é sinônimo de soberania popular. Soberania econômica e soberania popular não significam apenas que o poder emana do povo, mas também que este povo tem direito à terra, tem direito aos frutos do seu trabalho e tem direito ao excedente produzido pela exploração dos recursos naturais, que são públicos, portanto, de sua titularidade, bem como o direito de decidir por si mesmo sobre o seu presente e sobre o seu futuro.
A partir dos anos 1980 e 1990, com a crise da dívida externa, o neoliberalismo e a crise de financiamento do Estado, a política industrial autônoma ou soberana teve que ser abandonada para que os países latino-americanos fossem admitidos na nova ordem mundial da globalização neoliberal, com a adesão ao chamado “Consenso de Washington” (privatização, desregulação de mercados, liberalização do fluxo de bens e capitais). A América Latina reverteu, então, sua estratégia de desenvolvimento, regredindo da industrialização por substituição de importações para a exportação de produtos primários, aproveitando-se de uma elevação dos preços internacionais daqueles produtos agrícolas ou minerais. Com preços internacionais favoráveis, os países latino-americanos aceleraram seu processo de crescimento baseado na primarização ou reprimarização das exportações (apenas um exemplo: a participação de produtos primários na pauta de exportações do Brasil cresceu de 48,5% em 2003 para 60,9% em 2009).
Os regimes ditos pós-neoliberais na América Latina a partir dos anos 2000, no entanto, continuaram dirigindo sua política econômica para a extração de recursos naturais e consagraram a exportação de produtos primários (commodities) como estratégia de desenvolvimento nacional, instaurando uma política que hoje vem sendo denominada de “Novo Extrativismo” (“New Extractivism”). O “novo extrativismo” é uma política que combina ativismo estatal e uma estratégia de crescimento fundada na exploração de recursos naturais com o objetivo de ampliar a inclusão social. Para tanto, estes governos entendem que os recursos naturais seriam uma verdadeira benção, gerando rendas facilmente tributáveis que poderiam ser utilizadas para financiar as políticas sociais. A extração de recursos foi entendida como uma mera questão da capacidade do Estado regular as operações de mineração ou exploração petrolífera ou o agronegócio para conseguir acordos melhores com as agências financiadoras internacionais e tentar aplicar às empresas regras de controle em relação aos seus impactos sociais e ambientais. O pressuposto do “novo extrativismo” é um Estado mais intervencionista e um regime regulatório mais forte.
A demanda da China e do Leste Asiático por produtos agrícolas e florestais, combustíveis fósseis e outras fontes de energia e por minerais industriais estratégicos acarretou a ampliação do investimento estrangeiro nos setores agrícola e minerário e consagrou, com as políticas do “novo extrativismo” a reprimarização das economias latino-americanas, impedindo a recuperação das políticas industriais abandonadas nos anos 1990. O “novo extrativismo” não passa, assim, de uma nova forma de subordinação da estratégia de desenvolvimento dos países latino-americanos aos fluxos do comércio internacional.
Na sua ânsia de agradar os mercados, o governo golpista instaurado em 2016 buscou, além de uma política excessivamente rigorosa de garantia do pagamento do serviço da dívida pública em detrimento de todo e qualquer gasto público, implantar uma política de desnacionalização do que restou em poder do Estado extremamente rápida e agressiva. Desde a retirada da Petrobrás como operadora única do pré-sal (Lei nº 13.365, de 29 de novembro de 2016), os ativos da empresa estatal vêm sendo vendidos sem licitação, como determina a legislação brasileira (Plano Nacional de Desestatização e o artigo 29 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016). A Petrobrás não precisa vender ativos para reduzir seu nível de endividamento. Ao contrário, na medida em que vende ativos ela reduz sua capacidade de pagamento da dívida no médio prazo e desestrutura sua cadeia produtiva, em prejuízo à geração futura de caixa, além de assumir riscos empresariais desnecessários. O plano da Petrobrás tem viés de curtíssimo prazo e ignora a essência de uma empresa integrada de energia que usa a verticalização em cadeia para equilibrar suas receitas, compensando a inevitável variação do preço do petróleo, de seus derivados e da energia elétrica, característica essencial para minimizar os riscos empresariais. Na medida em que a Petrobrás seja fatiada, o agente privado tende a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao consumidor, o que restringe o crescimento do mercado interno.
Não bastasse a ausência de licitação, a venda de ativos da Petrobrás vem ocorrendo a preços bem abaixo dos preços de mercado, como é notório exemplo a venda do campo de Carcará para a empresa estatal norueguesa Statoil por cerca de US$ 2,5 bilhões, quando valeria cerca de dez vezes mais. Este tipo de “venda” pode ser equiparada ao crime de receptação. Um bem público foi subtraído do patrimônio público de forma ilegal, sem licitação, e vendido a preço vil, por um preço que é vinte por cento do valor de mercado. A empresa compradora obviamente sabe que está adquirindo um ativo valiosíssimo por vinte por cento do preço e sem concorrência pública. Ou seja, não há nenhum terceiro de boa-fé envolvido neste tipo de negócio. Neste tipo de situação, a obrigação do Estado brasileiro e dos órgãos de defesa do patrimônio público é anular a transação, recuperar o bem sem indenização e buscar a responsabilização de quem promoveu o negócio.
Estamos vivenciando, ainda, uma política de substituição do monopólio estatal por monopólios privados, o que é absolutamente vedado pela Constituição, em seus artigos 170 e 173, §4º. É exemplar o que ocorre na infraestrutura de gasodutos. Atividade tipicamente monopolista, as redes de gasoduto do Sudeste e do Nordeste, incorporam um enorme investimento histórico da Petrobrás, estão integradas à empresa pela própria natureza do serviço que prestam. Não obstante, a rede Sudeste, a mais lucrativa, foi vendida a um fundo canadense que atuará como intermediário privado monopolista. O Conselho de Administração da Petrobrás aprovou a venda de noventa por cento da sua maior e mais lucrativa malha de gás. A Nova Transportadora do Sudeste (NTS), subsidiária responsável pelo escoamento de setenta por cento do gás natural do país, será entregue a um grupo de investidores estrangeiros.
O problema central é o fato de que a soberania do Estado brasileiro, como soberania de um Estado periférico, é uma “soberania bloqueada”, ou seja, enfrenta severas restrições externas e internas que a impedem de se manifestar em toda sua plenitude. Deste modo, a constante pressão das forças políticas populares é fundamental para que o Estado possa atuar no sentido de levar a soberania popular às suas últimas consequências e superar a barreira do subdesenvolvimento.
A superação do subdesenvolvimento significa a construção de um Estado nacional verdadeiramente autônomo, o que implica na remoção de obstáculos internos, enfrentando as classes economicamente dominantes, e externos, rompendo com a situação de dependência. O desenvolvimento não é mero crescimento econômico, pois envolve transformações estruturais profundas. Se não ocorrem estas transformações, não se trata de desenvolvimento, mas de mera modernização, que apenas assimila o progresso técnico, mantendo as estruturas de dominação social e econômica e perpetuando o subdesenvolvimento. É necessário, portanto, uma política deliberada de desenvolvimento, na qual a tarefa do Estado, nas palavras de Caio Prado Jr., é "libertar as forças anticolonialistas já presentes no interior da atual estrutura econômica do país". A superação do subdesenvolvimento tem que ser um projeto político mobilizador.
A "Campanha do Petróleo" foi, nas palavras de Carlos Lessa, a "maior mobilização popular e social da história do Brasil em defesa de algum projeto de desenvolvimento". Não haveria nada similar antes, nem depois. A campanha abriu espaço para a manifestação política popular, cuja mobilização era uma novidade na história do país. Um projeto nacional de desenvolvimento precisa estar presente no imaginário coletivo da sociedade, sob pena de não sair do papel. Afinal, não é um simples plano de governo, mas uma construção coletiva que busca essencialmente os objetivos de uma sociedade melhor, mais igualitária e mais democrática no futuro. A existência de um marco simbólico que agregue a maioria dos cidadãos é imprescindível. A "Campanha do Petróleo" conseguiu realizar isto, ao defender a soberania nacional. O nacionalismo econômico é uma forma de chamamento do povo, para que este tenha consciência plena de suas limitações e possibilidades, um verdadeiro esforço de consciência coletiva. A aprovação do monopólio estatal do petróleo não teve como causa única a "Campanha do Petróleo", mas, certamente, a campanha contribuiu de modo decisivo para influenciar as lideranças políticas e foi crucial para o Presidente Getúlio Vargas se posicionar diante das pressões provenientes do governo norte-americano. A Petrobrás, como bem afirmou Barbosa Lima Sobrinho, é uma conquista do povo brasileiro, cujo irresistível movimento de opinião superou todos os obstáculos para fazer prevalecer a vontade nacional. O que a "Campanha do Petróleo" revelou foi uma dimensão política não esperada para um projeto nacional de desenvolvimento. Afinal, o que se estava decidindo não era apenas a forma de exploração de um recurso mineral estratégico, mas a própria soberania econômica nacional. A causa do petróleo foi identificada à afirmação da soberania nacional. Por isso o discurso da campanha é uma espécie de "discurso fundador". Há a tentativa deliberada de criar em torno do tema do petróleo a identidade com a soberania nacional e a perspectiva de fundação de um novo país, um país soberano e industrializado. A "Campanha do Petróleo", ao defender a soberania econômica do Brasil, propunha que se completasse a superação da economia colonial e se fizesse efetiva a Nação.
A renacionalização dos setores estratégicos para a superação do subdesenvolvimento, como petróleo, energia, água e recursos minerais é um desafio histórico que se faz necessário se quisermos aproveitar esta que, talvez, seja a última chance de termos condições efetivas e concretas para superar o subdesenvolvimento. A renacionalização é a reafirmação da soberania econômica, o que, em uma democracia verdadeira, é sinônimo de soberania popular. Soberania econômica e soberania popular não significam apenas que o poder emana do povo, mas também que este povo tem direito à terra, tem direito aos frutos do seu trabalho e tem direito ao excedente produzido pela exploração dos recursos naturais, que são públicos, portanto, de sua titularidade, bem como o direito de decidir por si mesmo sobre o seu presente e sobre o seu futuro.
*Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP
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