Publico.PT, 29/04/17
Livrarias muito especiais
Por
José Pacheco Ferreira
Há muitos
anos que sempre que estou em Nova Iorque visito várias livrarias muito
especiais: livrarias empenhadas na luta política, livrarias radicais e
alternativas. O seu número tem baixado muito nas últimas décadas, têm
desaparecido do centro da cidade, e atiradas para os subúrbios, mas continuam a
ser obrigatórias para quem, como eu, procura livros, panfletos, brochuras fora
do mainstream das livrarias tradicionais.
É verdade
que muita coisa já se encontra na Rede, mas é completamente diferente
escolhê-las numa livraria onde se pode folhear, comprar e ter uma noção física
do livro ou brochura. Não é preciso ser um nostálgico do livro impresso, que
não sou, para considerar que ainda há uma considerável vantagem na observação
física dos livros e brochuras, em determinadas circunstâncias.
As
livrarias políticas militantes tendem a ser daquilo que na Europa se chama
extrema-esquerda, embora a definição de radical se aplique melhor aos casos de
que falamos. A direita radical não deve gostar muito de livrarias, porque
embora existam algumas, por exemplo, em Espanha, são excepções. Há alguns anos,
ainda pude frequentar, com algum espanto de principiante, a livraria pioneira
do libertarianismo, uma corrente política tipicamente americana e que tem
conseguido nas eleições um honroso terceiro lugar depois dos democratas e dos republicanos.
Essa livraria, a Laissez Faire Books, que ainda existe como editora, tinha essa
mistura que me parecia completamente bizarra de livros e panfletos de Marx,
Bakunine, Hayek e Milton Friedman, a apresentava-os como um legado coerente.
Mas hoje
os pilares das livrarias radicais em Nova Iorque, que visitei várias vezes e
sobre as quais já escrevi, são a Bluestockings e a Revolution Books, dois
exemplos muito interessantes porque são muito diferentes. E na sua diferença
mostram tradições de radicalismo que emanam de uma visão do mundo tão
diferenciada que, tendo alguns livros em comum, são “mundos” com ordens e
tradições nos antípodas uma da outra. Ambas são virulentamente anti-Trump, mas
as semelhanças acabam aqui.
A
Bluestockings foi e ainda é uma livraria feminista, embora hoje as suas
estantes tenham todo o catálogo de movimentos e de causas do radicalismo
americano (e neste caso europeu): os estudos de género, o capitalismo global, a
ecologia, a situação prisional, estudos sobre os negros, a educação radical,
etc.. Mas a livraria, que é de propriedade colectiva e funciona com o apoio de
voluntários, é também um centro comunitário, onde se realizam várias reuniões
das mais estranhas causas e grupos. Tive uma vez a ocasião de assistir de lado
a uma realizada sob o efeito da paulada enorme da eleição de Trump, que teria
mais ou menos dez pessoas, incluindo um velho hippie, uma jovem mãe com
o filho ao colo e um activista muito self-righteous que pretendia
conduzir a reunião, no meio do caos das intervenções, com bastante
autoritarismo. Não demorei um segundo para perceber que a luta anti-Trump não
seria certamente liderada pela Bluestockings, mas hoje já não estou tão certo
disso. A grande manifestação anti-Trump, uma das maiores de sempre nos EUA, foi
conduzida por mulheres, e as jovens raparigas que estavam ao balcão fazem parte
da massa de pessoas que fez essas manifestações.
Mas a
Bluestockings não é apenas um catálogo das múltiplas causas activistas — é um
espelho total do mundo “politicamente correcto” levado até ao absurdo. O café
servido é obviamente “zapatista”, e alguns produtos que se podem comprar são
resultado do “comércio justo”, e são coisas orgânicas, vegan e com
outras classificações, havendo mesmo algumas que a minha condição masculina me
impede de perceber — culpa minha —, como sejam “produtos menstruais
alternativos”. Há também uns álbuns para as crianças colorirem sobre a vagina,
e todo o espaço é amigável a quem venha de cadeira de rodas, uma boa coisa,
embora não se aplique à casa de banho, para o que é necessário ir a um
Starbucks perto. Uma coisa estranha é a prevenção de que, mesmo não sendo um
“espaço livre de cheiros”, o que se pode facilmente verificar, nem por isso se
deixa de “desencorajar” o uso de perfumes, águas-de-colónia, óleos essenciais,
sendo que fumar é proibidíssimo e só pode fazer-se “bem longe” da entrada.
Todas as citações entre aspas estão no site da livraria.
A
população da livraria é predominantemente feminina e jovem, e percebe-se que
não vive nem nas altas nem nas médias esferas do “capitalismo global”, e como
está situada numa zona pobre da cidade percebe-se que o seu trabalho
comunitário atrai uma frequência local com alguma marginalidade que encontra
ali um espaço para estar, para ler quando não se tem dinheiro para comprar
livros, ou para levar comida e lá comer, numa ou duas mesas colocadas debaixo
do letreiro em madeira de uma das últimas lutas sociais e raciais nos EUA, “black
lives matter”. Cá fora, na vitrina, resume-se a livraria: livros radicais,
café barato, acontecimentos estimulantes e “beautiful community”. Longa
vida, Bluestockings!
Na outra
ponta da cidade, em Harlem, na Avenida Malcolm X, sobrevive uma outra livraria
muito especial, a Revolution Books, nos antípodas da sua irmã do Sul. Onde na
Bluestockings reina um certo caos, num espaço que não brilha pela limpeza, a
Revolution Books ofusca de lavado, num espaço cuidadosamente organizado onde
nada está fora de ordem. As pessoas que mantêm a livraria são também mais
velhas, e em nada se distinguem na maneira de vestir e na atitude do comum das
pessoas da sua idade e condição. São, em muitos casos, velhos militantes que
desde os anos 60 e 70 acompanharam esta tradição do radicalismo americano.
Conheço a
livraria desde quando ainda estava em Midtown Manhattan e nada mudou. Aliás, na
Bluestockings também não. O espaço em Harlem é maior e por isso ainda melhor se
percebe que estamos perante uma organização dotada de um enorme sentido de
ordem, o que não é estranho porque a livraria está ligada a um partido
comunista, o Partido Comunista Revolucionário, e a uma personagem parecida com
o “grande educador”, Bob Avakian.
Tenho pena que a Laissez Faire Books tenha acabado e já vi suficientes livrarias acabar ou, ainda pior, normalizar-se para se tornarem todas iguais, uma espécie de montra de papel pintado com “novidades” de ontem iguais às de hoje. Por isso, quem gosta de livros e da diversidade do mundo, vai a estes microcosmos políticos com prazer.
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