sexta-feira, 11 de março de 2016

Os gabinetes do doutor Caligari e do juiz Moro

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Carta Maior, 11/03/2016


O gabinete do Doutor Moro


PorJosé Carlos Siqueira*



Quem já assistiu ao filme que inspirou o título deste ensaio vai lembrar que o sinistro médico Dr. Caligari, no enredo central, fazia em seu gabinete experiências hipnóticas com pacientes, com o objetivo de que cometessem crimes por ele premeditados. A obra de 1920 é considerada uma surpreendente premonição dos horrores nazistas, indicando assim como o trabalho de um artista, no caso o cineasta Robert Wiene, pode surpreender ainda em germe os processos históricos em andamento.

A intimação coercitiva de Lula, no dia 4 de março deste ano, pode ser do mesmo modo compreendida como uma experiência elaborada pelo juiz Sérgio Moro que, se na sua natureza mais imediata deve ser vista como jurídica e política, também possui um quê de hipnótica e social. Vejamos.

Até juristas conservadores, como Marco Aurélio Mello (juiz do Supremo nomeado por seu primo Collor), avaliaram a medida como totalmente descabida, e, ainda segundo Mello, perigosa do ponto de vista institucional: “Se pretenderem me ouvir, vão me conduzir debaixo de vara? Se quiserem te ouvir, vão fazer a mesma coisa? Conosco e com qualquer cidadão?” (cf. Mônica Bergamo no site da Folha, 4/3/2016).

Ao que se deve então esse procedimento absurdo? O que parece ficar claro, para analistas mais isentos — se isso é ainda possível! —, é que o juiz Moro tem poucas provas ou indícios para processar Lula. Se compararmos a situação do ex-presidente com o de outro “prócere” da República, Eduardo Cunha, o viés fica mais claro. Denunciado pela justiça suíça de ocultar cinco milhões de dólares em bancos daquele país, sendo que a origem do dinheiro foi bem mapeada, graças a várias fontes, como proveniente de desvios da Petrobrás, a continuidade do atual presidente da Câmara deve causar indignação para os magistrados helvéticos: como pode o rico correntista continuar à frente dos deputados brasileiros? Enquanto isso, contra Lula pesa um apartamento e um sítio reformados por empreiteiras envolvidas na Lava Jato, sendo que ambos imóveis não são formalmente de sua propriedade.

Se Lula for culpado por alguma maracutaia, devem-se buscar provas, ao invés de suposições preconceituosas. Mas causa espanto, como o de meus hipotéticos juízes suíços, que de Lula não se tenha descoberto nem um luxuoso apartamento em seu nome, como estão em nome de Cunha as polpudas contas no exterior, e muito menos valores escandalosos como os do mesmo deputado. Apesar da desproporção entre as evidências, o presidente da Câmara não foi nem sequer chamado a depor pelo juiz curitibano (o que poderia ser conseguido com o aval do Supremo, em virtude do foro privilegiado), enquanto que, por culpa dos pedalinhos mal explicados, “nosso guia” foi arrastado para um interrogatório algo cretino, como se deduz do testemunho de quem acompanhou o procedimento.

Na coletiva dada pelos procuradores subordinados a Moro, outras acusações foram agregadas para dar sustância à nova fase investigativa: além de sítio e triplex (sem acento, por favor, como está dicionarizada a palavra pelo Houaiss e como é pronunciada por tudo mundo que não os revisores de jornal!), supõe-se que as doações para o Instituto Lula e os honorários recebidos pelas palestras do ex-presidente sejam o pagamento de propinas do Petrolão — pode ser! O problema é que tais denúncias são difíceis de provar, mesmo com delações premiadas, pois o fato causador (o desvio) e a propina paga estão distantes no tempo e no espaço, e reconstituir as cadeias relacionais é muito complicado. Só para se avaliar o problema, todas as vantagens ilícitas obtidas por Collor no seu mandato (o Fiat Elba, lembram?) caíram por terra no julgamento do Supremo, e ele foi absolvido.

Além do mais, doações para institutos de ex-presidentes e palestras remuneradas por grande empresas são uma prática difundida no Brasil e no mundo, listo: Bill Clinton, Bush, Sarney, FHC e outros mais. A pergunta que deveria ser feita então a todos esses célebres políticos é por que motivo os empresários foram e são tão generosos com eles? Pagamento adiado de propina seria a reposta de Moro e seus moços. Eu também acho, mas só Lula vai ser pego por isso?

Um repórter chegou mesmo a questionar que FHC também recebe pró-labore por conferências, e o esperto promotor, bem preparado, explicou que os valores são muito diferentes... São mesmo? Como ele sabe, Fernando Henrique também foi investigado?  Inclusive, creio piamente que entre os patrocinadores do tucano estejam as mesmas empresas que pagam Lula. Alguém apostaria contra?

Permitam-me neste momento abrir um divertido parêntesis. É interessante notar que nosso perspicaz procurador público parece não entender o funcionamento das forças do mercado (que ele certamente defende) nessa sua resposta: FHC saiu do governo com baixíssima popularidade e um retumbante fracasso econômico, logo, por que raios d’água alguém pagaria a mesma coisa para ouvi-lo em lugar de Lula, cuja aprovação era de quase 90% ao final de dois exitosos mandatos — sem dizer do carisma pessoal e do selo “este é o cara” concedido pelo controle de qualidade Obama (coisas que o querido FH nunca teve)? Fecho parêntesis.

Por isso, promotores e agentes federais têm alardeado a repórteres que mais coisas virão em breve, procurando assim justificar a insuficiência momentânea de provas mais substanciais. São balões de ensaio, como foi também o vazamento da suposta delação de Delcídio. Mesmo que o documento seja autêntico, trata-se de uma maçaroca de revelações cuja dificuldade de comprovação coloca o documento no nível de fofocas de comadre — se não me acreditam, deem uma olhada no papel. Caso Moro tivesse realmente evidências de peso, ele as usaria para pedir a prisão imediata de Lula, como fez com outras figuras poderosas do país, podendo, inclusive, usar os vazamentos seletivos como instrumento de convencimento público e pressão sobre os poderes superiores ao dele. Tal estratégia de vazar informações foi elogiada pelo juiz num artigo escrito há alguns anos atrás sobre a Operação Mãos Limpas da justiça italiana (ver artigo de André Singer na Revista piauí nº 111).

Fechando o raciocínio, temos aqui as razões para as experiências do gabinete de Moro: deve estar difícil pegar Lula, faltam provas e evidências de qualidade, sobrando apenas muita vontade policialesca de ligá-lo aos desmandos petroleiros. Por isso as experiências, os balões de ensaio, por meio dos quais se pretende comprovar a culpa de Lula através do reflexo de uma opinião pública construída por uma, digamos assim, experimental narrativa mediática! (Lembro da minha afirmação inicial que essas experiências têm também um caráter social e hipnótico...). Em parte foi isso o que aconteceu com a deposição de Collor, mas agora Lula não está mais no governo e o impeachment é contra outro político petista. O desafio da República do Galeão Curitibana é obter o mesmo sucesso passando pelo processo judicial. Com uma opinião pública absolutamente convencida da culpa, o corpo político e o judiciário acabarão por aceitá-la independente de fatos concretos.

Na hipótese de as experiências feitas a partir do gabinete do doutor Moro obterem sucesso, será possível se consolidar no Brasil um sistema judiciário dúplice, ou seja, dois sistemas processualistas idênticos na forma mas diferentes nos resultados. De um lado, um judiciário que funciona como sempre funcionou desde a formação do país: assegurando os privilégios de uma elite conservadora e patrimonialista; de outro, um sistema que punirá todo agente político que atentar contra os interesses e valores dessa elite, incluindo-se aí os indivíduos da própria elite que, por cálculo (como no caso de Lula) ou até mesmo por convicção, traiam sua classe.

Não acredito na total inocência de Lula, porém nenhum político na democracia burguesa o é. O problema aqui está na consolidação de tal sistemática penal, que pairará sempre como uma espada de Dâmocles sobre líderes populares e políticos de esquerda, tenham eles culpa no cartório ou não. A estratégia é antiga na sociedade burguesa e ocorre em diversas esferas, cito como exemplo o especioso sistema eleitoral francês imposto por De Gaulle no Pós-Guerra, o qual impediu por trinta anos que a esquerda chegasse ao poder. Mas há também o exemplar doméstico, a acintosa discrepância entre a processualística de dois crimes idênticos: o mensalão mineiro (tucano) e o federal (petista), em que aquele, bem anterior, ainda não teve desfecho, enquanto este já tem até penas cumpridas. O escândalo jurídico só não é maior do que o escândalo da alienação pública sobre o assunto. Haja hipnotismo coletivo!

Para aqueles que considerarem este raciocínio como a manifestação de uma mente contaminada com o vírus zika da teoria da conspiração, retorno ao leitmotiv do ensaio, O gabinete do Doutor Caligari. Com certeza, muitos críticos da época de Wiene julgaram infundados os seus temores e... deu no que deu. Sem a arte e o engenho do diretor alemão, ao menos tentei, na forma de um texto ensaístico, recuperar em ideias o movimento de imagens e cenas encontradas no Expressionismo e, bem lembrado, na prosa kafkiana, um movimento capaz de desvelar os processos subterrâneos de um mundo social fundado em privilégios e na desigualdade.

Fortaleza, 6 de março de 2016

José Carlos Siqueira é doutor em Literatura Portuguesa pela USP e professor adjunto do Departamento de Literatura da UFC – Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza.

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