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Justificando, 7 de março de 2016
A condução coercitiva de Lula e a economia moral de ilegalidades
Por Salah H. Khaled Jr.
Não discutirei aqui a legalidade da condução coercitiva do ex-presidente Lula. Penso que o debate em torno dessa questão foi vencido de forma exaustiva por todos que abertamente manifestaram sua posição de compromisso incondicional com os direitos e garantias fundamentais. Não faria sentido fazer aqui um balanço das precisas críticas de Geraldo Prado, Rubens Casara, Lenio Streck, Edson Baldan, Aury Lopes Jr, Pedro Serrano, Gustavo Badaró e tantos outros. Caso o leitor não tenha tido contato com a argumentação dos referidos juristas, sinta-se remetido para as respectivas colunas e perfis nas redes sociais.
Minha estratégia analítica é outra. Discutir o sentido, ou seja, a racionalidade por trás do emprego da medida em questão, seus artifícios discursivos de justificação e a dinâmica midiática de circulação de desinformação sobre o tema. O que refiro como sentido que delineou a ação em questão é relativamente óbvio, uma vez que claramente existia uma intenção subjacente: a condução coercitiva do ex-presidente Lula não visava a sua simples oitiva, já que o convite não foi sequer feito. Ela foi literalmente empregada como recurso para ilegalmente constranger a liberdade de locomoção do ex-presidente durante algumas horas, o que para parcela significativa da comunidade jurídica – surpreendentemente – parece algo justificável e aceitável.
Não é tarefa simples tentar compreender as razões que poderiam ter motivado o emprego de um artifício tão questionável e menos ainda as eventuais justificativas por trás de algo tão flagrantemente ilegal. Seria extremamente fácil reduzir tudo a um desavisado maniqueísmo que pouco poderia contribuir para a compreensão da lógica por trás dos movimentos dos vários atores sociais no tabuleiro em questão.
Reconheço que é inteiramente possível que me falte clareza analítica. Não tenho a pretensão de demarcar de forma absolutamente precisa os atalhos de uma racionalidade que me escapa e, mais do que isso, me causa náuseas. Minhas predileções processuais penais e democráticas me colocam imediatamente no espectro dogmático oposto. E isso talvez baste para que meu texto seja lido com algum nível de suspeita, o que compreendo plenamente.
Dito isso, minha apreciação dos últimos meses indica que estamos presenciando um exercício tático e coordenado, que pela sua complexidade e pluralidade de atores, sugere a existência de uma verdadeira economia moral que favorece a contínua prosperidade de inúmeras ilegalidades, esparramada institucionalmente e midiaticamente em diversos campos de atuação.
Explico o que quero dizer com a expressão economia moral, que tomo emprestada – com certo acréscimo criativo de sentido – de um historiador chamado E.P. Thompson. Não seria razoável simplesmente demonizar os vários atores envolvidos na Operação Lava-Jato. A demonização retrataria tais sujeitos como pessoas deliberadamente engajadas em um empreendimento de desestabilização da República, violação da legalidade e comprometimento da própria democracia. Sinceramente não acredito que é o caso. Os diferentes agentes envolvidos operam no âmbito de um consenso sobre a finalidade eleita e o que são práticas legítimas e ilegítimas para a consecução dessa finalidade. Esse arcabouço ideológico faz com que práticas visivelmente autoritárias sejam percebidas como legítimas e coerentes pelos seus praticantes. Cada passo rumo ao objetivo eleito reforça os laços de solidariedade e gera ainda mais coesão dentro de um grupo que sinceramente trabalha para um objetivo comum, que é o combate à corrupção.
Com o passar do tempo, as convenções sociais que conformam a dinâmica de circulação tática da Operação Lava-Jato fazem com que os laços entre os protagonistas de diferentes funções se estreitem. Surge uma lógica de colaboração e cooperação que inevitavelmente acaba produzindo uma sobreposição de papéis e indistinção de funções que impulsiona o cometimento de ilegalidades em nome do fim nobre eleito como desejável. Finalmente, para a consecução dessa finalidade, os laços entre os participantes da Operação Lava-Jato e a maquinaria midiática de produção da verdade são estreitados de forma até então impensável. A grande mídia funciona como verdadeira aliada da Operação: atua como seu braço publicitário e contribui ativamente para a obtenção de um apoio popular que é tido como elemento essencial para a continuidade da persecução e seu eventual êxito.
A dinâmica cultural que refiro como economia moral de ilegalidades conspira para uma receita particularmente destrutiva: vazamentos seletivos, violações de direitos fundamentais travestidas como artifícios legais, coberturas tendenciosas e instrumentalidade processual do espetáculo são alguns dos algoritmos que demarcam sua assustadora ferocidade. O conjunto de efeitos de sedução e coerção é tão extensivo e abrangente que a compilação de medidas empregadas pelo aparato em questão é tarefa praticamente impossível. Mas tudo indica que ele é propositalmente movimentado e estruturado para a consecução de um objetivo final, que não é outra coisa que a obtenção da joia da coroa: ninguém menos que o próprio Lula. E para isso qualquer medida é aceitável: pouco importa se ela implica violação explícita da Constituição ou não. Em sua grande maioria, tenho certeza que atuam com a crença de que fazem o certo. E por isso mesmo são tão perigosos. O empreendedor que conduz uma cruzada moral legitimamente crê que faz o que é certo. Pensa que seu arcabouço moral conforma uma expressão de verdades inequívocas e universalmente aceitas, ainda que elas sejam flagrantemente contrárias ao que outros possam assumir como verdadeiro e inclusive constitucional e convencional.
Antes que alguém desqualifique a argumentação como "petralha" digo de forma clara: não, ninguém está acima dos rigores da lei. Todos podem e devem ser investigados. E eventualmente punidos dentro das regras do jogo do devido processo legal. Inclusive o ex-presidente Lula, se for o caso. Isso não significa – não pode significar jamais – que o combate à corrupção possa tornar aceitável o descumprimento da Constituição. O meu horizonte não é nem nunca será de defesa incondicional de um político ou partido político em particular. Jamais fui e provavelmente jamais serei filiado a qualquer partido político. A questão é definitivamente outra. De legalidade. Digo isso sabendo que muitos – cegos pela raiva – insistirão que o que motivou a própria escrita do texto é a defesa incondicional que digo não fazer. Mas evidentemente não posso controlar as interpretações alheias, o que está para além das minhas forças.
Feitos os esclarecimentos, penso que a condução coercitiva do ex-presidente Lula comporta pelo menos três possíveis leituras, que são inteiramente complementares:
a) foi uma
espécie de ensaio geral para a estocada final, que visou testar as águas
da possível reação popular diante de uma eventual prisão propriamente
dita;
b) é uma
nítida demonstração de força, cujo sentido consiste na intenção de
quebrar o próprio espírito do "inimigo" que é potencialmente o alvo
maior da própria Operação;
c) A
intervenção direta no corpo do ex-presidente tinha a intenção de criar
condições para o sucesso de uma concepção de "interrogatório" que
consiste em uma espécie de jogo no qual o inquisidor tem a intenção de
extrair a "verdade" do objeto da inquirição. Nada poderia estar mais
distante do que a oitiva como oportunidade de fala para alguém que é
objeto de suspeita.
Falarei rapidamente sobre cada uma dessas considerações.
A primeira delas é suficientemente clara. Para uma concepção processual do inimigo que efetivamente integra a "opinião pública" ao exercício da própria jurisdição, é essencial medir a capacidade de reação do adversário, ou seja, testar a sua capacidade de reação no espaço público que é assumido como essencial para a bem sucedida consecução do combate à corrupção. E isso é plenamente justificável ideologicamente, o que autoriza o emprego de força, no sentido concreto e simbólico do termo.
Para que o sucesso seja alcançado, é preciso impor a quantidade necessária de choque e pavor para tornar o inimigo impotente, o que exige emprego de táticas voltadas para a obtenção de efeitos físicos e psicológicos. O domínio psicológico consiste na habilidade de destruir, derrotar e neutralizar a capacidade de um adversário resistir: o alvo é a sua vontade, percepção e compreensão.
Não é por acaso que a doutrina do Shock and Awe alcançou enorme popularidade: seus autores sustentam que a dominação rápida pode proporcionar de forma mais efetiva e eficiente os objetivos militares ou políticos subjacentes ao uso da força, tornando o adversário completamente impotente. Como referi anteriormente, os efeitos da condução coercitiva de Lula extrapolam o sentido jurídico: visivelmente existe uma intenção política de apreciação de capacidade de reação do adversário e obtenção de apoio junto à população. Não custa lembrar que o juiz Sérgio Moro publicamente sustentou que "[...] esses casos envolvendo graves crimes de corrupção, envolvendo figuras públicas poderosas, só podem ir adiante se contarem com o apoio da opinião pública e da sociedade civil organizada. E esse é o papel dos senhores".
Eu poderia aqui desenvolver uma argumentação desconstruindo a ideia de que deve existir qualquer enlace entre judiciário e opinião pública, o que é ainda mais grave quando referido por um juiz específico, que conduz um processo em particular. Mas isso fugiria do tópico da coluna. Prefiro me ater ao essencial. O fato é que a economia moral a qual ele adere abertamente permite isso, o que é condizente com o núcleo de pensamento autoritário que faz parte do universo de crenças do juiz em questão.
Foi bem sucedida a ação? Eu não arriscaria um palpite. Examinar a subjetividade do ex-presidente Lula extrapola o propósito desta simples coluna, como também não tenho condições de avaliar qual o efeito sobre a opinião pública. Mas tenho certeza que o leitor consegue perceber a conexão que sugiro aqui como provocação. E ela é ainda mais pertinente quando o enfoque é deslocado para o desenlace midiático da Operação. Existe uma diferença significativa entre as táticas de "Choque e Pavor" militares e as estratégias empregas pelo complexo midiático-jurídico da Operação Lava-Jato.
A doutrina do Shock and Awe indica que o principal mecanismo para obter o domínio é a imposição de condições suficientes de "Choque e Pavor" para convencer ou compelir o inimigo a aceitar metas estratégicas e objetivos militares. Para isso, informações erradas, mentiras, confusão, negação seletiva de informação e desinformação, possivelmente em grandes quantidades, devem ser disseminadas.
De fato, a maquinaria da Lava-Jato emprega táticas análogas, mas com uma diferença substancial: o esforço de disseminação de "informações erradas, mentiras, confusão, negação seletiva de informação e desinformação" é voltado para a opinião pública, que é "produzida" pela opinião publicada que conforma o braço midiático da Lava-Jato e deflagra uma verdadeira operação de inteligência de guerra contra a população que deveria – na medida da objetividade possível – informar. Em última análise isso pode significar que a Lava-Jato trata a própria população como inimiga: como receptáculo de um discurso violento e que vulnerabiliza direitos fundamentais, que como se sabe, não são dos "outros": são de todos nós.
Finalmente, o sentido do interrogatório para a economia moral que explicitei anteriormente. Peço licença ao leitor para recorrer a Foucault: o interrogatório está muito próximo dos antigos desafios germânicos. Ele se liga às ordálias, aos duelos judiciais, aos julgamentos divinos, pois o juiz deve submeter o acusado, deve triunfar sobre ele: no suplício do interrogatório objetiva-se obter um “[...] indício, o mais grave de todos – a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitória do adversário sobre o outro que ‘produz’ ritualmente a verdade”.[ii] Como conclui Foucault, “a tortura para fazer confessar tem alguma coisa de inquérito, mas também tem de duelo”.[iii] O interrogatório conforma um jogo no qual o inquisidor deve triunfar sobre o inimigo tido como objeto do conhecimento. O que o move não é outra coisa que insaciável ambição de verdade, que provoca uma ardorosa curiosidade analítica experimental, como discuti em "A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial" (Atlas, 2013).
Parece inescapável a constatação de que existe uma intenção clara de sacrifício de Lula como cordeiro no altar da pátria. Mas sem o devido processo legal, ela não salvará a democracia de modo algum. Perdoai-os Senhor, eles não sabem o que fazem? Errado. Eles sabem. E muito bem. Agem por ideologia, legitimados por uma economia moral de ilegalidades que a tudo justifica. Aparentemente a próxima "conversa" será por videoconferência. Inquisidores digitais. Chegamos ao século XXI, finalmente. Quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas. Nero gargalhava enquanto Roma queimava. Estão dispostos a incendiar a República para combater o mal. E com isso, podem estar sendo mais prejudiciais a ela do que o próprio inimigo que incansavelmente combatem. Vivemos em tempos sombrios.
A gravidade das circunstâncias fez com que coluna fosse adiantada de forma extraordinária.
Boa semana!
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.
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