Resistir, 30/03/16
A imposição do medo à maioria da população
Entrevista concedida a Cátia Guimarães
A historiadora Virgínia Fontes é coordenadora do Programa de Pós-graduação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e professora da Universidade Federal Fluminense.
A historiadora Virgínia Fontes é coordenadora do Programa de Pós-graduação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e professora da Universidade Federal Fluminense.
Respondendo a
três perguntas de análise de conjuntura do Portal EPSJV, ela identifica
tanto causas econômicas quanto movimento de autopreservação nas posições
que o grande empresariado e partidos da oposição têm assumido na crise
política.
No esforço de entender o cenário atual, que leitura você faz do que está acontecendo no país?
No esforço de entender o cenário atual, que leitura você faz do que está acontecendo no país?
O que está acontecendo é um processo muito complexo e que não é linear. Vamos pegar os principais elementos. Nós temos uma crise econômica, portanto uma baixa da taxa de lucro. Crises econômicas são normais na sociedade capitalista. Estamos diante de uma crise capitalista que tem relação com a burguesia brasileira mas ela não justifica alguma coisa do que está acontecendo aqui. O segundo ponto importante de se levar em conta é que provavelmente existe uma briga interburguesa, embora na imprensa burguesa mais direta isso não apareça. Alguns leram essa briga interburguesa como sendo a oposição entre burguesia industrial e financeira ou uma burguesia mais brasileira contra a imperialista. Eu não concordo. Provavelmente a briga que está acontecendo agora é o que eu chamaria de briga de cachorro grande. Desde os governos Fernando Henrique e continuando nos governos Lula, houve impulso e apoio para concentração e centralização do capital no Brasil. Com as privatizações do governo Fernando Henrique, com a legislação para exportação de capitais do governo Fernando Henrique e depois com a atuação do BNDES para montar as campeãs nacionais no governo Lula. É preciso lembrar que o BNDES no governo FHC também financiou a privatização com moeda podre. Portanto, nós temos órgãos de Estado agindo no sentido de consolidar burguesias de alta potência desde o início dos anos 1990. Estimular concentração e centralização do capital significa que esse capital precisa se reproduzir para dentro e para fora. Essas empresas se converteram em multibrasileiras. E, como acontece com as multi em qualquer lugar do mundo, isso significa enfrentar tensões políticas para fora e ser capaz de acalmar para dentro. O que está acontecendo no Brasil? Tudo indica que a tensão burguesa hoje é de escala: massa de burguesia de menor escala, num momento de crise, briga com as suas congêneres maiores. E briga pelo que tem de política pública. Não briga contra a corrupção, ela quer um pedaço para ela. Porque o problema do Brasil não é corrupção, o problema é o funcionamento regular do Estado, que é podre, porque a burguesia está dentro do Estado. Tem que controlar a corrupção, mas ninguém nunca vai controlar a corrupção se é a própria burguesia que determina o que a política pública vai fazer. Portanto, essa briga de escala é bastante silenciada, mas expressa uma série de outras tensões para as quais a gente não está dando atenção.
Vamos pegar dois pontos. Quem hoje a Fiesp representa? A Fiesp saltou da posição de suporte e participação no governo Dilma para a defesa do impeachment e da renúncia. É a Fiesp ainda representante de todo o conjunto da burguesia brasileira? Não sei. Não sabemos. Uma parcela dessa burguesia provavelmente não está encontrando na Fiesp o seu ponto de sustentação. E eu ouso dizer que há uma questão regional na disputa interburguesa entre o paulistocentrismo e as grandes burguesias que foram se construindo no agro, na indústria e na mineração, e que não necessariamente estão centradas só em São Paulo. Portanto, tensão interna da burguesia tem. Essa burguesia toda se beneficiou dos governos Lula. Ora, montar uma multi é abrir área de tensão com os aliados. É abrir brigas muito maiores entre grandes empresas. É lidar como imperialista com os imperialistas. Mas não há estofo na burguesia brasileira para sustentar isso em situação de crise. Porque teria de sustentar duas coisas: o Estado como garantidor da política para fora e o apaziguamento para dentro para que isso consiga acontecer. Nos últimos cinco anos, se estreitou bastante o espaço para o aumento dessas novas multi oriundas de países capitalistas mais recentes, como os BRICS. Portanto, a briga de cachorro grande ficou sem sustentação interna. Marcelo Odebrecht foi o único que pegou 19 anos na cadeia. Terceiro ponto de tensão nessa burguesia, e que eu não acho irrelevante: eles estão com medo. Estão se debatendo, com medo de ser presos. Aliás, eu acho que a frase da Fiesp é esclarecedora: “Não vamos pagar o pato”. Ou seja, eles não vão para a cadeia, vai o resto do mundo inteiro, mas eles não. É a frase mais transparente que eu já vi do tipo ‘nenhum burguês na cadeia’. Ontem [a colunista] Monica Bergamo confirmou as minhas suspeitas. Segundo ela, está todo mundo esperando que a aceleração no processo da Lava Jato e um eventual término do governo Dilma, ao retirar do foco a questão que move a operação, possa esfriar o processo da investigação. É exatamente isso. O que se trata agora é de controlar, essa burguesia tem medo. Como fez Fernando Henrique Cardoso controlando com o famoso engavetador-mor da República, o Geraldo Brindeiro, que impediu todos os processos sobre a burguesia.
Como estão distribuídos os diferentes segmentos da sociedade nesse processo?
Todos esses que eu citei são pontos de tensão na burguesia. Não dá para dizer que a classe trabalhadora está toda homogênea aí. Porque a atuação do PT foi de segmentação, tanto para garantir a sustentação do próprio PT quanto quando abriu a porteira para as políticas do grande capital. A classe trabalhadora foi segmetada, perdeu capacidade convocatória, perdeu capacidade de mobilização porque o PT não queria mobilizar. E colocou-se cada vez mais à disposição das tensões internas da burguesia. Ora, o interesse do PT para o capital era sua capacidade mobilizatória. Perdida essa capacidade, para que serve o PT? Mas pode essa burguesia acabar com o povo brasileiro? Não, não pode. Ela vai precisar achar outro percurso que justifique um apaziguamento qualquer para essas massas. Quem vai ser a nova esquerda para o capital ninguém sabe porque o que está aparecendo até agora é só uma direita endurecida, muito truculenta, constituída de brancos de classe média que não representam a massa da população, mas que têm tido uma presença exacerbada tanto na mídia quanto na rua e nas redes. Uma direita completamente desequilibrada. O discurso que unifica tudo isso é o anticomunismo, raivoso, agressivo, violento, absolutamente antidemocrático. Mas não tem comunismo! Quem está fazendo comunismo aqui? O argumento é paulistocêntrico, totalmente de São Paulo, que é a história dos petralhas. Como se o PT condensasse nele próprio todas as características de todas as esquerdas de todos os períodos históricos na existência. E como se ele tivesse feito esse papel, que não fez. O que está acontecendo é uma sequência de golpes que eu chamaria de golpes moles, gelatinosos, mas com muita mídia – a mídia participa disso -, todos por dentro da institucionalidade. Qual é o papel de cada peão nesse jogo? Eu falei de burguesia, falei de classe trabalhadora. Agora, que partidos nós temos? Quais partidos são efetivamente nacionais, têm uma implantação no território nacional inteiro? Só tem dois a meu juízo: PT e PMDB. O PSDB se forma e se consolida como um partido paulista, no máximo em aliança – e eventual porque não consegue emplacar alianças de longa duração – com algum estado, fundamentalmente os estados tradicionais da riqueza no Brasil: Paraná, Rio de janeiro, Minas Gerais, eventualmente um ou outro no Nordeste. Não é um partido cujo desenho seja realmente de implantação nacional. Tentou surfar nessa onda para se converter em partido nacional, mas não conseguiu. Agora ele se dá conta de que qualquer governabilidade passa pelo PMDB. E, portanto, os primos-irmãos PSDB/PT vão tender a fazer a mesma coisa, a não ser que o PSDB agora aceite virar PMDB, voltar aos braços de onde nasceu. Do ponto de vista partidário, a configuração é dramática. O PMDB está afundado até o pescoço; o PSDB, nós sabemos que está, embora isso esteja oculto, mas na hora em que se puxar a correia do PMDB, o PSDB vai, como foi o PT. De novo, eles têm que ter medo. E eles estão querendo derrubar o governo rápido para brecar essa operação Lava Jato. Vão botar alguma figuração bonitinha para o Sergio Moro, ele vai continuar com uma bandeirinha prateada sacudindo na rua, fazendo algum estardalhaço, vai ter direito a muita mídia, muito jantar, muito champanhe com empresário.
Quais são os riscos identificáveis hoje nessa conjuntura?
Estamos assistindo a uma redução brutal da capacidade popular de se expressar. Vivemos a evidência da amputação que esse tempo de FHC mais governos Lula/Dilma significou como perda de capacidade organizativa da classe por baixo. As contradições não sumiram: a massa de trabalhadores é maior, as condições desses trabalhadores são piores, portanto, os problemas vão aparecer e rápido. E não tem ditadura militar que possa resolver esse tipo de problema. Portanto, as tensões todas estão presentes. A gente não tem partidos capazes de dar conta da expressão dessas tensões. O PSDB está rachado em São Paulo. Estamos diante do risco de uma redução significativa de direitos, que já está acontecendo; a consolidação de uma força de direita, ao mesmo tempo institucionalizada e não-institucionalizada, que não é exatamente partidária, porque não cola só com os partidos. É como se você tivesse a revista Veja perambulando pela rua: racismo, sexismo, discriminação social pesada, como elemento norteador das formas sociais. Isso é dramático porque é muito amedrontador num país já povoado de milícias e de uma polícia completamente truculenta. Isso significa que milícias passam a ter uma configuração ainda mais subordinada à grande propriedade e ainda menos subordinada a qualquer elemento de legislação. Esse é um processo de direitização que não é só político, é também social. Um processo de direitização significa imposição do medo à maioria da população, quer seja pela violência, pela perda de emprego, quer seja simplesmente pela desqualificação da sua presença num lugar não desejado. Eu acho que os riscos são altos. Se é verdade que a democracia é algo muito limitado — porque procura esvaziar a vida social dos conflitos, trazendo todos para o terreno da representação —, ao menos esse espaço para conflitos, teoricamente, ela abriria. E, portanto, por esse espaço, você teria como aglutinar forças. Se isso é agora eliminado pelo judiciário, pela mídia e por uma espécie de conjugação de partidos que capturam, eliminam e invertem a expressão real do voto, isso significa que os espaços estão fechados. É uma ditadura? Institucionalmente, não. Na prática, é uma ditadura do capital de forma muito brutal. Isso não significa que as contradições estejam controladas, portanto essas lutas vão aparecer, mas agora vão ter que se defrontar com uma direita que ganhou espaço, ganhou fôlego, ganhou gordura nesses últimos tempos. Só participando desse processo de enfrentamento é que a gente vai poder saber.
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