segunda-feira, 21 de março de 2016

Mais moristas do que o próprio Moro


http://www.conjur.com.br/2016-mar-18/nao-cabe-juiz-decidir-intimidade-proteger-escuta




Consultor Jurídico, 18/03/16



Não cabe ao juiz decidir se há intimidade a proteger em escuta



Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq)
*




"Ora, uma coisa o garantias constitucionais, outra coisa os direitos, de que essas garantias traduzem, em parte, a condição de segurança política ou judicial. Os direitos o aspectos, manifestações da personalidade humana em sua existência subjetiva, ou nas suas situações de relação com a sociedade, ou os indivíduos, que a compõem. As garantias constitucionais stricto sensu são as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder". Rui Barbosa


Os últimos acontecimentos merecem uma reflexão detida à luz dos fundamentos que embasam um Estado Democrático de Direito. De início, destacamos que, em um sistema republicano, nenhum cidadão possui um direito de não ser investigado ou processado. Os que cometerem crimes devem ser responsabilizados. Não há, portanto, justificativa plausível para, por motivações político-ideológicas, proteger uns e perseguir outros. Entretanto, uma Democracia Constitucional pressupõe o reconhecimento de garantias individuais que devem orientar toda a atuação do Estado-juiz, tais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e vedação de provas ilícitas. Essas garantias não devem ser vistas como um obstáculo à punição de pessoas que praticaram ilícitos, mas sim como condições de possibilidade de um processo judicial democrático. Ignorá-las é retroceder a um modelo de estado de exceção.

No contexto de uma intensa polarização política que se vivencia no país há alguns meses, surgem na imprensa gravações de conversas entre o ex-presidente que estava assumindo um ministério e a atual mandatária. O curioso é que eram interceptações telefônicas feitas no mesmo dia em que foram produzidas. Em meio a reações em torno do conteúdo da conversa, apresentada pela grande mídia sob a versão de prova inequívoca de desvio de finalidade do ato de nomeação do ex-presidente a ministro da Casa Civil e, pior ainda, de suposta obstrução à Justiça por parte da presidente da República, alguns questionamentos precisam ser levantados por quem tem preocupação com o Estado Democrático de Direito.

A interceptação telefônica está limitada por dois dispositivos constitucionais.

No primeiro deles, o artigo 5º, X, há uma consagração da intimidade como direito fundamental. Trata-se, aqui, de norma principiológica:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O segundo dispositivo é mais específico. Nele, também no artigo 5º, a própria interceptação telefônica é vedada, sendo, excepcionalmente, permitida sob reserva de jurisdição, quando voltada exclusivamente a investigação criminal ou a instrução de processo penal:

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Essa não é uma norma principiológica. É uma regra, não passível de aplicação proporcional ou de ponderação. Na distinção feita por Rui Barbosa, em epígrafe, temos uma norma declaratória de direitos, consagrando a intimidade, e uma garantia que protege especificamente a comunicação telefônica. Vê-se, então, que o direito à intimidade, base da proteção constitucional do sigilo das comunicações telefônicas, não é absoluto, podendo sofrer restrições mediante reserva legal. Assim, em uma investigação criminal, pode ser necessário interceptar ligações telefônicas, mas, para isso, é preciso que a autoridade judicial a determine e dentro dos parâmetros legais. No caso, cuida-se da Lei 9.296/1996, que disciplina o procedimento de interceptação telefônica.

O episódio envolvendo a presidente da República suscita uma questão extremamente delicada: poderia o magistrado ter levantado o sigilo e divulgado para toda a mídia o conteúdo da informação objeto da interceptação telefônica? A Constituição consagra, também no artigo 5º, a publicidade dos atos judiciais, prevendo, ainda, hipótese de exceção:

LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da 
intimidade ou o interesse social o exigirem.

Percebe-se desse comando que a preservação da intimidade dos que foram interceptados deve ser garantida pelo sigilo, e isto constituir um dever do juiz. O magistrado alegou que não havia intimidade ou interesse social a proteger. Neste ponto, parece-nos que agiu contra a Constituição. O dispositivo que veda a interceptação telefônica transforma o meio em inviolável. A exceção precisa ser interpretada restritivamente. Não cabe ao magistrado fazer o controle do conteúdo dos diálogos e decidir se há ou não intimidade a proteger. Tanto é assim que a Lei 9.296/1996, em seu artigo 8º prescreve que:

A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.

Desse modo, preceitos constitucionais e legais vedam a divulgação de conteúdos obtidos mediante interceptação telefônica, pois eles apenas devem se prestar ao andamento do processo judicial, e não para exposição indevida dos diálogos, especialmente quando objetiva-se causar constrangimentos públicos dos envolvidos. Em síntese, ao juiz se reconhece o poder de decretar a interceptação telefônica, mas também o dever de manter essas informações sob sigilo. Na hipótese de o conteúdo não ter utilidade para o processo judicial, deverá o juiz inutilizar a gravação, como determina o artigo 9º da citada lei:

A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.

Essas considerações nos mostram que, caso ao Judiciário seja reconhecido o poder de controlar o conteúdo dos diálogos e decidir se há ou não intimidade a proteger, especialmente quando há autoridades envolvidas com prerrogativa de foro, os riscos para os indivíduos e para os direitos fundamentais são enormes. Ao não encontrar crime em uma comunicação interceptada de um executivo de uma empresa, por exemplo, um magistrado não pode divulgar os conteúdos das conversas, nas quais há intrigas entre executivos, estratégias de atuação em conflitos na empresa, informações sobre relações entre empresa e poder público, e, ainda, conteúdos atinentes a relações familiares e afetivas? A divulgação transforma a sociedade em juíza do conteúdo dos diálogos, em um julgamento moral incontrolável, algo que nada tem a ver com a autorização excepcional para a interceptação telefônica que a Constituição prevê. Claramente, autorizar a divulgação viola a Constituição e é um ato de excesso de poder praticado pelo juiz da causa. Zelar pela democracia, pela Constituição e pelas regras do jogo é providência mais que oportuna em tempos de instabilidade política e social como a que temos hoje instalada no país.

Pode-se questionar, ainda, o fato de que, nas interceptações, tenha sido encontrada informação sobre autoridade com prerrogativa de foro (presidente da República). Nesses casos, deve a autoridade judicial remeter a informação para a instância com atribuições para investigar, e a investigação ser autorizada pelo juízo competente. Em outras palavras, o juiz de primeira instância passou a ser incompetente a partir do momento da identificação do diálogo com a presidente da República, em virtude da prerrogativa de função assegurada a esta pela Constituição. Como dito anteriormente, o regime republicano não se coaduna com a existência de cidadãos acima do bem e do mal, e mesmo quem exerce a Presidência do País pode ser investigado, processado e condenado, desde que sejam seguidas as normas constitucionais e legais para tanto. Nem mais, nem menos.

A decisão judicial parece, assim, configurar-se quase que como um manifesto (sem forma, nem figura de juízo) contra ato de nomeação do ex-presidente Lula para ministro da Casa Civil, do que propriamente uma mera decisão interlocutória. Mesmo que essa tenha sido uma prática recorrente do juiz na operação "lava jato", nesse caso específico, há de ter-se em mente uma distinção crucial: estava em causa a gravação de diálogo da presidente da República, pessoa que — pela Constituição, repita-se — somente pode ser investigada a requerimento do procurador-geral da República, a quem, pois, em caráter sigiloso, deveria ter sido remetida a interceptação, caso haja suspeita de que houve prática de crime. Não foi o que aconteceu. A gravação chegou, curiosamente, às mãos da grande mídia, antes mesmo de chegar à Procuradoria Geral da República, o que revela a existência de motivação política da decisão judicial. Ademais, a interceptação da conversa do ex-presidente com a atual presidente foi captada horas depois da decisão de encerramento das interceptação, realizada pelo magistrado. Vale indagar como, em menos de uma tarde, a imprensa conseguiu localizar justamente a conversa gravada após haver a liberação do sigilo de dezenas de horas gravadas? Ao que parece da leitura dos fatos, alguém próximo ao processo de investigação “vazou” cirurgicamente a conversa para a mídia.
Ou seja, a fronteira do direito em algum momento se viu invadida pela política. E os direitos fundamentais, enquanto trunfos contra as maiorias e as arbitrariedades, se viram tragados pelas ações estratégicas injustificadas constitucionalmente.

Importante destacar, também, que tem sido frequente o argumento de que referida nomeação ao cargo de ministro da Casa Civil configuraria fraude processual e um atentado à função jurisdicional. No imaginário coletivo, há uma associação entre prerrogativa de foro e impunidade. No presente caso, muitos têm como certo que o ex-presidente Lula seria beneficiado pelo STF, composto majoritariamente por ministros indicados pelo governo petista. É preciso observar um aspecto fundamental. Em primeiro lugar, ter prerrogativa de foro no STF significa submeter-se a julgamento único, do qual não cabe qualquer recurso à instância superior. Sem tal prerrogativa, eventual processo correria no juízo de primeiro grau, com possibilidades de inúmeros recursos para o TRF, STJ e, finalmente, para o próprio STF. Em segundo lugar, não nos parece que o STF possa ser vista como uma Corte benevolente. Ao contrário, o tribunal tem, ultimamente, se revelado bastante atuante e ágil no processo e julgamento envolvendo elevadas autoridades públicas. Não podemos esquecer que foi a mesma Corte que conduziu o processo do “mensalão”, resultando em efetivas condenações de pessoas ligadas à própria cúpula do governo à época. Aliás, seu relator, o então ministro Joaquim Barbosa, foi um dos mais contundentes na punição dos réus e foi indicado pelo ex-presidente Lula. E o atual relator, ministro Teori Zavaski, tem agido severamente em casos de corrupção (veja-se o exemplo da prisão do senador Delcídio, prisão determinada pelo ministro Teori mesmo fora da hipótese constitucionalmente prevista para prisão de parlamentar federal. Trata-se, portanto, de uma prova inequívoca de altivez e independência da corte, quadro que não deve ser alterado agora.

Desse modo, vemos com preocupação o modus operandi de parcela das instituições judiciárias que, em nome da punição a qualquer custo, distorce preceitos legais, ignora garantias constitucionais e cede a pressões políticas indevidas. O Poder Judiciário deve decidir com base na legalidade democrática e na Constituição. Por isso, concedemos-lhe garantias de independência, para que seus membros não tenham que se preocupar com a opinião pública traduzida ao sabor da grande imprensa. O juiz que cede ao clamor social, que se rende à lógica do sucesso midiático, que conclama a população em busca de apoio social, não honra a função que exerce, desconhece os fundamentos de um Estado Democrático de Direito e contribui com a anarquia social.

 
*Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira,  José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.


http://www.conjur.com.br/2016-mar-21/lenio-streck-escutas-juristas-revelam-moristas-moro




Consultor Jurídico, 21/03/16



Nas escutas, juristas se revelam mais moristas do que o próprio Moro


 
Por Lenio Luiz Streck*




Começo o texto dando spoiler: Moro confessou a ilegalidade do grampo da conversa de Dilma e Lula. Mas os juristas, cegamente, recusam-se a acreditar no próprio Moro.

Sigo. Vejamos a seguinte declaração: "O juiz resolve crises do cumprimento da lei. O princípio da imparcialidade pressupõe uma série de outros pré-requisitos. Supõe, por exemplo, que seja discreto, que tenha prudência, que não se deixe se contaminar pelos holofotes e se manifeste no processo depois de ouvir as duas partes(...). O Poder Judiciário tem que exercer seu papel com prudência, com serenidade, com racionalidade, sem protagonismos, porque é isso que a sociedade espera de um juiz".

Quem disse isso foi o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal. Se encaixa perfeitamente ao comportamento do Poder Judiciário (e do Ministério Público Federal) no episódio que chamei de “Morogate”. Juízes e procuradores não devem ser protagonistas. Não misturar moral, política com o nosso produto sagrado, o Direito. Afinal, somos juristas e não políticos. Nem filósofos morais. Nem teólogos.

Na sequência, leiamos este texto:

“Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Ele não deve, jamais, perder de vista a importância da democracia e do Estado Democrático de Direito. EMENTA DO ACORDÃO DA OPERAÇÃO SATHIAGRAHA – HC 149.250 - SP - Rel. Min. Adilson Macabu.”

Bem, o assunto, inexoravelmente, só poderia ser o Morogate. O país em polvorosa. Quarta, dia 16, o país passou por um furacão. Acertei na mosca já nas primeiras horas de quinta-feira. Acertei quando dei entrevista a jornais e rádios brasileiros e estrangeiros, dizendo que estávamos em face de um ato criminoso, representado pela gravação e divulgação da conversa de Dilma e Lula. Fi-lo à ConJur, à BBC de Londres, ao jornal Público, de Portugal, à Folha de S.Paulo, ao jornal O Globo e à Rádio Bandeirantes. Hoje sei que acertei. E tenho a meu favor a confissão feita por um dos protagonistas, o juiz Sergio Moro, dizendo que, efetivamente, a interceptação da conversa entre Lula e Dilma tinha sido... irregular. Ele disse “irregular”. Mas eu afirmo: ilícita. Ilegal.  Mas, mesmo confessando o erro, manteve a versão de que agira certo em divulgar (o famoso evento 133 – “não havia reparado antes no ponto, mas não vejo relevância” – genial, não? O juiz federal não havia reparado que tinha em mãos uma prova ilícita, mas não via “relevância” nisso...).

Vamos, então, acertar os ponteiros, de forma racional, pondo os pingos nos “is”:

1. Antes do meio dia de quarta, Moro determinou o fim das interceptações. É fato. Logo depois, a Policia Federal foi comunicada. Há documentos. É fato.

2. Depois das 13h, Dilma liga para Lula. Esta conversa foi gravada. É fato. E enviada para Moro. É fato. Que liberou geral para os veículos de comunicação. É fato.

3. Mais tarde, Moro, acuado, confessa que o grampo foi “irregular” (sic). É fato.

4. Então, pela lei, Moro divulgou um produto de crime. Por que? Simples. Elementar. Porque a Polícia Federal cometeu o crime do artigo 10 da Lei 9.296 que diz que é crime punido de 2 a 4 anos quem faz intercepção sem ordem judicial. É fato.

5. O que Moro não fez e deveria ter feito? No momento em que recebeu o conteúdo do grampo, deveria ter remetido o produto do crime cometido pela PF ao MPF. É fato.

6. O juiz Sergio Moro, sabedor de que estava em suas mãos uma prova ilícita (que ele confessou ser “irregular”) assumiu o risco de ser enquadrado no artigo 325 do Código Penal (Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação). Além disso, violou no mínimo 6 artigos da Resolução 59 do CNJ, mas especialmente o artigo 17.

7. Também não poderia ter divulgado as intercepções feitas com autoridades com foro especial. Quando entra alguém no grampo com um foro que não é do juiz que determinou, cessa tudo o que musa canta e um valor mais alto se alevanta: no caso, remessa ao STF, em face de Jaques Wagner (para falar só dele – aliás, quem era o grampeado? Wagner ou o presidente do PT? Bom, Wagner não podia ser... Então foi Rui Falcão; mas a PF grampeou o presidente de um partido sem que esse fosse investigado?). Nem falo do caso de Dilma, porque neste caso, o próprio juiz admite que foi irregular (sic). Basta ver que a Operação Castelo de areia (ler aqui) foi anulada... Justamente por causa de um grampo ilícito. A Sathiagraha também (HC 149.250/SP). Frutos da árvore envenenada, eis o nome da tese.  Só que, aqui, a coisa é mais grave.

8. Outra “irregularidade” (para usar a linguagem de Moro) cometida por ele: divulgou conversa privada (sigilo profissional) do ex-presidente com seu advogado. Não esqueçamos que o sigilo profissional está resguardado como cláusula pétrea, artigo 5º, incisos XIII e XIV da CF, verbis: “XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

9. No limite, vou dar de barato que a PF não teve “culpa” de ter grampeado a conversa de Dilma, sendo a culpa da companhia telefônica (sempre essas companhias...). Mas isso apenas poderia descaracterizar o dolo da PF (como disse, a culpa poderia ser do estagiário da Claro, da Vivo ou da TIM). Mas uma coisa é fato: irregular, ilícita ou o nome que se dê a ela, a escuta jamais poderia ter sido divulgada. Simples assim. Um mais um é dois. Só o personagem Humpty Dumpty é que consegue provar que é 3.

10. Há ainda que se apurar a participação do Ministério Público no episódio. Parece que o PGR disse que, embora concordasse com a divulgação, não sabia que a escuta de Dilma era irregular. Hum, hum. A ver, portanto. De todo modo, agora ele já sabe.

11. E vou fechar com o que disse o ministro Marco Aurélio:  "Ele [Moro] não é o único juiz do país e deve atuar como todo juiz. Agora, houve essa divulgação por terceiros de sigilo telefônico. Isso é crime, está na lei. Ele simplesmente deixou de lado a lei. Isso está escancarado e foi objeto, inclusive, de reportagem no exterior. Não se avança culturalmente, atropelando a ordem jurídica, principalmente a constitucional. O avanço pressupõe a observância irrestrita do que está escrito na lei de regência da matéria. Dizer que interessa ao público em geral conhecer o teor de gravações sigilosas não se sustenta. O público também está submetido à legislação” (grifei). Se o ministro Marco Aurélio me permitir, acrescento um “Bingo”!

Paro por aqui. De fato, o Brasil precisa mostrar que ninguém está acima da lei. Nem Lula, nem Dilma...nem Sergio Moro e nem o MPF. E nem o STF. Leis que governem os homens...e não homens que governem as leis. Eis o lema de Honório Lemes, gaúcho da cepa.

Isso tudo é grave. Como graves são os fatos políticos. Concordo. Só que a CF proíbe prova ilícita. Não fui eu que inventei isso. Preocupa-me também a comportamento dos advogados (e demais carreiras) que aplaudem os atos ilícitos.

Torcer é uma coisa. Falar juridicamente, é outra. Advogados importantes que sofrem no dia a dia as vicissitudes do autoritarismo de membros do judiciário e do Ministério Público apoiam o uso de grampos ilícitos. Ideologicamente, neste caso, optaram por aplaudir o descumprimento das leis e da CF. Pior: são mais moristas que o próprio Moro. Afinal, ele reconheceu que a escuta da conversa entre Lula e Dilma foi “irregular”.  Nem quiserem ler o que Moro disse. Isso é fato. Ele é quem os desmentiu.

Quando aconteceu o episódio, falei à uma Rádio: como um jurista por vezes acusado – de forma apressada - de ser originalista (conservador, apegado à letra da Constituição – coisa que, por vezes, desagrada à esquerda e à direta), estou dizendo – e tenho dezenas de obras provando essa linha de raciocínio – que ao jurista não deve importar as cores partidárias quando aprecia um determinado fato jurídico (não político ou moral). Vou dar um exemplo candente: Lembram de minha opinião sobre os embargos infringentes no mensalão? Contra centenas de juristas, sustentei que não eram cabíveis. Levei o maior pau por isso. Segundo boas fontes – embora eu não possa acreditar nisso - se naquele momento havia alguma chance de ir ao STF (havia uma vaga aberta), ali elas se esfumaçaram. Não me importa o custo a pagar por ser coerente. Por isso é que posso, hoje, dizer que “violação a CF é violação a CF”. Não importa por quem. Violação à lei é violação à lei. Ninguém está acima dela. Como disse dia desses, “sou constitucionalista, mas sou limpinho”, se me permitem uma blague neste momento tão grave. E sobre interceptações escrevi no mesmo ano em que a lei entrou em vigor (As Interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado, com capa desenhada pela minha filha)

Hoje, no Brasil, ser revolucionário é pregar a legalidade. Por isso, chegamos ao ponto de que talvez uma boa dose de positivismo exclusivo cairia bem para impedirmos que a lei seja substituída por juízos morais e políticos.

Uma palavra final: esperava um veemente protesto da Ordem dos Advogados do Brasil não somente contra o que Dilma e Lula falaram, mas, também e fundamentalmente, contra a quebra da legalidade envolvendo um chefe de Estado de um país de 200 milhões de habitantes. A OAB viu apenas a parte que lhe interessa. Relembro como a OAB se comportou em 1964:

"No dia 7 de abril de 1964, o Conselho Federal da OAB realizou uma sessão ordinária. Era a primeira após o golpe de estado que depusera alguns dias antes o Presidente João Goulart. A euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro. A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal. Definindo todos os Conselheiros como "cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição", o então Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, Carlos Povina Cavalcanti, orgulhoso, se dizia "em paz com a nossa consciência". (Clique aqui para ler)

O julgamento é dos leitores.  Ah, dirão: mas Lula e Dilma devem ser punidos; eles merecem cair, banidos, afastados, chicoteados etc.  Só que para isso não se pode fazer grampos ilegais. Podemos concordar ao menos nisso, preclara comunidade jurídica? Ou os fins justificam os meios?

E, além de tudo, não quero crer que o judiciário, a OAB, o MPF possam ser coniventes com claras violações da lei. E que achem bonito que um juiz que poste no seu facebook coisas como "ajude a derrubar a Dilma e volte a viajar para Miami e Orlando. Se ela cair, o dólar cai junto". E o mesmo juiz, em segundos – literalmente – anula um ato da Presidente. Proferiu rapidamente a decisão e voltou para a passeata. É bonito isso? Temos que definir: o que é Direito, o que é política e o que é moral. Se a moral e a política podem corrigir o Direito, minha pergunta é: quem vai corrigir a política e a moral?

Peço a todos os juristas que pensem no amanhã. O que hoje escrevemos e dizemos pode nos ser cobrado. Já vi tanta gente fazendo discursos apopléticos – e olha que sou macaco velho em congressos e simpósios - defendendo a Constituição e que agora os vejo dizendo: “os fins justificam os meios”, “os fatos falam por si” e coisas do gênero. Prova ilícita? Ah – o que é uma transgressãozinha à lei e à Constituição, quando um valor maior se alevanta? E eu invoco o Conselheiro Acácio: as consequências vêm sempre depois!

Post scriptum 1: Li um manifesto belíssimo defendendo a legalidade a constitucionalidade do Estado Democrático de Direito...assinado pelo Conselho Federal dos Psicólogos. No primeiro momento, achei que era da OAB. Mas não era. Talvez no futuro tenhamos que contratar psicólogos (nos dois sentidos). Ou ler de novo a peça Henry VI, de Shakespeare, em que o personagem Dick afirma: Let’s kill all the lawyers.  E eu acrescento: and call the psychologists.


*Jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito.

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