Pensem em algumas das mais ácidas críticas que vocês viram, leram ou escutaram em relação ao Ministério Público (MP) nos últimos anos. Críticas, por exemplo, aos eventuais abusos na atuação de membros do MP. À tentativa maniqueísta da instituição (ou parte dela) de se apresentar como agente exclusivo do bem, contrapondo-se a outras autoridades, em especial do Poder Executivo, condenadas a encarnarem o mal. Ou, ainda, críticas ao furor reivindicatório de uma carreira com remuneração inicial superior a R$ 20 mil por mês.
O que vocês provavelmente nunca leram foi todas essas críticas, e outras tantas, na boca de alguém que integra os quadros do Ministério Público Federal (MPF) há 26 anos, ocupou o cargo de subprocurador-geral da República e está deixando a função de corregedor-geral do MPF para assumir o Ministério da Justiça - Eugênio José Guilherme de Aragão - e cujo ensaio encontra-se a seguir.
“O Ministério Público na encruzilhada – parceiro entre sociedade e Estado ou adversário implacável da governabilidade?”
Por Eugênio José Guilherme de Aragão
Professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, é mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex (Reino Unido) e doutor em Direito pela Ruhr-Universität de Bochum (Alemanha).
1a PARTE
O Ministério Público brasileiro tem formato peculiar. Se em quase todos os Estados do mundo contemporâneo a atuação dessa instituição se limita ao âmbito da persecução penal (com uma ou outra incursão, justificada pelo interesse público, em foro cível ou administrativo), no Brasil, as atribuições do parquet são muito mais amplas. Aqui, nas últimas duas décadas, agentes do Ministério Público se afirmaram – no senso comum – como representantes da sociedade nas mais variadas demandas contra o Estado, além de – por óbvio – também promoverem a persecução penal.
As razões dessa expansão das atribuições ministeriais estão no respeito que, durante as décadas de 80 e 90 do século passado, a instituição adquiriu aos olhos de atores políticos decisivos para fixar seu estatuto constitucional e legal e, também, na capacidade que alguns de seus membros tiveram de ocupar espaços de atuação vazios, numa época em que as carreiras jurídicas não gozavam do prestígio que detêm nos dias de hoje.
Num Estado em que diversas formas de corrupção são inerentes ao fazer da política e em que necessárias transformações estruturais e funcionais para sua viabilização econômica no cenário global encontram resistência de variados grupos de interesse, o Ministério Público tem logrado, em episódios decisivos, assumir o papel de agente corretivo em duas formas de atuação, a saber, ora propondo alternativas de políticas e ações públicas para garantir direitos coletivos, ora cobrando a sanção penal ou administrativa para as diferentes formas de desvio de conduta pública. Essas duas formas do agir corretivo – o propositivo de ação do Estado e o sancionador de desvios – não têm sido, entretanto, adotadas de forma equilibrada na última década. Cada vez mais, a atuação do Ministério Público tem sido mais sancionadora e menos propositiva, criando assim situações de frequentes confrontos com os atores políticos que outrora foram decisivos para seu fortalecimento.
A relação entre o Ministério Público e o governo (ou Poder Executivo) passou a ser, ao longo dos últimos anos, muito conflitiva. Abandonando a postura de parceiro, a instituição passou a ser vista, pelo administrador, como risco à governabilidade. Agentes do Ministério Público têm crescentemente tentado impor sua visão de gestão de recursos públicos – e, com isso, a formatação das políticas públicas – mediante uso ou ameaça de uso da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992), conjugado com a acusação, em âmbito penal, por crimes contra a administração. Essas iniciativas se fizeram acompanhar, frequentemente, de declarações públicas na mídia, acirrando ataques oposicionistas e de meios de comunicação hostis ao governo, em indisfarçável tom maniqueísta, como se a posição do Ministério Público, representando o espírito público, o lado do bem, estivesse em confronto moral com a política do Executivo, representando a transgressão, o mal enfim. A consequência, em diversos setores, tem sido a paralisia da ação governamental, com deterioração da infraestrutura e de serviços prestados à população.
É curioso constatar que boa parte da pressão que o Ministério Público tem exercido contra a ação governamental é motivada por necessidade de afirmação de seu espaço de atuação. Num país em que os níveis de ganhos do pessoal do serviço público não obedecem a qualquer lógica de eficiência, mas correspondem – muito mais – à capacidade de cada corporação de se fazer ouvir e sentir entre os atores políticos que fixam os ganhos, as carreiras de Estado que detêm poderes de admoestar a administração e os administradores (juízes, Ministério Público, polícia, auditores fiscais e de contas e, em menor grau, a advocacia pública) têm logrado se manter no topo remuneratório. Remunera-se melhor, portanto, aqueles que representam risco para a ação do governo. E, sendo esse o critério, não deve causar espanto o fato de algumas dessas carreiras criarem situações de risco precisamente para se valorizarem. Em alguns setores da atuação de controle, as corporações chegam até mesmo a disputar espaço capaz de gerar situações de risco. Não é à toa que Justiça, advocacia pública, Ministério Público e polícia – e mais recentemente também a Defensoria Pública – vêm protagonizando embates duros para tomarem, uns, as atribuições dos outros.
Assim, passado quase um quarto de século desde a promulgação da Constituição Federal, impõe-se o debate sobre os limites de atuação do Ministério Público. Esse debate deve começar, preferencialmente porque de forma menos traumática, no próprio Ministério Público, que tem assistido à paulatina perda de espaço na organização do Estado. Essa dinâmica perversa de causar risco para aumentar o valor específico da carreira no cenário remuneratório geral tem que ser superada, sob pena de levar a instituição ao descrédito e se confiná-la ao espaço limitado da persecução preordenada pelo inquérito policial.
Este artigo se dedica a discutir a crise de relacionamento entre o governo e o Ministério Público sob a perspectiva da governabilidade. Num primeiro momento, descreveremos o perfil do Ministério Público na Constituição de 1988 e sua atuação legal no controle da ação governamental. A seguir, apontaremos as razões que levaram o Ministério Público a estender seu âmbito de atuação na vigência da atual Constituição. Num terceiro momento, mostraremos que, a partir dos idos dos anos 90 do último século, o Ministério Público abandonou, em larga medida, sua condição de parceiro propositivo na execução de políticas públicas, para se tornar, cada vez mais, o implacável censor do governo, com uso mais frequente da Lei de Improbidade Administrativa e da persecução penal contra gestores. Exploraremos as causas dessa mudança de atitude institucional e indicaremos alguns riscos que o Ministério Público corre se mantiver a postura de censor. Por último, formularemos sugestões para superação desse quadro. Este artigo se valerá, em muito, da experiência do autor em sua atuação no Ministério Público Federal e, por isso, pede-se escusas pela menor menção aos Ministérios Públicos estaduais.
O Ministério Público brasileiro na Constituição de 1988
O perfil do Ministério Público brasileiro é sui generis no Direito Comparado e foi definido no art. 127 da Constituição Federal promulgada em 1988. Ali, o parquet é tratado como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Nota-se que a defesa de direitos no quadro do regime democrático sobressai dentro de sua missão, não havendo, nessa formulação, qualquer referência específica à função persecutória. Essa é mera decorrência da defesa da ordem jurídica, mas não mereceu menção direta. De qualquer sorte, para defender o regime democrático e os direitos que lhe são inerentes, o Ministério Público foi erigido em órgão equiparado a poder de Estado, contando seus agentes (chamados de “membros”) com prerrogativas similares às dos magistrados. Talvez não precisasse de tanto se sua função se resumisse à acusação penal.
Para realizar sua missão, estabeleceu-se que o Ministério Público se rege pelos princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional (art. 127, § 1.º, da Constituição). No aspecto preceptivo, portanto, o modo de atuação da instituição e de seus membros se distingue do dos magistrados. A independência do membro do parquet – diferentemente da do magistrado – decorre de princípio que se prende ao livre exercício da instituição como um todo (“princípio institucional”) e não apenas de cada membro individualmente e deve se articular com os demais princípios, precisamente porque o Ministério Público não atua somente por demanda, como o Judiciário, mas tem iniciativa própria. A independência funcional do membro individual deve se harmonizar com diretrizes coletivas de atuação que permitam o órgão agir concertadamente e não de forma desencontrada, com posições contraditórias sobre a ação governamental. Por isso, o princípio da unidade se projeta na sujeição de cada membro às deliberações orgânicas no tocante aos eixos de atuação e à economia interna de distribuição objetiva de tarefas. Ele pressupõe coordenação e agir coordenado. Já o princípio da indivisibilidade indica que cada membro atua pelo todo, não se admitindo fracionamento funcional. No processo e fora dele, o Ministério Público é um só, não se dividindo para os efeitos legais de sua prática, verbi gratia, em Ministério Público de atuação administrativa e outro de atuação judicial, em Ministério Público de atuação em primeiro grau de jurisdição e de atuação em segundo ou, ainda, em Ministério Públicocustos legis e Ministério Público parte acusadora. Podem os agentes ser diferentes em cada instância ou em cada âmbito, mas sua atuação é pelo todo e, também por isso, deve ser concertada. É curial que a independência funcional também se reflete no modo de agir e de pensar de cada um. Cada membro pode e deve ter sua posição jurídica individual e não deve ser forçado a agir contrariando sua convicção; mas essa convicção não pode ser preservada à custa da atuação una e indivisível da instituição. Não concordando com a maioria, deve o membro declinar sua posição divergente e se esta inviabilizar a ação concertada, num dado feito, deve dele se afastar.
No caso do Ministério Público da União, essas características encontram acentuação mais grave na circunstância de o procurador-geral da República ser definido como seu “chefe” (art. 128, § 1.º, da Constituição). Chefe manda. Chefe exerce poder hierárquico sobre os demais. Chefe é “aquele que dirige, que chefia”; é quem “exerce a autoridade principal, que tem poder de decisão”.[1] A Constituição estabelece, portanto, uma estrutura minimamente hierarquizada para o Ministério Público da União. E nem poderia ser diferente. Trata-se de instituição incumbida de provocar, através de seu chefe, o Supremo Tribunal Federal (STF) para a reta interpretação da própria Constituição, para a intervenção nos estados da federação e, eventualmente, para acusar o presidente da República por crime comum, caso em que este será julgado pelo STF. São, estas, atribuições muito graves que podem comprometer a vida da nação e o funcionamento adequado dos poderes e órgãos do estado. Não seria razoável permitir que a atuação do procurador-geral da República sofresse interferência, nesse âmbito, por iniciativa desconcertada de outro membro ou outros membros do Ministério Público. Sua posição hierárquica superior é, pois, pressuposto da segurança jurídica e da governabilidade. Por essa razão, é escolhido e nomeado pelo presidente da República dentre os integrantes da carreira, para mandato de dois anos, após aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal. Sua destituição, de iniciativa, também, do presidente da República, demanda o mesmo quórum do Senado (art. 128, §§ 1.º e 2.º, da Constituição). Como chefe da instituição, incumbe ao procurador-geral da República garantir que os órgãos do Ministério Público da União atuem de modo coordenado, dentro dos princípios que pautam sua missão.
A Constituição reconhece, nesses limites, o papel diferenciado do Ministério Público dentro do Estado, a ponto de lhe garantir o livre exercício, como instituição. O presidente da República se sujeita à pecha de crime de responsabilidade se vier a atentar contra esse livre exercício (art. 85,caput, II, da Constituição). Por isso mesmo, detém o Ministério Público autonomia funcional e administrativa, propondo diretamente ao Legislativo a criação e extinção de seus cargos e provendo esses cargos por concursos próprios. Tem ademais, o procurador-geral, iniciativa legislativa sobre a política remuneratória e sobre os planos de carreira (art. 127, § 2.º, da Constituição). A proposta orçamentária anual da instituição é por ela elaborada nos limites e no prazo da Lei de Diretrizes Orçamentárias e encaminhada ao Executivo para consolidação na proposta de lei orçamentária (art. 127, §§ 3.º a 5º, da Constituição). Enfim, é facultada, ainda, ao respectivo procurador-geral, a iniciativa de lei complementar que estabelece “a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público” (art. 128, § 5.º, da Constituição).
Para bem desempenharem, sem temor, suas funções, os membros do Ministério Público gozam de garantias típicas da magistratura: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos subsídios (art. 128, § 5.º, da Constituição). Essas devem ser entendidas como cautelas contra iniciativas que possam ferir o livre exercício. Por isso, não violam a inamovibilidade normas que estabelecem prévia e objetivamente distribuição de tarefas por rodízio e por mandato. Também não vicia a irredutibilidade dos subsídios eventuais onerações fiscais e parafiscais decorrentes de lei, isto é, norma geral a todos aplicável. Nem a afeta a redução de seu poder de compra por desvalorização inflacionária da moeda, contingência natural de uma economia em expansão, que interfere na vida de todos os cidadãos.
As atribuições específicas do Ministério Público são arroladas no art. 129 da Constituição. Sobressaem, por um lado, o exercício exclusivo da ação penal pública e, por outro, a garantia de direitos dos governados, do patrimônio público, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. No mais, confere-se à instituição a iniciativa da ação de inconstitucionalidade, a representação pela intervenção da União nos estados e a defesa das populações indígenas. Nesses âmbitos, incumbe ao Ministério Público expedir notificações e requisitar informações e documentos em seus procedimentos administrativos, requisitar fundamentadamente à polícia diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, bem como exercer o chamado “controle externo da atividade policial”.
A mistura, no desenho da atuação institucional do Ministério Público, de atividades típicas de guardião de direitos, por um lado e, por outro, de agente persecutório penal, ainda que harmônica com a tradição legal brasileira, talvez não tenha sido uma boa iniciativa do legislador constituinte. Há natural tendência de o Ministério Público tratar a garantia de direitos sob a ótica persecutória contra quem os tangencie, deixando, muitas vezes, de buscar o trato de negociação e parceria com a administração, por enxergá-la como potencialmente transgressora. No mais, constata-se que, na prática institucional, o manejo coletivo e político dos problemas postos em termos de realização de direitos, tem dado lugar ao voluntarismo pessoal de membros isolados do Ministério Público, distorcendo claramente o arcabouço constitucional proposto, decorrente, sobretudo, de experiências pré-constitucionais muito positivas na atuação orgânica e propositiva da instituição. É desse projeto de construção do Ministério Público forte que passaremos a tratar.
O caminho pré-constitucional e pós-constitucional de fortalecimento do Ministério Público: a construção de um parceiro entre sociedade e Estado
Antes, ainda, de convocada a Assembleia Nacional Constituinte, foi promulgada a Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, também conhecida por “Lei da Ação Civil Pública” (LACP). Essa lei instituiu mecanismo processual próprio para a responsabilização de tantos que dessem causa a danos morais e patrimoniais contra o meio ambiente, o consumidor, bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, a ordem econômica ou popular, a ordem urbanística ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
A lei foi resultado de um momento singular na história política brasileira. Nos estertores da ditadura militar, uma vez promulgada a Lei de Anistia e reorganizado o espectro partidário, o Brasil experimentou aos poucos o retorno à normalidade democrática. Na década de oitenta do século passado, com a volta ao país de atores políticos importantes que estavam no exílio, como Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, Fernando Gabeira e outros, houve impulso de auto-organização da sociedade civil, como, por exemplo, o estimulado, nas grandes cidades, pelos governos estadual e municipal, com o fenômeno do associativismo de bairros. Ao mesmo tempo, perdia-se o medo de demandar judicialmente direitos contra o Estado. É claro que essa nova dinâmica social requeria um marco jurídico para atuação judicial. As ações coletivas então admitidas no Direito brasileiro – a ação popular, o litisconsórcio ativo ou o dissídio coletivo em matéria trabalhista – não eram suficientes. Nascia, então, a concepção da ação civil pública como class action, para abrigar demandas de direitos coletivos em novas áreas. E o Ministério Público, já presente como custos legis nas tradicionais ações coletivas, passou a ser naturalmente vocacionado e legitimado para a propositura da nova ação.
A LACP confere, assim, ao Ministério Público um papel proeminente. Não é, ele, o único legitimado para a ação (o art. 5.º atribui a iniciativa também a outros atores públicos e privados), mas, seguramente, aquele melhor aparelhado para propô-la, uma vez que lhe é exclusiva a atribuição para o inquérito civil (art. 8.º, § 1.º). Nessa posição, o Ministério Público pode requisitar de entidades públicas e privadas informações ou documentos necessários à propositura da ação (art. 8.º, caput) e a recusa e o retardo no envio dessas informações ou documentos são tipificados como crime (art. 10). A legitimação concorrente de outros atores não enfraquece a condição de legitimado central, eis que o Ministério Público há de intervir sempre na ação civil pública, quando não for ele que a tiver proposto (art. 5.º, § 1.º). Na prática, a legitimação concorrente tem sido fato decisivo para a articulação do Ministério Público com a sociedade civil organizada e permitiu, muitas vezes, a construção de parcerias entre ambos. São frequentemente organizações não governamentais que municiam o Ministério Público com informações valiosas para instaurar inquérito civil ou, diretamente, propor ação civil pública. Se o Ministério Público não corresponde às expectativas da sociedade civil, suas entidades podem eficientemente substituí-lo com sua própria iniciativa processual.
A partir da década de oitenta do século passado, o Ministério Público Federal soube bem aproveitar esse espaço conferido pelo legislador. Criou-se, em 1986, a Secretaria de Defesa dos Direitos Coletivos e Interesses Difusos (Secodid), órgão então dirigido por Claudio Lemos Fonteles e que orientou a atuação propositiva da instituição nas matérias cobertas pela LACP. Iniciou-se também, naquela época, a defesa de populações indígenas como atuação em garantia de direitos de uma coletividade, ainda que, num primeiro momento, sem contar com a ação civil pública. Atuação pioneira teve o Ministério Público Federal no Supremo Tribunal Federal, em 1987, ao apresentar contestação na Ação Cível Originária n.º 362, do Supremo Tribunal Federal, como representante da União Federal (quando ainda o Ministério Público Federal acumulava as funções de advocacia pública). Cuidou, ali, de preservar as terras indígenas do parque do Xingu, sofrendo, por isso, o procurador da República que subscreveu a contestação e o procurador-geral da República, retaliação de fazendeiros ali identificados como grileiros, que lhes moveram até mesmo queixa-crime.[2] Essa atuação inspirou a sistematização da defesa das populações indígenas no âmbito do Ministério Público Federal, culminando em 1989, já na vigência da nova Constituição Federal, na criação da Coordenadoria de Defesa dos Direitos e Interesses das Populações Indígenas, subordinada à Secodid.[3]
Nessa época, houve algumas iniciativas que deram visibilidade nacional e internacional ao Ministério Público Federal. Um exemplo é a ação declaratória proposta junto à 6.ª Vara Federal em Brasília, objetivando a interdição e declaração de ocupação imemorial das terras em que vivem os Yanomami, no estado do Amazonas e no então território federal de Roraima.[4] A iniciativa era resultado do trabalho de vários procuradores que haviam participado de visita à região, no contexto da chamada “Ação pela cidadania”, movimento liderado, na década de oitenta, pelo senador Severo Gomes com o fim de enfrentar graves violações de direitos humanos em diversas partes do território nacional. No caso, a área de 9.419.108 hectares havia sido invadida por garimpeiros que contavam com apoio oficioso de órgãos do governo territorial e do governo federal e, até mesmo, das Forças Armadas. O juiz titular da 6.ª Vara, a pedido do Ministério Público Federal, determinou ao Exército e à Força Aérea que dessem apoio a operações da polícia federal destinada à desocupação da área, de não indígenas. A ação, julgada procedente, resultou, depois, na demarcação do Parque Yanomami pelo governo federal, em 1991.
À mesma ocasião procuradores que haviam participado do I Encontro dos Povos da Floresta, em Rio Branco (AC), foram chamados a confrontar casos de trabalho escravo no Vale do Juruá, vitimando seringueiros. Em iniciativa pioneira, foi solicitado parecer antropológico a Doutora Eliane Cantarino O’Dwyer sobre o modelo de exploração econômica da seringa na região.[5]Concluindo, a antropóloga, trabalharem os seringueiros em regime análogo à escravidão, dependentes que eram do seringalista, na formação do preço da seringa e de seus mantimentos, requisitaram, os procuradores, inquérito policial, que foi resistido pela Polícia Federal na região. Buscaram, então, a via alternativa da moldagem de política pública que suprimisse as condições que possibilitavam a exploração escravocrata do trabalho dos seringueiros. Foi, em parceria com o então presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Fernando César Mesquita, desenhado o modelo de reserva extrativista para permitir a desapropriação de toda a área de exploração no Alto Juruá, formando-se, em seguida, a cooperativa de seringueiros, responsável pela formação do preço de compra da seringa e de venda dos víveres necessários aos cooperativados. A Reserva Extrativista do Alto Juruá é resultado desse trabalho de parceria criativa. Depois, seguindo o modelo, foi criada a Reserva Chico Mendes, nos mesmos moldes.
Outros exemplos de atuação nessa linha poderiam aqui ser lembrados. A lista é farta. Mas o que interessa, por ora, é constatar que a capacidade de se utilizar dos marcos legais de forma criativa, para buscar soluções de políticas públicas para demandas de direitos coletivos, em parceria como o Executivo e, também, com o Legislativo, é que deu notoriedade e força ao ministério público na esfera federal. Na Constituinte de 1987-1988, o ambiente era francamente favorável a que se prestigiasse esse perfil do ministério público, como meio de garantir maior eficácia aos inúmeros direitos então proclamados.
Depois da Constituinte, deu-se a edição do Código do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990), da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992 – LIA) e da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar n.º 75, de 20 de maio de 1993 – LOMPU). Todas reforçaram o quadro favorável à instituição.
Com a edição do Código do Consumidor, estendeu-se o âmbito de aplicação da LACP para quaisquer interesses difusos ou coletivos (art. 1.º, IV, da LACP com redação dada pelo Código) e se introduziu significativos acréscimos à normativa da ação civil pública. Instrumento poderoso em mãos do Ministério Público passou a ser o compromisso ou termo de ajustamento de conduta (conhecido pela sigla “TAC”), que está previsto no art. 5.º, § 6.º da LACP; o uso do TAC permite ao Ministério Público impor à administração e outras interessadas ações necessárias para o cumprimento de normas legais, valendo como título executivo. Confere-lhe, assim, inter alia, poderes para ajustar políticas públicas e, assim, contribuir com sua formatação. Trata-se, sem dúvida, do mais relevante acréscimo, ainda que polêmico, pois seu uso inadequado pode deslegitimar a administração em suas escolhas de ação pública e levar à judicialização da política.
A LIA visa a sancionar a conduta desviante do agente público e de tantos que contribuem com a prática da improbidade (cf. arts. 2.º e 3.º da LIA), bem como garantir, no caso de lesão ao erário público, o ressarcimento do dano. Para tanto, legitima o Ministério Público e a advocacia pública a promoverem a ação de reparação em juízo, com os consectários da sanção não penal do agente público responsável e de tantos que colaboraram com sua conduta (além do ressarcimento do dano, pagamento de multa, a perda da função pública, a perda dos direitos políticos e a proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios). Ainda que a LIA não faça qualquer referência à LACP, usou-se denominar a ação de improbidade administrativa também de “ação civil pública por ato de improbidade administrativa”, eis que é instrumento da atribuição constitucional do ministério público no manejo da ação civil pública para proteção do patrimônio público (art. 129, III, da Constituição Federal). Consequentemente, tem-se admitido o uso de todas as prerrogativas ministeriais da LACP no âmbito do trato com a improbidade administrativa, tais como a instauração de inquérito civil e o poder requisitório de informações.
Finalmente, a LOMPU, cujo texto foi, em larga medida, gestado no próprio ministério público, consolidou as conquistas institucionais logradas no processo constituinte. Destacam-se os poderes requisitórios e coativos ministeriais inscritos em seu art. 8.º (notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada; requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da administração pública direta ou indireta; requisitar da administração pública serviços temporários de seus servidores e meios materiais necessários para a realização de atividades específicas; requisitar informações e documentos a entidades privadas; realizar inspeções e diligências investigatórias; ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio; expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar; ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública e requisitar o auxílio de força policial), ao mesmo tempo em que se veda aos órgãos da administração oporem quaisquer sigilos à requisições ministeriais (“Nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido” – cf. art. 8.º, § 2.º). Na linha do que já se dispusera no art. 10 da LACP, impõe-se a responsabilização de quem recusa ou retarda o cumprimento das requisições do Ministério Público (art. 8.º, § 3.º). Com tamanhos poderes, o membro do Ministério Público responde, entretanto, pessoalmente no foro criminal e cível, pelo uso indevido das informações sigilosas a que tem acesso (art. 8.º, § 1.º).
O quadro que se desenhou para atuação do Ministério Público e para sua relação diferenciada com a administração é, sem dúvida, único no Direito Comparado e resultou no estabelecimento de um órgão forte do Estado, com independência para agir e autonomia para se administrar. Mas, ao longo dos anos, a atuação descompromissada e sem controle de agentes ministeriais, que, de início, se tinha como consagração de seu prestígio, passou a ser vista, por muitos, como um risco para o processo político e a governabilidade. É disso que cuidaremos a seguir.
[1] Cf. iDicionário Aulete, verbete “chefe”, http://aulete.uol.com.br/site. php?mdl=aulete_digital&op= loadVerbete &pesquisa=1&palavra=chefe (acesso 30.1.2012)
[2] A
queixa-crime foi proposta contra Gilmar Ferreira Mendes e o então
procurador-geral da República, José Paulo Sepúlveda Pertence. A esse
processo faz referência o próprio Gilmar Mendes em sua sabatina no
Senado, antes de ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal: “…Questões
indígenas… V. Exª sabe que fui um dos pioneiros dessa controvérsia,
embora esse fato hoje esteja escondido. Como me atribuem a pecha de ser
um homem conservador e há a idéia de que a questão indígena é tema da
área esquerdista, seja lá o que for, não me atribuem nenhum mérito. Fui
eu, com a minha atuação como procurador da República, quem evitou que o
Parque Nacional do Xingu se tornasse, a rigor, terra de particulares,
por isso enfrentei processo na honrosa presença do hoje ministro
Sepúlveda Pertence. S. Exª foi processado por isso também, com
queixa-crime”. Cf. http://www.conjur.com.br/2002- mai-20/conheca_integra_ sabatina_ gilmar_mendes_3?pagina=6 (acesso em 31.1.2012)
[3] Cf.
Portaria PGR n.º 300, de 31 de maio de 1989, baixada pelo então
Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga e publicada
no D.O.U. em 2 de junho de 1989.
[4] Ação
Declaratória n.º 331/89 da 6.ª Vara Federal da Seção Judiciária do
Distrito Federal (Ministério Público federal v. União federal, FunaiI e
Ibama). Cópia da inicial pode ser baixada em http://ccr6.pgr.mpf .gov.br/atuacao-do-mpf/acao- civil-publiva/docs_ classificacao_tematica/ACP_ demarcacao_yanomami.pdf (acesso em 31.1.2012)
[5] Ver
a respeito o parecer editado e publicado em O’DWYER, Eliane Cantarino;
Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e olhar antropológico, Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 1998.
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2a PARTE
Entre Mr. Hyde e Doctor Jekyll: metamorfose do Ministério Público de órgão parceiro e prestigiado para órgão censor, temido e odiado
Não é exagerado dizer-se que o Ministério Público foi vítima de seu sucesso e de seu prestígio inicial. A independência funcional de seus membros e a autonomia administrativa da instituição, que eram seu maior capital, acabaram se revelando, também, como sua maior fragilidade. No mais, ao longo dos anos, parte dos membros passou a se encantar com seu poder de admoestação administrativa. O idealismo orgânico do momento constituinte foi dando lugar à atuação frequentemente individualista, politizada e corporativista. Os embates entre o Ministério Público e outros órgãos do Estado vêm se multiplicando, em parte, por conta da falta de capacidade de membros ministeriais dialogarem e se articularem coordenadamente com suas contrapartes, outras vezes, por conta da inegável inveja que seus poderes, a remuneração de seus agentes e o impacto midiático de suas ações despertam em outras corporações. Nos dias atuais, a fragilidade de ação coordenadora vem levando a instituição ao desgaste crescente. Reproduzir o iter dessa transformação não é tarefa simples, porque os fatores que a induziram são múltiplos e variados e cada um, a depender da qualidade de seu trato com o Ministério Público, pode querer ressaltar mais um ou outro aspecto. Aqui se dará apenas uma interpretação possível desse processo, na perspectiva de quem o tem acompanhado de perto, dentro do Ministério Público Federal.
Em 1992, o Ministério Público Federal, através do procurador-geral da República, ocupou as manchetes dos jornais por vários meses. Assistia-se, pela primeira vez na história do Brasil, a um processo formal de destituição do presidente da República. Investigava-se, pelo Ministério Público e por comissão parlamentar de inquérito mista do Congresso Nacional, o desvio de recursos do caixa de campanha do presidente Fernando Collor de Mello, bem como notícias de corrupção que o envolviam, partidas, inicialmente, de seu irmão, Pedro Collor (“esquema PC”). Decretado o impedimento do presidente pelo Senado Federal em 29 de dezembro de 1992, o procurador-geral da República denunciou Fernando Collor de Mello por formação de quadrilha e corrupção.[1]Ainda que, ao final, o acusado viesse a ser absolvido, o Ministério Público Federal logrou, no episódio, visibilidade e popularidade nunca antes experimentada.
O episódio marcou a história do Ministério Público e deu-lhe nova dimensão. Nota-se, a partir daí, uma tendência menos propositiva e mais “justiceira” na atuação institucional. A popularidade do julgamento moral do governo Collor (já que o julgamento jurídico ficou marcado pelo insucesso ante a absolvição do ex-presidente), por uma instituição que era festejada como guardiã da probidade pública e do Estado de Direito, parece que inspirou outros membros do Ministério Público Federal a reproduzirem, em escala menor, porém frequente, o modelo “justiceiro” de atuação, contando com o aplauso da opinião pública. Cada procurador – nessa linha de atuação – passou a se portar como procurador-geral em menor escala, falando pela instituição como um todo, dando entrevistas, lançando seus disparos contra qualquer autoridade constituída, sem consideração com eventual privilégio de foro, com o grau de imunidade do alvo. A independência funcional, mal entendida, porque dissociada do agir institucional para ser vista como atributo individual, foi erigida em valor absoluto, fazendo sombra à unidade e à indivisibilidade. Essa tendência se reforçou durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando o Ministério Público Federal contou com a liderança frágil do então procurador-geral, que, apesar de nomeado repetidamente para o posto (com um período de exercício recorde de oito anos), carecia de legitimação interna.
Com efeito, ainda que a Constituição não tenha previsto a eleição direta do procurador-geral da República (este é escolhido para o mandato de dois anos, renovável, pelo presidente da República “dentre integrantes da carreira” do Ministério Público Federal, segundo alguns, ou do Ministério Público da União, segundo outros), o período da gestão do procurador-geral nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso foi demonstração cabal de que uma instituição que funciona através de membros independentes só pode ser eficazmente dirigida por quem detenha liderança – isto é, autoridade e aceitação – entre esses membros. Criada a cultura anárquica do individualismo voluntarista entre os integrantes da carreira, o limite, a coordenação e a construção do coletivo só podem ser garantidos por um procurador-geral que seja identificado com um projeto claro de instituição correspondente a consenso mínimo dentro desta. O então chefe do Ministério Público Federal, integrante sênior da carreira do Ministério Público Federal, docente doutor em universidade pública federal, portanto com todos os atributos intelectuais e de experiência profissional para exercer o cargo de procurador-geral da República, não tinha, todavia, influência na atuação de grande parte dos colegas. E sua escolha para o cargo, dissociada da vontade da maioria que se reunia em torno da Associação Nacional dos Procuradores da República, foi rejeitada internamente como diktat do Executivo.
A oposição ao procurador-geral logo se converteu em oposição ao governo que o escolheu, o que levou à politização da atuação do Ministério Público Federal. O procurador-geral tentou impor-se, ora buscando prestigiar economicamente a carreira, ora à base de atitudes centralizadoras. Sem dúvida, seu longo período de gestão ficou marcado pelo significativo aumento de ganhos e da infraestrutura de apoio aos membros do Ministério Público. Em sua gestão foi promulgada a Emenda Constitucional n.º 19, de 1998, que fixou a remuneração dos membros do Ministério Público da União na forma de subsídio, estabelecendo paridade com o Judiciário. Além do contínuo aumento da remuneração ordinária dos membros, estabeleceu-se, por exemplo, a Escola Superior do Ministério Público da União, que, em sua lei de criação, prevê a possibilidade de remuneração de membros por atividade docente.[2] Foram construídas novas sedes para o funcionamento dos órgãos do Ministério Público Federal, sobressaindo a sede vistosa da Procuradoria-Geral da República em Brasília, símbolo da importância da instituição no quadro constitucional. Por outro lado, quando se tratava de iniciativa de membros que tangenciava o centro do poder, o procurador-geral se impunha com avocação: foi assim no famigerado episódio da chamada “pasta cor de rosa”, com supostas provas de movimentações financeiras suspeitas em benefício de pessoas do círculo próximo do presidente da República.[3] A apropriação dos documentos e a sucessiva formulação de pedido de arquivamento do inquérito respectivo pelo procurador-geral no Supremo Tribunal Federal foi razão de seu maior desprestígio interno, passando a ser desairosamente chamado de “engavetador-geral da República”. Reagiu, o chefe do Ministério Público Federal, àquilo que entendia ser a partidarização do Ministério Público, fazendo gestar dispositivo na emenda constitucional da reforma do Judiciário que passaria a proibir a filiação partidária de membros da carreira.[4]
Os movimentos do procurador-geral da República para controlar o Ministério Público Federal não foram bem-sucedidos e não elevaram seu grau de liderança na carreira. Tiveram, porém, o efeito nefasto de legitimar a suposição de que a atitude de risco para com a governabilidade, que alguns membros adotavam em sua atuação, era causa de elevação do prestígio político do Ministério Público, com consequente facilidade de acolhimento de reivindicações classistas. Era evidente que havia relação de causa e efeito entre o esforço do procurador-geral para melhorar a remuneração da carreira e a necessidade de aplacar sua impopularidade politizada dentro da instituição. Assim, alguns poderiam chegar à razoável conclusão de que, quanto mais ousada fosse a atuação ministerial, mais problema traria para o governo e para o procurador-geral por ele nomeado, mais temida seria a instituição, maior seria seu grau de prestígio e maior a tendência do legislador de atender às demandas das campanhas remuneratórias da corporação. A LIA passou a ser poderoso instrumento nessa linha de ação e foi usada para investigar membros do governo que detinham foro privilegiado em matéria criminal. As críticas de setores do governo federal à LIA passaram a ser acerbas e logo se tratou de emendá-la,[5] para evitar o que alguns qualificavam como abusos na atuação ministerial.[6]
A cultura de premiar o risco à governabilidade acabou se cristalizando na política remuneratória do serviço público brasileiro. Seria injusto querer, aqui, acusar esse ou aquele procurador de atuarem com vistas, apenas, a aumentar os ganhos. Não se pretende chegar a tanto. Expressiva maioria dos membros do Ministério Público atua com espírito público e ciosa de seus deveres. Muito mais, essa é uma dinâmica que se impôs macroscopicamente, após anos de tentativa de valorizar economicamente uma carreira que atuava dentro de claro viés político de dificultar ações de governo. O prestígio levou o Ministério Público a ser, por um lado, admirado e, por outro, invejado por outras corporações de carreiras de Estado. Para lograrem ganhos análogos para seus integrantes, outras instituições passaram a replicar a lógica do risco para incremento de ganhos. A disputa por prestígio já muito cedo opôs a Polícia Federal (PF) ao Ministério Público Federal. Ambos sempre reivindicaram a primazia no controle da investigação criminal: o Ministério Público, porque a vê como acessória à ação penal pública, seu monopólio; a polícia, porque tem no inquérito policial seu principal instrumento de trabalho e de visibilidade. Nessa relação de competição, a polícia sempre se recusou a ser tratada como órgão subalterno ou controlado pelo Ministério Público. A corporação dos delegados da PF obstaculizou eficientemente o trâmite do projeto de lei complementar que se converteria na LOMPU, buscando tornar inócua a atribuição do Ministério Público de controlar externamente a atividade policial. A tática funcionou e, para o projeto ser aprovado no Congresso Nacional, foi necessário acordo que esvaziou o capítulo do controle. E, até hoje, em ações de impacto midiático, ainda que a PF esteja eventualmente atuando em decorrência de iniciativa do Ministério Público Federal, a corporação dos delegados logra apresentá-las à opinião pública como mérito exclusivo seu, desagradando muitos procuradores.
Mas, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Ministério Público passou a ter um novo concorrente de peso com a advocacia pública. Seu chefe maior era integrante da carreira do Ministério Público Federal, da qual se afastara para ter exercício no Executivo e no Legislativo; conhecia bem sua instituição de origem e passou a confrontá-la severamente. A transformação de procuradores autárquicos em procuradores federais – antiga reivindicação daquele setor da advocacia pública, resistida pela corporação do Ministério Público – obedeceu à tática de multiplicar o número de carreiras com nomes parecidos, para confundir o público e, com isso, diluir a importância dos procuradores da República. A advocacia pública foi concentrada e organizada sob o controle da poderosa Advocacia-Geral da União, um ex-adverso de peso para o Ministério Público em suas ações contra o governo. Entre as instituições, a disputa não foi só pelo prestígio público das carreiras, mas, também, por espaços de atuação, principalmente no âmbito da ação civil pública – para cuja propositura a advocacia pública é igualmente legitimada –[7] e na cooperação jurídica internacional. Usar a advocacia pública como contrapeso ao Ministério Público podia atender às demandas momentâneas de redução de riscos à governabilidade, mas, como efeito deletério permanente para o Estado brasileiro, resultou em sua fragmentação com competências conflitantes, tal e qual já ocorria e ocorre entre o Ministério Público e a polícia, no tocante à investigação criminal. Essa fragmentação enfraquece a ação do Estado e o torna refém das reivindicações corporativas. É o caso, por exemplo, na cooperação internacional, da assistência jurídica recíproca em matéria penal, matéria que tanto o Ministério Público quanto a advocacia pública reivindicam para seu âmbito de atribuições. Se uma – a advocacia pública – visa, com ela, a se afirmar como braço jurídico externo exclusivo do Estado e a se igualar ao Ministério Público como ator persecutório, outro – o Ministério Público – pretende ter peso nas relações internacionais e moldá-las dentro de sua peculiar perspectiva, num mundo em que a criminalidade se organiza em escala global. Quem sofre nessa disputa, sempre, é o Estado como um todo, cuja credibilidade se vê diminuída por seus agentes, que se digladiam publicamente nos foros internacionais.
Até hoje, a lógica da atuação de risco como condição de prestígio corporativo segue firme. E, na consequência, as corporações de diversas instituições de Estado disputam o espaço capaz de gerar risco, tendo como paradigma de sua ação o modelo que marcou o fortalecimento da corporação dos procuradores da República. Mais recentemente, se assiste ao fortalecimento da Defensoria Pública da União, órgão que, pela Constituição (art. 134, caput), está incumbido da “orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”. Pela Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, tratou-se de lhe conferir autonomia administrativa à semelhança do Ministério Público da União (cf. art. 134, § 2.º, da Constituição). Depois, com a revisão de sua lei orgânica (Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994, revisada pela Lei Complementar n.º 132, 7 de outubro de 2009, ou LODPU), logrou incorporar algumas das atribuições que originalmente eram típicas do Ministério Público, como a propositura da ação civil pública e a atuação ampla em defesa de direitos e interesses difusos e coletivos. A lógica legislativa de alargamento das atribuições da Defensoria era de economia processual (cf. art. 4.º, VII, da LODPU); afinal, cuidando de ampla defesa de hipossuficientes, por que obrigar a Defensoria a propor inúmeras ações individuais, quando poderia ter maior eficiência em propondo uma única ação coletiva beneficiando universo mais extenso de pessoas? De qualquer sorte, na prática, essa expansão das atribuições da Defensoria Pública implicou a introdução de mais um agente de risco no espaço de litigância contra o Estado. Em diversas iniciativas de ações coletivas recentes, a Defensoria Pública da União não se tem limitado a defender os “necessitados”, como lhe incumbe a Constituição, mas tem tratado de mimetizar o Ministério Público, com este trombando publicamente e criando situações embaraçosas para o administrador.[8] Há alguns episódios recentes notórios. Assim, por exemplo, quando da campanha de vacinação contra a gripe aviária, em 2009-2010, o Ministério Público Federal recomendou que fossem privilegiados, na imunização, os idosos e as crianças; em direção oposta, a Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro recomendou às autoridades de saúde pública que não dessem qualquer preferência, devendo vacinar todos indiscriminadamente. Em momento nenhum se tratava, aqui, da defesa de hipossuficientes, mas de garantir amplamente direitos no contexto de uma ação de política pública na área de saúde. Da mesma forma, quando, em 2011, veio a lume o vazamento das provas do Exame Nacional de Ensino Médio numa escola particular no estado do Ceará, o Ministério Público Federal recomendou a anulação da prova vazada em todo o território nacional, enquanto, em iniciativa paralela e conflitante, a Defensoria Pública da União no Ceará recomendou que somente os alunos da escola particular é que deveriam refazer a prova. Não havia, entre os alunos afetados, nenhum necessitado ou hipossuficiente, para justificar a atuação indiscriminada da Defensoria Pública da União. Depois, também em 2011, ainda no Ceará, a Defensoria Pública da União promoveu judicialmente a anulação de prova objetiva do concurso para a carreira de procurador da República, à consideração de que algumas questões teriam sido formuladas fora do programa do edital. Igualmente, nesse episódio, não estava em jogo nenhum direito ou interesse de necessitado ou hipossuficiente. Muito mais, as iniciativas da Defensoria Pública da União têm sido marcadas pelo confronto permanente com o Ministério Público Federal, não só para apropriar-se de atribuições deste, mas, sobretudo, para marcar posição em pé de igualdade com a instituição que vê como concorrente. Não é por outro motivo que, desde 2009, vem se acirrando polêmica sobre a posição do Ministério Público nas salas de audiência da Justiça Federal (que, por força do art. 18, I, (a), da LOMPU, é à direita do juiz), a ponto de o Conselho Nacional do Ministério Público ter que se manifestar a respeito. Por mais adjetiva que possa parecer a questão, o que importa não é o assento do Ministério Público em si, mas a simples persistência de um conflito que é mais de cunho intercorporativo do que inspirado no interesse público. A vítima desse confronto entre instituições é, mais uma vez, o Estado, a governabilidade, a administração e o interesse público, pois se está, aqui, a assistir a intervenção distorcida em políticas e ações públicas, sem qualquer correlação com a garantia de direitos ou a maior eficácia da governança. Deslegitima-se a ação do protagonista natural do processo político, o Executivo democraticamente eleito, para valorizar uma ou outra carreira burocrática aos olhos da opinião pública.
A contínua disputa entre instituições relevantes do Estado por espaço de atuação com impacto midiático e a ânsia de alguns membros do Ministério Público e de defensores públicos de mostrar musculação capaz de interferir na governança – com evidente busca de prestígio que os valoriza para as reivindicações de classe – têm o potencial de enfraquecer sobremodo a capacidade de ação da administração pública na execução de políticas necessárias para o desenvolvimento do País. Obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), da Copa do Mundo ou da expansão da matriz energética são alvos frequentes das ações dessas instituições, com comprometimento das metas que as orientam. Não que o Ministério Público não deva exercer seu controle de legalidade sobre as ações da administração; deve fazê-lo, porém, sem perder a disposição ao diálogo, à parceria, sem querer reivindicar justiceiramente um monopólio do espírito público que não lhe pertence. Não deve, com seu controle, inviabilizar escolhas políticas e bloquear sua execução, mas garantir qualidade e eficiência no processo e no resultado, dentro do marco legal existente.
Na contramão desse desiderato, um dos problemas internos graves que o Ministério Público Federal enfrenta na atualidade é a resistência de boa parte de seus membros a iniciativas que visam a garantir coordenação, organicidade e consistência à atuação institucional. Continua, hoje, a tendência a se superestimar a independência funcional como prerrogativa individual, em detrimento da unidade e da indivisibilidade. A recusa de dar seguimento às orientações e às diretrizes dos órgãos centrais – Câmaras de Coordenação e Revisão e, também, o Conselho Superior – colocam em cheque o governo do Ministério Público. Por outro lado, em sendo os integrantes do maior colegiado de governo – o Conselho Superior – eleitos pelo Colégio de Procuradores,[9] é compreensível que evitem marcar posição contramajoritária. A incapacidade dos órgãos de governo institucional de se imporem na coordenação do coletivo reforça o individualismo e o voluntarismo na atuação ministerial.
Ao agir de forma “justiceira”, descoordenada e politizada, o Ministério Público arrisca a posição que hoje ocupa no quadro constitucional. Arrisca sua aceitabilidade pública, pois vai perdendo espaço de diálogo, talvez, até mesmo, em benefício de outras instituições que com ele rivalizam, como a Defensoria Pública, que ainda não passaram pelo natural processo de desgaste no confronto com os poderes constituídos. As tentativas de amordaçar os membros do Ministério Público por projetos de lei que visam a lhes limitar ou vedar o acesso à comunicação social são recorrentes e são a mostra prática da rejeição da aparição pública da instituição por importantes atores políticos.[10] Impõe-se a reflexão interna equilibrada para garantir que o Ministério Público possa continuar a cumprir sua missão constitucional, sem ser visto como risco à governabilidade.
É importante que o Ministério Público, ao invés de confrontar com as instâncias políticas ou de formulação política, reconheça a legitimidade do processo político e busque apoiá-lo. Quando se recusa a fazer parte desse processo – muitas vezes por vê-lo como intrinsecamente viciado, outras vezes, porque o confronto eleva seu cacife de risco –, passa a se conduzir num mundo à parte que privilegia a instância da decisão burocrática, como a mais pura, a menos “contaminada”. A rejeição do político, entretanto, é autoritária, é a rejeição, também, da democracia como forma de governo, em que decisões sobre o que é melhor para o coletivo são tomadas por quem tem voto popular e não por quem passa num concurso público. E, por mais que se queira apartado do mundo dos políticos, o Ministério Público age politizadamente ao fazer oposição cerrada a determinadas opções governamentais. Só que esse agir politizado carece de legitimidade, porque desconsidera as instâncias decisórias do governo democrático. Talvez padeça, por vezes, o parquet, de certa aporia com o mundo externo, que o vai sufocando aos poucos, confinado dentro de sua dinâmica interna peculiar, sem se aperceber que sua imagem vem se desgastando ao longo do tempo em importantes setores do Estado e, até, da sociedade.
Em conclusão serão delineados alguns pontos para essa reflexão, que, embora deva se iniciar no seio do próprio Ministério Público, urge ser feita também pela sociedade, pelos atores políticos que outrora apoiaram o fortalecimento da instituição. A Constituinte fez uma opção por um órgão parceiro, entre a sociedade e o Estado, com amplos poderes e independência para litigar com este, se a realização de interesses coletivos e difusos assim demandasse. Esse papel do Ministério Público é fundamental num país em que a ineficiência administrativa e as promessas eleitorais não cumpridas são a marca histórica do governo. Mas, para resgatar a posição original da instituição, algumas correções de rumo são necessárias e devem atingir a própria estrutura das carreiras de Estado, bloqueado pelas competições intercorporativas.
Resgatando o Ministério Público parceiro dentro da reforma do Estado
A competição intercorporativa e a atuação com vistas à maximização do risco à governabilidade, que mudaram a cultura institucional do Ministério Público ao longo dos anos, têm sido causadas, em grande parte, pela profunda desorganização da estrutura de ganhos no serviço público brasileiro. Do caldo anárquico das reivindicações desencontradas de carreiras de Estado, que acaba por beneficiar quem consegue se fazer ouvir por iniciativas potencialmente comprometedoras das ações de governo, nasce a tendência ao concurseirismo, a atração que certas carreiras exercem nos jovens profissionais, por remunerarem bem e serem socialmente prestigiadas, sem necessária fidelidade às instituições. Pagando-se melhor alhures, abandona-se a carreira de menor remuneração para abraçar a outra, mais vantajosa. E, uma vez admitido nos quadros da instituição, busca-se a vantagem pessoal, a movimentação rápida de postos de sacrifício para outros mais próximos das capitais. Para tanto, cobra-se dos órgão de governo institucional realização de novos concursos com aprovação em massa de novos colegas – uma verdadeira política de porteira aberta para o “estouro de boiada” – para beneficiar a mobilidade dos que estão na periferia da carreira. A qualidade do recrutamento é de somenos importância para o concurseiro. Tem-se, então, a mistura altamente explosiva da atuação temerária das instituições com o recrutamento interesseiro, gerando um Estado refém das pressões de seus agentes, fragmentado e incapaz de cumprir sua missão.
O mal que acometeu o Ministério Público é, por isso, um mal que compromete o Estado e não pode ser resolvido somente dentro do Ministério Público. A qualquer observador estrangeiro salta aos olhos o contraste entre ganhos das diversas carreiras do serviço público. Chega a ser escandaloso um professor titular de universidade pública em dedicação exclusiva receber, como remuneração mensal, em torno de R$ 12 mil reais,[11] um ministro de primeira classe da carreira diplomática (embaixador) receber cerca de R$ 18 mil[12] e um recém-concursado membro do Ministério Público ou magistrado receber mais de R$ 22 mil,[13] aqui considerada a renda bruta. Há evidente desproporção que funciona como catalizador do movimento por paridade de outras carreiras, principalmente as carreiras jurídicas. É esse o princípio da competição intercorporativa e da fragmentação estatal, que acaba por premiar aqueles que representam maior risco para a governabilidade.
Para superar esse problema em sua raiz, conviria, por via de um pacto entre poderes, estabelecer matriz lógica transversal de remuneração no serviço público, calcada em quantitativos de risco pessoal do agente e complexidade da formação e das funções para cada carreira, à semelhança do que ocorre em outros países. Nessa matriz, as carreiras jurídicas – ministério público, defensoria pública, advocacia pública e magistratura – deveriam, rigorosamente, ter trato isonômico, para afastar a competição entre si. Ademais, a matriz deveria pressupor sistema único de administração de pagamento de pessoal, como o SIAPE,[14] com critérios homogêneos e transparentes. Esse sistema único não atentaria contra a autonomia administrativa de instituições como o ministério público a defensoria pública, nem contra a separação de poderes, eis que cada órgão poderia alimentar sua parte na base de dados autonomamente, seguindo critérios pactuados. Para despolitizar as bases reivindicatórias, seria recomendável destacar os ganhos do serviço público daqueles auferidos pela cúpula dos poderes, desde já estabelecendo que os subsídios do presidente da República, do vice-presidente da República, dos ministros de Estado, dos deputados, dos senadores e dos ministros do Supremo Tribunal Federal não podem servir de referência à remuneração do restante do serviço público. É que esses ganhos têm servido de “locomotiva” política que traciona o processo de aumentos. Os cargos do topo da matriz seriam o de ministro do Superior Tribunal de Justiça, presidente do Banco Central, diretores-gerais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, reitores de universidades, ministros de primeira classe da carreira diplomática e por aí vai. Os cargos abaixo destes guardariam, todavia, proporção com seus ganhos, seguindo os vetores de risco e complexidade da função. Com uma reforma desse teor, que poderia ser executada em prazo maior de quatro ou cinco anos para o encontro de contas, esvaziar-se-ia o poder reivindicativo das corporações de carreira de Estado, que passariam a se submeter a critérios de ganhos gerais de todo o serviço público federal. As associações isoladamente perderiam seu poder de fogo, porque não haveria mais espaço para aumentos singulares. No mais, sem disparidades entre os ganhos, desapareceria a tendência ao concurseirismo, para fixar os profissionais nas carreiras segundo sua vocação.
Num segundo momento, estabelecida a base racional da remuneração das carreiras, poder-se-ia discutir sua arquitetura funcional, a distribuição de tarefas e funções entre elas, já que a causa econômica da competição intercorporativa desapareceria. Seria importante divisar as atribuições do Ministério Público das de outras instituições, para que o Estado pudesse dizer e agir de forma consistente. A distribuição de funções deveria ter como critério a conveniência do jurisdicionado ou administrado e não a das carreiras. Provavelmente as resistências à definição geográfica de atribuições seria menos resistida, porque dela não adviria vantagem econômica.
Internamente, no Ministério Público, eventual reestruturação deve ter por objetivo seu melhor governo e sua maior inserção no processo político. Como princípio de organização, impõe-se resgatada a hierarquia prevista no texto constitucional, que qualifica o procurador-geral da República como “chefe” da instituição. Chefe não é “colega” em relação horizontal com os demais membros. Ainda que não se lhe dê poderes avocatórios, tem, ele, sim, posição hierarárquica diferenciada. Esta se reflete, verbi gratia, na representação externa da instituição e mesmo em atos mais comezinhos, como a autorização de afastamentos, os atos de lotação, a concessão de diárias e passagens e a comunicação procedimental com autoridades de foro privilegiado. Para que o Ministério Público cumpra sua missão constitucional de forma orgânica e consistente, cumpre, ainda, fortalecer os órgãos colegiados de coordenação e direção, conferindo aos primeiros, expressamente, poder normativo. No Conselho Superior, o procurador-geral não pode ficar sujeito às maiorias de conveniência da base, fazendo-se necessária a recomposição do colegiado, para dar-lhe condições de governar, ainda que contramajoritariamente. A legitimidade do procurador-geral da República está em sua escolha pelo presidente da República e em sua aprovação pelo Senado Federal, expressões da soberania popular, não está na sua maior ou menor aceitabilidade para o público interno. É de todo recomendável, como critério político apenas, que a escolha presidencial recaia sobre quem tem liderança entre os membros do Ministério Público, mas deles não sendo refém.
No que diz respeito à inserção do Ministério Público no processo político, é conveniente arejar a instituição, para superar a aporia que a confina em sua dinâmica interna. Para isso, basta considerar que a cúpula da instituição – os subprocuradores-gerais –, por mais que tenham logrado posição hierárquica e de ganhos alinhada com os ministros do Superior Tribunal de Justiça, não passam pelo mesmo complexo processo de recrutamento destes. Quiçá não fosse o caso de instituir quinto constitucional entre os subprocuradores-gerais, permitindo a magistrados e advogados que venham a integrar a instituição nesse patamar; de incluir membros do Ministério Público Estadual como naturais aspirantes a esse cargo em cota própria e de submeter a lista tríplice de escolha dos candidatos à promoção à Presidência da República, para posterior sabatina pelo Senado Federal? Com essa simetria de arquitetura entre a Procuradoria-Geral da República e o Superior Tribunal de Justiça se permitiria elementos externos à corporação se agregarem a seu governo, conferindo-lhe maior permeabilidade política. O Conselho Superior, então, seria, em analogia com a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, composta de fração de subprocuradores-gerais mais antigos, sem o elemento eletivo interno que torna o colegiado refém das maiorias eventuais. Essas sugestões seguramente não são populares internamente, mas são uma tentativa necessária de resgatar o o Ministério Público, com plena funcionalidade, para ocupar seu lugar de destaque no estado brasileiro, sem inviabilizar-lhe a governabilidade.
[1] Cf.
Ação Penal n.º 307, do Supremo Tribunal Federal (Ministério Público
Federal v. Fernando Afonso Collor de Mello e outros), rel. Min. Ilmar
Galvão, julg. 13.12.1994, in RTJ v. 162, pp. 3-340.
[2] Ver
art. 8.º da Lei n.º 9.628, de 14 de abril de 1998, que “dispõe sobre a
criação da Escola Superior do Ministério Público da União e dá outras
providências”.
[3] Cf.
Inquérito n.º 1.158-4/DF do Supremo Tribunal Federal (investigados
Ângelo Calmon de Sá e Antônio Ivo de Almeida), com pedido de
arquivamento do Procurador-Geral da República de 22.2.1996
[5] Cf.
Medida Provisória n.º 2.225-4 , de 4 de setembro de 2001; na
jurisprudência, a crítica é quanto ao uso da ação de improbidade contra
quem detenha foro por prerrogativa de função em matéria criminal. Apesar
de o Superior Tribunal de Justiça ter majoritariamente firmado sua
posição sobre a inexistência de foro privilegiado em ação de
improbidade, a discussão não está encerrada no Supremo Tribunal Federal.
No julgamento da RCL 2.138 (julg. 13.6.2007) ficou assentado que
Ministros de Estado não se submetem ao regime da LIA, por terem regime
de responsabilidade próprio na Constituição (art. 102, I,(c)) e na Lei
n.º 1.079/1950. Depois, no julgamento da Questão de Ordem na Petição
n.º 3.211, em março de 2008, o STF decidiu que lhe competia julgar ação
de improbidade contra seus próprios membros: ”Questão de ordem. Ação
civil pública. Ato de improbidade administrativa. Ministro do Supremo
Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência da Corte para processar e
julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns. 1. Compete ao
Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros.
2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa
dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais”.
[6] O Min. Gilmar Mendes, segundo consta, atacou: “A história da ação de improbidade é uma história de improbidades”. Leia-se a respeito, em defesa do ministério público, artigo de Nicolao Dino, Balanço entre acertos e desacertos é favorável ao MP, in Consultor Jurídico, ed. 15.1.2007 (http://www.conjur.com.br/ 2007-jan-15/balanco_entre_ acertos_desacertos_fa... – acessado em 31.1.2012).
[7] Cf.
art. 5.º, III, da LACP atribui legitimidade à União, aos estados e aos
municípios, por óbvio, através de seus órgãos de defesa.
[8] A respeito do conflito entre ministério público e defensoria pública leia-se eartigo de Glaucia Milício, Defensoria e MP vivem em conflito de competência, in Consultor Jurídico, ed. 18.10.2009, http://www.conjur.com.br/2009- out-18/defensoria-publica- ministerio-publi... (em 31.1.2012).
[9] Cf.
art. 53, III, da LOMPU atribui ao Colégio de Procuradores da República –
de que participam todos os membros da carreira em atividade – a eleição
de quatro dos dez membros do Conselho Superior do Ministério Público
Federal; outros quatro são eleitos pelos Subprocuradores-Gerais da
República por força do art. 54, III, da LOMPU. Fazem parte, ademais, do
Conselho, o Procurador-Geral da República, que o preside, e o
Vice-Procurador-Geral, como membros natos.
[10] A
derradeira iniciativa foi o Projeto de Lei n. 1947, de 2007, de autoria
do deputado sandro Mabel, que tipifica o crime de violação de sigilo
investigatório. O projeto está pronto para ser incluído na pauta do
Plenário. Em sua justificação, o autor da proposta explica seu intento: “A
sociedade brasileira vem assistindo impotente inúmeros casos de
“denuncismo” vazio, que após processos judiciais equilibrados, e após o
exercício do contraditório, acabam por concluir pela inocência das
pessoas envolvidas. Mas o mal à honra e boa fama dessas pessoas já foi
feito e muitas vezes parte de quem teria como atribuição legal proteger
os cidadãos: autoridades policiais, membros do Ministério Público e até
mesmo do Poder Judiciário, quando essas autoridades dão entrevistas ou
vazam informações à imprensa ainda nos primórdios das investigações.
Para tornar essas autoridades mais atentas à necessidade de proteger a
intimidade, mesmo de pessoas que estejam sendo investigadas, mas ainda
não declaradas culpadas de qualquer ilícito, é preciso tipificar como
crime a divulgação de procedimentos investigatórios. Muitas vezes tais
procedimentos viram assunto da mídia, que alardeia culpas que anos
depois não se comprovam em juízo, mas as pessoas, embora absolvidas, são
tratadas socialmente como culpados, porque bastou a investigação e a
entrevista da autoridade para condená-los perante a opinião pública. Via
de regra, não há repercussão da tardia declaração de inocência,
acarretando assim dano irreparável à vida dos envolvidos. Pouco adianta
para a vida dessas pessoas injustamente condenadas à execração pública
que seja possível depois receber indenização pelo dano moral ou à
imagem. É preciso impedir o dano injusto antes que ele
aconteça e a pessoa inocente tenha sua vida irremediavelmente
prejudicada. Embora a Constituição Federal estabeleça como regra, em seu
art. 5º, LX, que a lei não pode restringir a publicidade de atos
processuais, a não ser que o interesse público assim dite, esta norma
que propomos não trata de atos em sede processual, mas sim de
procediment
os investigatórios pré-processuais. Adotando a tipificação que ora propomos, estaremos resguardando a presunção de inocência, princípio garantidor das liberdades individuais, basilar em nossa Constituição Federal. Pelo exposto, conclamamos os Nobres Pares a aprovarem esta proposição”
os investigatórios pré-processuais. Adotando a tipificação que ora propomos, estaremos resguardando a presunção de inocência, princípio garantidor das liberdades individuais, basilar em nossa Constituição Federal. Pelo exposto, conclamamos os Nobres Pares a aprovarem esta proposição”
[11] Cf.
Edital n.º 6/2012 da Reitoria da Universidade Federal do Paraná de
abertura de concurso público para professor titular, apontando
vencimento de 11.700 reais mensais (D.O.U. Seção 3, de 5.1.2012, pp.
65-66)
[12] A
tabela de remuneração da carreira diplomática prevê o subsídio de
18.478 reais mensais para embaixador, desde 1.º julho de 2010. Cf. site
da Associação dos Diplomatas Brasileiros, http://www.adb.org.br/ultimas/ ultimas01.htm (em 30.1.2012).
[13] O
subsídio dos membros do Ministério público da União segue atualmente os
índices que foram fixados pela Lei n.º 12.042, de 8 de outubro de 2009,
importando cerca de 22.000 reais para o cargo de início da carreira.
[14] O SIAPE (“Sistema
Integrado de Administração de Recursos Humanos”) foi criado pelo
governo federal em 1989 com o escopo de conseguir estabelecer, com
exatidão, o quanto era dispendido com o pagamento de pessoal. Hoje está
regulamentado pelo Decreto n.º 6.386, de 29 de fevereiro de 2008.
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