Estadão.com, 14/04/17
Algumas notas sobre Aristóteles e a definição de poesia
Por Gabriel Nocchi Macedo*
O que diferencia prosa e poesia? Feita a um grupo de estudantes universitários, em uma prestigiosa universidade, a pergunta gerou hesitação. Com alguma insistência, obtiveram-se algumas tímidas respostas: a poesia é uma “expressão de sentimentos”, enquanto a prosa “conta uma história”. Qualquer distinção formal entre uma e outra categoria de composição literária, mesmo a noção de “verso”, passa despercebida. A resposta dos nossos universitários reflete, de certa forma, a ideia que o público geral tem do propósito da poesia: exprimir sentimentos, criar imagens, sugerir afetos, enquanto romances, contos e novelas narram histórias com início, meio e fim.
No entanto, na tradição literária, a distinção essencial entre prosa e poesia deve-se não tanto ao conteúdo quanto à forma, e sobretudo ao metro (do grego metron, “medida”): uma estrutura rítmica definida sobre a qual se constrói o verso, ou seja, a linha poética. Até o século XIX, com a emergência da prosa poética seguida, ao início do século XX, pela aparição do verso livre (cujo ritmo é despojado de qualquer coerção métrica), o metro era o critério essencial, a condição sine qua non à criação poética.
Os antigos gregos, criadores da crítica literária, foram os primeiros a teorizar sobre a natureza da poesia. Platão, notório por sua aparente antipatia por poetas, refere-se ao metro como uma vestimenta ou armadura que cobre as “palavras nuas” (logoi psiloi), ou seja, a prosa. Na sua Poética, Aristóteles reconhece o metro como o denominador comum dos diversos gêneros de poesia (Aristóteles, Poética 1447b 14-20):
Como ilustra essa passagem, o uso do metro na Grécia antiga era muito mais amplo do que a ideia moderna de poesia. Em seus primeiros séculos, toda a literatura grega era poética; até tratados científicos e filosóficos, como o Da natureza de Empédocles de Acragas, eram versificados. Aristóteles foi o primeiro a questionar a identificação convencional “texto em metro = poesia”, situando no centro de sua definição de poesia a noção de mimèsis, traduzido ora por “representação” ora por “imitação”. Empédocles escreve versos com um proposito científico (ou didático), não mimético: nada, em sua obra, imita ou representa a ação humana. Ele, portanto, não deveria ser considerado poeta, mas um “escritor científico”. A essência do poético, segundo Aristóteles, reside no seu caráter mimético. O metro só não basta à poesia.
Aqueles que criam imagens representam muitos objetos pelo uso formas e cores (…), outros o fazem pelo uso da voz, como em todas as artes mencionadas acima, que fazem imitações usando ritmo, linguagem e melodia, separadamente ou em conjunto. As músicas da flauta, da cítara e de outros instrumentos com efeito semelhante, como a flauta de Pan, usam melodia e ritmo apenas, enquanto a dança usa o ritmo sem melodia (de fato, os dançarinos, pelo ritmo de seus gestos, imitam caráteres, emoções e ações).
Após uma digressão sobre a nomenclatura de alguns gêneros literários, o fundador do Liceu conclui (Poética, 1447b 24-27):
Há também artes que usam todos os meios aqui evocados, digo ritmo, melodia e metro, como a poesia ditirâmbica, a poesia nômica, a tragédia e a comédia[2].
Aristóteles, infelizmente, não trata de todos os tipos de literatura e de sua relação com a mimèsis (a maior parte do primeiro livro da Poética é de fato dedicada somente à tragédia; o segundo livro, que tratava da comédia, foi perdido). Porém, aplicando o raciocínio aristotélico à terminologia moderna, chegar-se-ia às seguintes definições: poesia é a arte que usa, como meios de realizar a mimèsis, linguagem e ritmo. Alguns gêneros poéticos usam tão somente linguagem e ritmo (como a épica), outros, linguagem, ritmo e melodia (como os gêneros de poesia cantada citados acima). A arte que realiza a mimèsis pelo uso da linguagem pura, sem ritmo, é o que hoje chamaríamos de “prosa literária” ou “ficção” e englobaria os o romance, o conto, a novela, etc. A “não ficção”, ou seja, a prosa científica, filosófica, ensaística, etc., faz uso da linguagem pura, mas não realiza mimèsis.
Os antigos tratados filosóficos em verso, como o de Empédocles, preenchem as condições formais da poesia, i.e. usam linguagem e ritmo, mas também não são miméticos e excluem-se assim da teoria poética de Aristóteles.
A mimèsis, e consequentemente a poesia, têm suas origens, segundo Aristóteles, na natureza humana (Poética 1448b 4-24):
Duas causas parecem ter originado a arte poética, ambas naturais. A representação é natural aos seres humanos desde a infância, e é por ela que eles se diferenciam dos outros animais. Pois, o ser humano é o mais mimético de todos [os seres] e seus primeiros aprendizados se fazem através da representação. E todos os homens obtêm prazer das representações. Um sinal comum disso é que nos alegramos ao ver reproduções extremamente realistas de coisas que nos são dolorosas de ver, como cadáveres ou formas de animais repugnantes.
A causa disto é que não só os filósofos gostam de aprender, mas também os homens comuns, mesmo se eles têm menos aptidão. É por isso que as pessoas têm prazer em contemplar imagens, porque contemplando-as elas aprendem e inferem o que cada coisa é, por exemplo, “isto é tal coisa”. Até porque, se eles por acaso nunca viram o objeto representado, não é a representação que lhes trará prazer, mas a técnica, a cor ou algum outro elemento.
Representação nos é então natural, assim como a melodia e o ritmo (o metro é, bem entendido, parte do ritmo). Desde o início, aqueles mais naturalmente inclinados a tais coisas desenvolveram, pouco a pouco, a poesia a partir da improvisação.
Tem-se aqui um ponto central da estética aristotélica, que, em momento algum, reivindica-se de l’art pour l’art. A mimèsis, inerente à natureza humana, não provoca somente prazer ao homem, ela é um modo de aprendizado. A poesia, enquanto expressão mimética, mantém essa função e reveste-se assim de uma importância moral. O dever do poeta, diz Aristóteles, não é contar o que aconteceu na realidade, mas o que poderia acontecer, por necessidade ou probabilidade. O historiador relata fatos e eventos, muitos dos quais são frutos do acaso ou não se podem explicar. Cabe ao poeta expressar, na sua representação desses fatos e dos homens que participam deles, aquilo que, nas circunstâncias e na ação de um homem, é útil a todos os homens (Poética, 1451a 38 – 1451b 10):
A diferença entre o historiador e o poeta não é que um escreve sem metro e o outro com metro (de fato, se a obra de Heródoto fosse posta em metro, ela ainda seria um tipo de história, com ou sem metro), mas a diferença é que um diz o que aconteceu, o outro, o que poderia acontecer. Por isso, a poesia é mais filosófica e mais séria que a história, pois a poesia revela o universal, e a história, o particular. O universal diz respeito ao tipo de coisa que um tipo de pessoa deve provavelmente ou necessariamente dizer, e este é o objetivo da poesia, mesmo se ela usa nomes particulares.
Exemplificando: a verdade de Édipo Rei não é aquela de um antigo rei de Tebas (que provavelmente nunca existiu) que matou o pai e casou-se com a mãe. O que o expectador (ou leitor) aprende ao ver representadas ações dos personagens e suas consequências, é a verdade sobre insolência humana, sobre os perigos do poder, sobre a inexorabilidade do destino.
*Doutor em Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidade de Liège (Bélgica) e leciona atualmente na Universidade do Michigan.
[1] Poiein, do qual derivam “poesia”, “poeta”, etc., significa “fazer, criar”. Literalmente, Aristóteles refere-se a poetas elegíacos e épicos como “fazedores de elegia” e “fazedores de épica”.
[2] O ditirambo e o nomos são odes líricas entoada por um coral, o primeiro em homenagem a Dionísios, o segundo a Apolo. As tragédias e comédias gregas, compostas eram inteiramente em verso, compunham-se de partes faladas e de partes cantadas com acompanhamento musical.
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