Carta Maior, 29/03/17
'O sistema da
dívida quebra o Estado e impede os direitos sociais'
Por Rubens Goyatá Campante
Há um discurso
uníssono, oficial, no país: sem a reforma da Previdência Pública, proposta pelo
governo Temer o país periga quebrar, ameaçando outros direitos sociais. A
Previdência Social, como está, seria insustentável, garantem a grande mídia e o
governo. A solução seria uma reforma que penaliza profundamente o povo e
os trabalhadores. A reforma da previdência, a reforma trabalhista
recém-aprovada, a diminuição dos gastos sociais com saúde e educação, a entrega
das riquezas nacionais, a volta do país a uma posição internacional
subordinada, tudo isso faz parte de um objetivo: que o Estado beneficie uns
poucos poderosos, pouco importando a imensa maioria da população.
Objetivo de um governo ilegítimo e, literalmente, reacionário - pois o espírito que o anima, que congrega todos que o apóiam, é a reação aos ganhos sociais que, mesmo insuficientes, caracterizaram a história recente brasileira. Chancelando esse programa, o discurso que garante: “o Estado está falido, gastou demais, de forma irresponsável e paternalista, com políticas públicas desarrazoadas, com direitos sociais excessivos......o jeito, agora, é fazer sacrifícios em prol da retomada do desenvolvimento, do emprego e da renda no futuro”. Sacrifícios sempre maiores para os mais pobres e futuro incerto, sempre postergado.
Mas há, realmente, desequilíbrio nas contas públicas? Se há, qual sua verdadeira origem? Maria Lucia Fattorelli responde que há, sim, desequilíbrio, mas que sua causa não é, de forma alguma, o investimento social, mas o gasto com uma dívida pública imensa, e deliberadamente mal explicada à população.
Auditora da Receita Federal por 30 anos, Maria Lucia Fattorelli tem estudado, há quase 20 anos, a dívida pública, como coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, uma organização sem fins lucrativos que tem se debruçado sobre um pesado jogo de interesses que traz ganhos nababescos a uma minúscula camada do setor financeiro e prejuízo ao povo e às contas públicas. Fattorelli tem o conhecimento de quem já estudou a fundo, munida da expertise de auditora, a dívida pública do Brasil e de países como o Equador e a Grécia. Na Grécia, ela fez parte, com outros especialistas internacionais, do Comitê pela Auditoria da Dívida Grega, trabalho semelhante ao que já havia feito, antes, no Equador, e que foi fundamental para o país reduzir em 70% o estoque de seu endividamento. No Brasil, na Grécia, no Equador, apesar das particularidades, a mesma situação básica: uma dívida pública que suga recursos do país e trava investimentos sociais. Uma dívida que é ilegítima e mesmo, em certos aspectos, ilegal. E numa época em que a corrupção está na ordem do dia, ela afirmou, certa vez: “a dívida pública pode ser vista como um mega-esquema de corrupção institucionalizado”.
A seguir, Maria Lucia Fattorelli explica e analisa essa questão crucial, mas (talvez por isso) tão pouco debatida, da dívida pública brasileira.
Objetivo de um governo ilegítimo e, literalmente, reacionário - pois o espírito que o anima, que congrega todos que o apóiam, é a reação aos ganhos sociais que, mesmo insuficientes, caracterizaram a história recente brasileira. Chancelando esse programa, o discurso que garante: “o Estado está falido, gastou demais, de forma irresponsável e paternalista, com políticas públicas desarrazoadas, com direitos sociais excessivos......o jeito, agora, é fazer sacrifícios em prol da retomada do desenvolvimento, do emprego e da renda no futuro”. Sacrifícios sempre maiores para os mais pobres e futuro incerto, sempre postergado.
Mas há, realmente, desequilíbrio nas contas públicas? Se há, qual sua verdadeira origem? Maria Lucia Fattorelli responde que há, sim, desequilíbrio, mas que sua causa não é, de forma alguma, o investimento social, mas o gasto com uma dívida pública imensa, e deliberadamente mal explicada à população.
Auditora da Receita Federal por 30 anos, Maria Lucia Fattorelli tem estudado, há quase 20 anos, a dívida pública, como coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, uma organização sem fins lucrativos que tem se debruçado sobre um pesado jogo de interesses que traz ganhos nababescos a uma minúscula camada do setor financeiro e prejuízo ao povo e às contas públicas. Fattorelli tem o conhecimento de quem já estudou a fundo, munida da expertise de auditora, a dívida pública do Brasil e de países como o Equador e a Grécia. Na Grécia, ela fez parte, com outros especialistas internacionais, do Comitê pela Auditoria da Dívida Grega, trabalho semelhante ao que já havia feito, antes, no Equador, e que foi fundamental para o país reduzir em 70% o estoque de seu endividamento. No Brasil, na Grécia, no Equador, apesar das particularidades, a mesma situação básica: uma dívida pública que suga recursos do país e trava investimentos sociais. Uma dívida que é ilegítima e mesmo, em certos aspectos, ilegal. E numa época em que a corrupção está na ordem do dia, ela afirmou, certa vez: “a dívida pública pode ser vista como um mega-esquema de corrupção institucionalizado”.
A seguir, Maria Lucia Fattorelli explica e analisa essa questão crucial, mas (talvez por isso) tão pouco debatida, da dívida pública brasileira.
PERGUNTA: Você poderia começar explicando o que é a dívida pública, como ela se formou e como ela se desdobra em dívida externa e dívida interna, e como foi o trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida no levantamento deste problema?
Teoricamente, a dívida pública abrangeria empréstimos
contraídos pelo Estado junto a instituições financeiras públicas ou
privadas, no mercado financeiro interno ou externo, bem como junto a
empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas ou outros
governos. Pode ser interna ou dívida externa, de acordo com a localização
dos seus credores e com a moeda envolvida nas operações.
A origem oficial, portanto, da dívida pública seriam recursos, empréstimos, recebidos pelo Estado brasileiro. Afinal, dívida, de forma geral, é a contrapartida pelo recebimento de algum tipo de recurso, e com a dívida pública não deveria ser diferente. Contudo, na prática, a Auditoria Cidadã da Dívida tem detectado a geração de dívida pública por meio de mecanismos meramente financeiros que não significam o ingresso de recurso algum.
O ciclo atual do endividamento brasileiro teve início
na década de 1970, na modalidade de dívida externa, e, a partir do Plano Real,
ocorreu a explosão da dívida interna.
O forte crescimento da dívida externa brasileira, a partir de 1971, decorreu do fim da paridade dólar-ouro nos Estados Unidos, por iniciativa do Banco Central norte-americano (FED), que é controlado por grandes bancos privados. Esse fato possibilitou a impressão de grandes volumes de dólares que passaram a ser ofertados pelos bancos privados internacionais a diversos países, inclusive o Brasil, a taxas de juros aparentemente baixas, porém variáveis. Os bancos privados que controlavam o FED eram em grande parte os mesmos credores da dívida externa brasileira e de outros países que caíram na sedução da oferta de créditos baratos vinculados a taxas flutuantes.
No final da década de 1970, o FED passou a elevar as taxas de juros, que alcançaram 20,5% ao ano no início da década de 1980, provocando a chamada “crise da dívida” de 1982, utilizada como justificativa para a interferência do FMI em assuntos internos do país. Assim, desde 1983, quando assinamos a primeira Carta de Intenções com o FMI, este organismo tem sido um dos grandes responsáveis pelo crescimento da dívida pública brasileira e pela submissão ao modelo econômico que emperra o nosso país e impede o nosso desenvolvimento socioeconômico.
Vários fatos graves marcaram as sucessivas negociações
da dívida externa. Cabe ressaltar os seguintes aspectos, documentados durante a
CPI da Dívida Pública, concluída em 2010, na Câmara dos Deputados:
1) Os contratos disponibilizados à CPI comprovaram
apenas uma parte que não chega a 20% do estoque da dívida externa com bancos
privados internacionais na década de 1970;
2) A partir de 1983, as dívidas do setor privado
(nacional e internacional instalado no país) foram transferidas ao Banco
Central do Brasil, mediante contratos firmados em Nova York e regidos pelas
leis de NY, em completa afronta à soberania;
3) Em 1992, há forte suspeita de prescrição da dívida
externa com bancos privados internacionais, que correspondia a quase 90% de
toda a dívida externa brasileira;
4) Em 1994, essa dívida suspeita de prescrição foi
trocada por títulos, no chamado Plano Brady, em Luxemburgo, conhecido paraíso
fiscal;
5) A partir daí, esses
títulos passaram a ser trocados por dívida interna (a juros que chegavam a 49%
ao ano!) ou utilizados como moeda para comprar empresas privatizadas a partir
de 1996.
A explosão da dívida interna se deu a partir do Plano
Real e ela vem crescendo aceleradamente, principalmente devido à política
monetária exercida pelo Banco Central: elevadíssimas taxas de juros (que não
servem para controlar o tipo de inflação que existe no Brasil); operações de
enxugamento de moeda com farta remuneração aos bancos por isso; a contabilização
de juros como se fosse amortização, entre outros que geram centenas de bilhões
de reais de “dívida pública”, sem contrapartida alguma!
Fica claro, portanto, que a dívida pública,
historicamente, não tem funcionado como instrumento de financiamento do Estado,
mas como uma engrenagem que promove contínua transferência de recursos públicos
para o setor financeiro privado nacional e internacional. O privilégio do gasto
com a dívida é revelado na execução orçamentária federal. No ano passado, quase
44 % do orçamento geral da União executado destinou-se ao pagamento de juros e
amortizações da dívida.
Além de absorver quase a metade do orçamento federal e
boa parte dos orçamentos estaduais e municipais, a chamada dívida pública tem
sido a justificativa para contínuas contrarreformas, como a da Previdência;
privatizações, além de outras medidas de ajuste fiscal, como o aumento da
desvinculação das receitas da União (DRU) e dos entes federados (DREM) para
30%, e a Emenda Constitucional 95 que estabeleceu teto somente para as despesas
primárias – por 20 anos! – para que sobrem mais recursos ainda para as despesas
não primárias, que são justamente as despesas financeiras com a dívida.
Por tudo isso, a Auditoria Cidadã da Dívida insiste na
reivindicação de uma completa auditoria dessa dívida, com participação social,
pois sequer sabemos para quem devemos, já que o nome dos detentores dos títulos
da dívida pública brasileira é, por incrível que pareça, informação sigilosa!!!
É preciso levar essas informações a toda a sociedade
que está pagando essa pesada conta. Por isso é importante incentivar a
participação de todos na Consulta Nacional sobre Reformas e Auditoria da Dívida
(www.consultanacional2017.com. br) .
PERGUNTA: O Brasil passa, atualmente, por um período de reformas do Estado, sob a justificativa de que este enfrenta uma crise financeira profunda. Não só o atual governo federal tem proposto cortes profundos em investimentos e direitos sociais (e a reforma da Previdência está na pauta, punindo os trabalhadores), como os estados encontram-se, quase todos, em situação desesperadora. O que a questão da dívida pública tem a ver com isso?
PERGUNTA: O Brasil passa, atualmente, por um período de reformas do Estado, sob a justificativa de que este enfrenta uma crise financeira profunda. Não só o atual governo federal tem proposto cortes profundos em investimentos e direitos sociais (e a reforma da Previdência está na pauta, punindo os trabalhadores), como os estados encontram-se, quase todos, em situação desesperadora. O que a questão da dívida pública tem a ver com isso?
A crise atual é uma crise totalmente desnecessária,
fabricada principalmente pela política monetária suicida praticada pelo Banco
Central, que, além de criar cenário de escassez de recursos, o que impede a
realização de investimentos geradores de emprego e renda, gera despesa
elevadíssima que sobrecarrega o orçamento público e cria mais dívida pública
ainda.
Sob o argumento de “controlar a inflação”, o Banco
Central do Brasil tem aplicado uma política monetária fundada em dois pilares:
(1) adoção de juros elevados e (2) redução da base monetária, ou seja, do
volume de moeda em circulação. Na prática, tais instrumentos têm se mostrado um
completo fracasso.
Além de não controlar a inflação, os juros elevados
têm afetado negativamente não só a economia pública e provocando o
crescimento exponencial da dívida pública, que exige crescentes cortes em
investimentos essenciais, mas também tem afetado negativamente a
indústria, o comércio e a geração de empregos.
Por sua vez, a redução da base monetária utiliza
mecanismos que enxugam mais de um trilhão de reais dos bancos, instituindo
cenário de profunda escassez de recursos, o que acirra a elevação das taxas de
juros de mercado e empurra o País para essa profunda crise socioeconômica.
Adicionalmente, o Banco Central remunera os bancos por esse volume brutal de recursos, onerando pesadamente o orçamento federal.
Segundo o famoso economista francês Thomas Piketty, seria um suicídio deixar de utilizar, em momentos de crise, o instrumento de emissão de moeda e a prática de juros baixos. No Brasil, o Banco Central tem feito o contrário e, adicionalmente, ainda alimenta o mercado com ração muito cara: operações de swap cambial que têm gerado centenas de bilhões de reais de prejuízos que são pagos à custa de emissão de mais títulos da dívida pública!
O rombo das contas públicas no Brasil decorre desses
gastos financeiros. E dizem que são os direitos sociais que prejudicam o
equilíbrio fiscal do Estado, mas, na verdade, é o sistema da dívida pública que
quebra o Estado e impede os direitos sociais.
Então, a reforma da Previdência decorre dessa ganância
insaciável do mercado financeiro, de abocanhar a fatia de recursos que ainda é
destinada à Previdência, que atinge mais de 60 milhões de pessoas no Brasil e é
o maior programa de distribuição de renda, para destiná-la ao pagamento de juros
da chamada dívida pública.
PERGUNTA: Além do fato de aumentar enormemente o mercado de Previdência
Privada......
Sim, certamente, a cada vez que o governo vem a
público, com o falacioso discurso de “déficit”, ele presta um serviço ao
mercado financeiro, pois muitas pessoas acabam sendo empurradas para adquirir
planos privados de previdência, gerando um grande volume de negócios para o
setor financeiro.
PERGUNTA: O sistema financeiro foi desenvolvido, originalmente, para ser um
meio, e não um fim, isto é, sua função seria a de apoiar, de capitalizar, a
economia real, da produção, do comércio. Mas parece que, de uns tempos para cá,
a especulação financeira, os ganhos nababescos auferidos com um “dinheiro” que
não tem lastro palpável, tornaram-se hegemônicos, e a economia real passou a
ficar a reboque. Isso é um elemento fundamental de uma crise mundial que
não é só econômica, mas social, com o aumento da desigualdade e da exclusão, e
também política, com o recrudescimento da extrema direita, do racismo, da
xenofobia, da violência, etc. Você concordaria com essa avaliação a respeito da
hegemonia do sistema financeiro especulativo e de suas consequências? Se sim,
qual o papel que a dívida pública desempenharia nessa situação?
O atual modelo capitalista entrou em uma fase de financeirização cada dia mais aprofundada. O setor financeiro domina o poder político na maioria dos países, bancando campanhas eleitorais; e ele domina não só o próprio mercado financeiro, como detém a propriedade de empresas estratégicas, adquiridas nos questionáveis processos de privatizações mundo afora.
Um importante estudo acadêmico realizado em 2011 - A
rede de controle corporativo global, revelou a
impressionante concentração de poder e propriedade, de parte relevante da
economia mundial, nas mãos de reduzido grupo de instituições bancárias. A
investigação partiu da amostra composta pelos 43.000 maiores negócios do mundo
e descobriu a existência de mais de um milhão de vínculos de propriedades entre
eles. Revelou que 40% do controle daqueles 43.000 maiores negócios mundiais
está concentrado nas mãos de apenas 147 instituições proprietárias, que
conformam um núcleo altamente conectado entre si. A maioria desse núcleo - 75%
- são entidades financeiras, e a propriedade dessas 147 instituições está nas
mãos de pouco mais de 50 grandes bancos, que possuem o controle do núcleo.
Essa concentração de poder, controle e propriedade dos
negócios mundiais nas mãos dos bancos tem permitido a interferência deles em
políticas e decisões governamentais estratégicas, concretizada nessa
hegemonia financeira que você mencionou.
A dívida pública tem sido um dos principais alimentos
desse capitalismo financeirizado, favorecendo a concentração de renda no setor
financeiro e aumentando ainda mais o seu poder. Por isso, o endividamento é um
problema presente em quase todos os países capitalistas.
No Brasil, estatísticas do próprio Banco Central
demonstram que em 2015, apesar da desindustrialização, da queda no comércio, do
desemprego e da retração do PIB em quase 4%, o lucro dos bancos alcançou o
patamar de R$ 96 bilhões e foi 20% superior ao de 2014.
PERGUNTA: Você acha que o problema da dívida pública, que ultrapassa a questão meramente econômica, recebe a devida atenção na Academia, na mídia e em outros canais de discussão e expressão?
Infelizmente, não. É um tema bloqueado até mesmo nas
faculdades de economia, onde a dívida aparece apenas de passagem,
como uma das
variáveis econômicas, comparada com o próprio dinheiro, como se a dívida
fosse uma outra forma de recurso, de moeda. Ou seja, uma visão
totalmente descolada
do papel que a chamada dívida pública exerce na prática.
Poucas pessoas se dedicam ao estudo do endividamento, dissecando os contratos desde a sua origem e os mecanismos que geram dívida continuamente. A maioria parte do senso comum, de que se existe uma dívida, houve o ingresso do recurso e estaria tudo certo. Mas não é bem assim. A experiência de auditorias cidadãs, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, tem demonstrado a atuação do que denominamos “Sistema da Dívida”, que corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem funcionado como um instrumento que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado. É por isso que é tão importante realizar a auditoria dessas dívidas, a fim de mostrar a verdade e segregar o que é dívida legítima e ilegítima.
PERGUNTA: Já que é tão importante, realmente, conhecer e discutir essa questão da dívida pública, essas informações que a senhora passa estão disponíveis e acessíveis em algum local?
Sim. Temos diversos artigos e publicações disponíveis
em nossa página www.auditoriacidada.org.br e
no facebook: Auditoria Cidadã da Dívida (organização).
O respaldo das informações que mencionei aqui pode ser
verificado também nas Análises Técnicas que realizamos para a CPI da Dívida
Pública, disponíveis em
http://www.auditoriacidada.org .br/blog/2016/08/15/documentos -da-cpi-da-divida-publica- 20092010/
Carta Maior, 05/04/17
A ditadura do
superávit primário
Por Paulo Kliass
O Banco Central (BC)
acaba de divulgar seu Relatório
Mensal sobre a Política Fiscal do
governo brasileiro. Dentre as inúmeras informações relativas ao desempenho da
equipe econômica no campo da administração da questão fiscal, vale a pena destacar
os números que retratam o comportamento das despesas financeiras da
administração pública federal.
De acordo com o levantamento apresentado pelo BC, ao longo do mês de fevereiro, o valor referente ao total de juros pagos pelo governo atingiu o montante de R$ 30,7 bilhões. Isso significa que, no acumulado dos últimos 12 meses, a União transferiu ao setor financeiro um volume de R$ 388 bi, em razão dos compromissos assumidos com cada uma das muitas modalidades do extenso cardápio que compõe o estoque de títulos de nossa dívida pública.
É bem verdade que tais números foram reduzidos em comparação ao ocorrido em 2015 e 2016, quando as despesas financeiras chegaram a atingir o total de R$ 502 bi e R$ 408 bi, respectivamente. O problema, no entanto, refere-se ao fato da economia brasileira estar imersa em uma recessão profunda, a maior e mais grave de nossa História. Assim, o levantamento histórico evidencia que a única variável que se manteve constante ao longo das últimas 2 décadas na condução da política econômica foi o saldo positivo de transferência de recursos orçamentários para o cumprimento das obrigações financeiras do governo federal.
Um dos aspectos mais paradoxais desse fenômeno reside no tratamento absolutamente desigual que o comando da economia confere aos diferentes tipos de gasto público. O Ministro da Fazenda e seus subordinados enchem a boca com muito orgulho para exibir as informações de um suposto “sucesso” obtido nos cortes de verbas e nos contingenciamentos das rubricas do Orçamento nas áreas sociais e nos investimentos a serem realizados pelo Estado. Esse tem sido um dos principais fundamentos da política macroeconômica desde a edição Plano Real em 1994. A garantia do compromisso assumido junto ao mercado financeiro é sempre considerada como variável “imexível” do modelo.
A tentativa de conferir ares de normalidade a tamanha excrescência em termos de implementação de políticas públicas recebeu o nome pomposo de “superávit primário”. Esse foi o artifício jurídico e conceitual utilizado pelos defensores dos interesses do sistema financeiro para justificar perante a sociedade o tratamento escandalosamente regressivo e injusto que passou a ser dado aos gastos de natureza financeira frente aos demais gastos do setor público. Assim, tal determinação passou mesmo a ser objeto de obrigação legal, segundo as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101/2000.
Ocorre que todo esse rigor e a consequente austeridade que passam a ser exigidos - até mesmo em termos de compromisso formal na condução da política fiscal - não se aplicam às despesas financeiras, aquelas derivadas do pagamento de juros da dívida pública. Ao se jactar do esforço hercúleo para assegurar a geração de um saldo superavitário nas contas primárias do governo, os responsáveis pela economia apenas se esquecem de confirmar ao restante da sociedade que nada mais patrocinam senão a transferência serena e tranquila de recursos públicos diretamente para os cofres do sistema financeiro. Pode até parecer estranho ou exagerado, mas é simples assim.
Essa abordagem ganhou tinturas de santidade, a ponto de ser qualificada como heresia qualquer tentativa de sequer cogitar a respeito de alguma condução heterodoxa ou alternativa nesse domínio. A consolidação de tal hegemonia chegou a obter ares de unanimidade a partir de 2002, quando o então candidato Lula anunciou a famosa “Carta ao povo brasileiro” durante a sua campanha às eleições presidenciais. A partir da leitura do documento, é possível confirmar a opção pela manutenção do “status quo” em termos da política econômica comandada pelo financismo:
(...) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.” (...)
(...) “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.’ (...) GN
A preservação intocável desse regime é um dos principais fatores que ajudam a explicar a hipertrofia do financismo em nossa sociedade. Não por acaso, os bancos fazem parte do seleto grupo de empresas que não foram afetadas pela crise que o Brasil atravessa há mais de 2 anos. O setor real da economia vem experimentando o drama social e econômico da recessão, do desemprego e das falências, ao passo que a banca continua a exibir seus balanços periódicos com lucros bilionários de forma sequencial e ininterrupta. A atual administração pós golpeachment avançou ainda mais, introduzindo a obrigação de se respeitar o dogma do superávit primário na própria Constituição, a partir da Emenda Constitucional n° 95/2016.
O discurso oficial que alardeia o catastrofismo fiscal está na base de medidas como a referida emenda que congelou as despesas sociais pelo prazo de 20 anos. Essa mesma narrativa do suposto estágio do pré-caos chantageia a sociedade e exige ainda mais sacrifícios da maioria do povo com a reforma previdenciária e a reforma trabalhista. A postura dramática oficial chega a números de um contingenciamento de várias dezenas de bilhões de reais contas do orçamento federal e impõe ainda mais cortes em áreas onde as despesas são parte da solução para a crise atual.
De acordo com o levantamento apresentado pelo BC, ao longo do mês de fevereiro, o valor referente ao total de juros pagos pelo governo atingiu o montante de R$ 30,7 bilhões. Isso significa que, no acumulado dos últimos 12 meses, a União transferiu ao setor financeiro um volume de R$ 388 bi, em razão dos compromissos assumidos com cada uma das muitas modalidades do extenso cardápio que compõe o estoque de títulos de nossa dívida pública.
É bem verdade que tais números foram reduzidos em comparação ao ocorrido em 2015 e 2016, quando as despesas financeiras chegaram a atingir o total de R$ 502 bi e R$ 408 bi, respectivamente. O problema, no entanto, refere-se ao fato da economia brasileira estar imersa em uma recessão profunda, a maior e mais grave de nossa História. Assim, o levantamento histórico evidencia que a única variável que se manteve constante ao longo das últimas 2 décadas na condução da política econômica foi o saldo positivo de transferência de recursos orçamentários para o cumprimento das obrigações financeiras do governo federal.
Um dos aspectos mais paradoxais desse fenômeno reside no tratamento absolutamente desigual que o comando da economia confere aos diferentes tipos de gasto público. O Ministro da Fazenda e seus subordinados enchem a boca com muito orgulho para exibir as informações de um suposto “sucesso” obtido nos cortes de verbas e nos contingenciamentos das rubricas do Orçamento nas áreas sociais e nos investimentos a serem realizados pelo Estado. Esse tem sido um dos principais fundamentos da política macroeconômica desde a edição Plano Real em 1994. A garantia do compromisso assumido junto ao mercado financeiro é sempre considerada como variável “imexível” do modelo.
A tentativa de conferir ares de normalidade a tamanha excrescência em termos de implementação de políticas públicas recebeu o nome pomposo de “superávit primário”. Esse foi o artifício jurídico e conceitual utilizado pelos defensores dos interesses do sistema financeiro para justificar perante a sociedade o tratamento escandalosamente regressivo e injusto que passou a ser dado aos gastos de natureza financeira frente aos demais gastos do setor público. Assim, tal determinação passou mesmo a ser objeto de obrigação legal, segundo as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101/2000.
Ocorre que todo esse rigor e a consequente austeridade que passam a ser exigidos - até mesmo em termos de compromisso formal na condução da política fiscal - não se aplicam às despesas financeiras, aquelas derivadas do pagamento de juros da dívida pública. Ao se jactar do esforço hercúleo para assegurar a geração de um saldo superavitário nas contas primárias do governo, os responsáveis pela economia apenas se esquecem de confirmar ao restante da sociedade que nada mais patrocinam senão a transferência serena e tranquila de recursos públicos diretamente para os cofres do sistema financeiro. Pode até parecer estranho ou exagerado, mas é simples assim.
Essa abordagem ganhou tinturas de santidade, a ponto de ser qualificada como heresia qualquer tentativa de sequer cogitar a respeito de alguma condução heterodoxa ou alternativa nesse domínio. A consolidação de tal hegemonia chegou a obter ares de unanimidade a partir de 2002, quando o então candidato Lula anunciou a famosa “Carta ao povo brasileiro” durante a sua campanha às eleições presidenciais. A partir da leitura do documento, é possível confirmar a opção pela manutenção do “status quo” em termos da política econômica comandada pelo financismo:
(...) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.” (...)
(...) “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.’ (...) GN
A preservação intocável desse regime é um dos principais fatores que ajudam a explicar a hipertrofia do financismo em nossa sociedade. Não por acaso, os bancos fazem parte do seleto grupo de empresas que não foram afetadas pela crise que o Brasil atravessa há mais de 2 anos. O setor real da economia vem experimentando o drama social e econômico da recessão, do desemprego e das falências, ao passo que a banca continua a exibir seus balanços periódicos com lucros bilionários de forma sequencial e ininterrupta. A atual administração pós golpeachment avançou ainda mais, introduzindo a obrigação de se respeitar o dogma do superávit primário na própria Constituição, a partir da Emenda Constitucional n° 95/2016.
O discurso oficial que alardeia o catastrofismo fiscal está na base de medidas como a referida emenda que congelou as despesas sociais pelo prazo de 20 anos. Essa mesma narrativa do suposto estágio do pré-caos chantageia a sociedade e exige ainda mais sacrifícios da maioria do povo com a reforma previdenciária e a reforma trabalhista. A postura dramática oficial chega a números de um contingenciamento de várias dezenas de bilhões de reais contas do orçamento federal e impõe ainda mais cortes em áreas onde as despesas são parte da solução para a crise atual.
O único setor que não é
chamado a colaborar para superar o momento difícil que o País atravessa é
justamente o financismo. Afinal, a permanência longeva da ditadura do superávit
primário manteve intocáveis os privilégios desse ramo da economia. De acordo
com informações da própria Secretaria do Tesouro Nacional, ao longo das últimas 2 décadas, o total de despesas com
pagamento de juros promoveu a drenagem de R$ 4,3 trilhões a valores atuais dos
cofres da União para o coração do sistema financeiro. Se o ponto de corte for o
início de 2003, o total ainda assim é impressionante: foram R$ 3,5 tri ao longo
do período. Mas esse tipo de recurso não é objeto de contingenciamento. Pelo
contrário, todas as outras áreas são chamadas a cortar na própria carne para
que sobrem recursos para o superávit primário.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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