ENTREVISTA /CARL ELLIOT
"Indústria farmacêutica tem controle total sobre pesquisas"
Caleb Parker |
CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO Em 1989, Len iniciou residência médica em psiquiatria, após terminar a faculdade em Harvard. Trazia no currículo excelentes notas. Mas Len era uma farsa. Nunca esteve em Harvard. Era funcionário de um laboratório. A história, real, parece conto infantil perto de outras que surgem nas 224 páginas de "White Coat, Black Hat -Adventures on the Dark Side of Medicine" (jaleco branco, chapéu preto: aventuras no lado negro da medicina), do médico Carl Elliot, professor de bioética e filosofia na Universidade de Minnesota. Uso de "cobaias humanas" em estudos científicos obscuros, médicos sendo "porta-vozes" da indústria farmacêutica em troca de altas somas, doutores influentes que assinam artigos de escritores-fantasmas. A lista de falcatruas parece não ter fim. Elliot, 49, um dos principais nomes da bioética nos EUA, não promete imparcialidade na sua obra. "Meu interesse é no que tem de errado. Construímos um sistema médico em que o ato de enganar não é apenas tolerado, mas recompensado", afirmou à Folha o autor de outros seis livros na área. Nos últimos cinco anos, uma série de obras vem revelando que a indústria farmacêutica escapou a todo controle. Tem influência quase ilimitada sobre a educação, a pesquisa e os médicos. Pergunto a Elliot se os laboratórios não têm nada de bom, se são tão sombrios assim como ele pinta no livro. Ele não titubeia: "Sombrios? Deixei de fora os trechos mais desmoralizantes." A seguir, trechos da entrevista dada à Folha, por e-mail
Folha - A imagem heroica da indústria, associada a drogas como a penicilina e insulina, parece ter ruído após tanto escândalos e poucas descobertas. A glória acabou?
Carl Elliot - A penicilina não foi desenvolvida por uma indústria. Alexander Fleming a desenvolveu no St. Mary's Hospital, em Londres. E o trabalho crucial para a insulina foi feito na Universidade de Toronto. O problema hoje é que temos um sistema de desenvolvimento de drogas orientado para o mercado e não para as coisas que as pessoas doentes precisam.
Você relata várias monstruosidades cometidas em ensaios clínicos. Isso ainda ocorre com frequência?
A maioria dos medicamentos ainda é testada em pessoas pobres, especialmente nos estágios iniciais. Muitas pessoas não iriam se voluntariar para tomar remédios não testados, durante três semanas, sem receber pagamento. Esses voluntários são pessoas que precisam desesperadamente de dinheiro.
Qual o futuro do relacionamento entre a indústria farmacêutica e os médicos?
A solução que vem sendo instituída aqui, nos EUA, é a transparência. Médicos podem aceitar todo dinheiro que quiserem, desde que não escondam isso. Mas meu palpite é que isso vai normalizar a prática. Não parece haver vergonha em tirar dinheiro do setor. Na verdade, ser escolhido para ser "líder" entre os médicos, pago pelo setor, é visto como uma honra.
Então, transparência também não resolve?
Transparência importa, mas não é a solução. Propina é propina, mesmo se é recebida a céu aberto. A solução é eliminar os pagamentos, tal como fizemos com os juízes, jornalistas e policiais.
Médicos dizem ser impossível fazer estudos ou congressos sem a indústria. Verdade?
Não é verdade. Eventos médicos podem ser feitos sem dinheiro da indústria. Ensaios clínicos já são mais complicados. O problema é que a indústria tem controle total sobre as pesquisas. Ela enterra os resultados negativos a fim de tornar as drogas melhores do que são. Isso não é ciência, é marketing.
É possível que médicos aceitem brindes da indústria e continuem independentes?
Médicos nunca pensam que são influenciados por dinheiro ou presentes. Mas temos 20 anos de dados mostrando que eles são, sim.
A única solução seria cortar todas as relações entre médicos e laboratórios?
Há colaborações aceitáveis. Mas se um médico é pago só para ler um conjunto de informações da indústria ou permitir que seu nome seja adicionado a um artigo escrito por fantasmas, esse tipo de pagamento tem que ser eliminado. Conversei com um representante de laboratório que construiu uma piscina para um médico só para levá-lo a prescrever mais receitas. Como alguém justifica isso?
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São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Médicos distorcem pesquisas e colocam pacientes em risco DA REUTERS - Alguns médicos estão pedindo transfusões de sangue desnecessárias e até perigosas para pacientes com câncer, para encaixá-los em testes clínicos de novos medicamentos.
A acusação é de um grupo de pesquisadores que descobriu um caso de uma mulher com câncer avançado cujo médico pediu uma transfusão desnecessária, entre outras histórias semelhantes.
De acordo com o especialista em ética Blair Henry, que ajudou a escrever a denúncia publicada no "New England Journal of Medicine", essa prática não é incomum.
O objetivo dos médicos seria mudar os resultados de exames dos pacientes, para que eles se encaixassem em critérios estabelecidos para testes clínicos. O problema é que a transfusão pode pôr a vida da pessoa em risco.
A inclusão desses pacientes nos testes também distorce resultados de pesquisas.
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Capitali$mo = Tudo por dinheiro! Ab$olutamente tudo! Tudo! Tudo!
São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010
Indústria é acusada de criar doença para vender remédio
GUILHERME GENESTRETI
DE SÃO PAULO
Análise publicada na última edição do "British Medical Journal" acusa a indústria farmacêutica de ter financiado pesquisas para transformar falta de desejo feminino em doença. Objetivo: vender remédios.
O texto de Ray Moynihan, professor da Universidade de Newcastle, Austrália, e jornalista de saúde, diz que a Pfizer financiou cursos em hospitais dos EUA dizendo que 63% das mulheres têm alguma disfunção sexual - e que testosterona e sildenafila (componente do Viagra, medicamento produzido pelo laboratório) seriam úteis para tratar o problema.
No Brasil, em junho, a Boehringer apresentou o medicamento Flibanserina como promessa para a falta de desejo entre as mulheres. No mesmo mês, conselheiros da FDA (agência reguladora dos EUA) contestaram a eficácia do "Viagra feminino".
Para o psiquiatra Sérgio Campanella, do Hospital das Clínicas, congressos que apostem no sucesso definitivo dos remédios só contribuem para a desinformação.
"A libido não é resolvida a contento pelas substâncias químicas que a pessoa ingere, mas pela identificação dos fatores psíquicos que estão por trás dela."
OUTRO LADO
A Pfizer informou que "sempre se pauta em dados médicos para falar de doenças que afetam a população" e que já fez testes com Viagra para o tratamento de disfunções sexuais femininas, mas que os estudos da eficácia foram "inconclusivos".
Já a Boehringer disse que os medicamentos pesquisados e desenvolvidos por ela "são fundamentados em estudos clínicos precisos e de acordo com protocolos exigidos pelos órgãos reguladores nacionais e internacionais".
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Capitalismo = Tudo por dinheiro! Absolutamente tudo!
São Paulo, quarta-feira, 08 de setembro de 2010
DE SÃO PAULO
SABINE RIGHETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A indústria farmacêutica está novamente no centro de um escândalo. Documentos confidenciais da gigante Wyeth -hoje incorporada à Pfizer- mostram que a companhia sistematicamente plantava artigos favoráveis a seus medicamentos em periódicos científicos.
O caso mais emblemático é o do remédio Prempro, usado para reposição hormonal em mulheres na menopausa. Nos EUA, o produto gerou uma ação pública, movida por 14 mil pessoas, que acusam a droga de aumentar o risco de câncer de mama.
Para garantir opiniões positivas sobre a substância, a Wyeth pagava para empresas especializadas produzirem textos que ressaltassem suas qualidades -algumas não comprovadas- e escondessem efeitos colaterais, como casos de câncer.
O material pronto era oferecido a pesquisadores "de verdade", que assinavam como autores do trabalho.
Essas "pesquisas" eram submetidas a diversos periódicos científicos, que publicavam o material como se fosse independente. Alguns acabaram em veículos renomados, como a "Archives of Internal Medicine".
A mecânica completa do esquema é apresentada pela médica americana Adriane Fugh-Bergman, da Universidade Georgetown, na revista "PLoS Medicine".
Fugh-Bergman se debruçou sobre 1.500 documentos confidencias da Wyeth -liberados sob ordem judicial para a revista.
A papelada contém rascunhos de artigos, troca de e-mails e até a contabilidade do esquema.
Em um dos e-mails, uma funcionária da DesignWrite -principal empresa contratada pela Wyeth- descreve o trabalho a um pesquisador.
"A beleza deste processo é que nós nos tornamos o seu pós-doutorando! Nós fornecemos um rascunho geral, ao qual você sugere mudanças e revisa. Nós então desenvolvemos um rascunho com os contornos gerais. Você tem todo o controle editorial sobre o trabalho, mas nós lhe forneceremos materiais para crítica e revisão."
Segundo Fugh-Bergman, a realidade era bem diferente: eles só podiam fazer mudanças simples e que não descaracterizassem as mensagens de marketing pretendidas pela farmacêutica.
IMORAL, E DAÍ?
Usar "escritores fantasmas" não é ilegal, embora seja considerado antiético.
As empresas aproveitam uma brecha na regulamentação nos EUA. A FDA (agência responsável pela liberação de remédios) não considera artigos científicos como marketing. Ou seja: o que acontece nesse espaço não faz parte da sua área de atuação.
De acordo com o artigo, não existem evidências de que os autores foram pagos para assinar os trabalhos.
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Excelente iniciativa!
São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2010
Harvard vai limitar relações entre médicos e laboratórios Profissionais da faculdade não poderão dar palestras para a indústria CLÁUDIA COLLUCCI DE SÃO PAULO A partir de 2011, a Faculdade de Medicina de Harvard (EUA), uma das mais prestigiadas do mundo, proibirá seus médicos de dar palestras para a indústria farmacêutica e de equipamentos. Eles também não poderão aceitar presentes, viagens ou refeições, exceto se isso for autorizado pela faculdade. No Brasil, o CFM (Conselho Federal de Medicina) já anunciou que os médicos só poderão viajar a congressos com as despesas pagas pela indústria se forem prestar serviço de cunho científico, como dar palestra ou curso. Os médicos de Harvard terão a permissão de fazer pesquisas patrocinadas pela indústria e de atuar como consultores. Porém, será fixado um limite de US$ 10 mil para os pagamento de pesquisadores clínicos-incluindo os honorários do profissional. Também não poderão ter mais do que US$ 30 mil em ações de empresas públicas e estão proibidos de fazer parte de empresas privadas-se os produtos e serviços dessa empresa tiverem relação com a pesquisa do médico. As novas recomendações foram feitas por um comitê ético da faculdade e aceitas pela reitor de Harvard, Jeffrey Flier. Em comunicado à imprensa, a universidade enfatizou que manterá o relacionamento com a indústria, mas dentro de certos limites. "A nova política vai enfatizar a transparência e eliminar a influência do marketing, mas não impedirá ou limitará indevidamente as muitas parcerias produtivas que a faculdade possa a ter com a indústria." EDUCAÇÃO MÉDICA Harvard também vai limitar o patrocínio de cursos de educação continuada pela indústria, a exemplo do que já fizeram outras universidades, como a de Michigan. O financiamento só será aceito se existirem vários patrocinadores e nenhuma entidade corporativa que forneça mais da metade do montante total. Para o presidente do CFM, Roberto D'Ávila, as escolas médicas brasileiras deveriam seguir o exemplo de Harvard. "Tem que acabar com essa persuasão agressiva da indústria, que começa desde o início do curso", diz ele. |
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É...Tudo por dinheiro!
Folha de São Paulo, 14/07/2010
Laboratório ocultou os riscos de medicamento para diabetes
GARDINER HARRIS
DO "NEW YORK TIMES"
Em 1999, a farmacêutica SmithKline Beecham lançou, em segredo, um estudo para descobrir se seu remédio Avandia, para diabetes, era mais seguro para o coração que o rival Actos, da Takeda.
Os resultados do estudo, completado no mesmo ano, foram desastrosos. O Avandia não era melhor que o Actos e, pior, provocava ainda mais riscos cardíacos.
Em vez de publicar os resultados, contudo, a empresa passou os 11 anos seguintes tentando acobertá-los, segundo revelam documentos aos quais o "New York Times" teve acesso.
A empresa não publicou os resultados nem os transmitiu aos reguladores de drogas, como manda a lei. "Atendendo ao pedido da direção da empresa, esses dados não devem ser vistos por ninguém fora da GSK [a sucessora corporativa da SmithKline]", escreveu um executivo da SmithKline, Martin I. Freed, em e-mail de 29 de março de 2001, falando dos resultados do estudo obtidos pelo jornal.
Os riscos de ataque cardíaco decorrentes do uso do Avandia vieram a público pela primeira vez em 2007, com um estudo de um cardiologista da Clínica Cleveland.
Ele usou dados que a empresa foi forçada a postar em seu site por ação judicial.
Nos meses seguintes, diretores da GlaxoSmithKline admitiram que sabiam dos riscos potenciais de ataque cardíaco ligados ao medicamento pelo menos desde 2005.
Mas os documentos mais recentes mostram que a companhia sabia disso desde que a droga foi posta no mercado, em 1999, e esforçou-se para impedir sua divulgação.
Em um documento, a empresa procurou calcular quanto perderia em vendas se os riscos do Avandia à segurança cardiovascular "se intensificassem". O custo seria de US$ 600 milhões entre 2002 e 2004.
Mary Anne Rhyne, uma porta-voz da GlaxoSmithKline, disse que a empresa não divulgou os resultados porque eles "não contribuíram com novas informações".
A empresa disse que o Avandia é seguro e que Freed não trabalha mais para a GlaxoSmithKline.
Uma comissão da FDA (agência reguladora de remédios nos EUA) está reunida desde ontem para decidir se o Avandia deve continuar a ser vendido.
Houve época em que ocultar os resultados de testes clínicos negativos era prática amplamente difundida na indústria farmacêutica.
Em 2007, o Congresso aprovou uma lei que torna obrigatória a divulgação dessas informações. Mas os posts divulgados com frequência não passam de referências de compreensão difícil, de maneira que a questão está longe de resolvida.
Tradução de CLARA ALLAIN
DO "NEW YORK TIMES"
Em 1999, a farmacêutica SmithKline Beecham lançou, em segredo, um estudo para descobrir se seu remédio Avandia, para diabetes, era mais seguro para o coração que o rival Actos, da Takeda.
Os resultados do estudo, completado no mesmo ano, foram desastrosos. O Avandia não era melhor que o Actos e, pior, provocava ainda mais riscos cardíacos.
Em vez de publicar os resultados, contudo, a empresa passou os 11 anos seguintes tentando acobertá-los, segundo revelam documentos aos quais o "New York Times" teve acesso.
A empresa não publicou os resultados nem os transmitiu aos reguladores de drogas, como manda a lei. "Atendendo ao pedido da direção da empresa, esses dados não devem ser vistos por ninguém fora da GSK [a sucessora corporativa da SmithKline]", escreveu um executivo da SmithKline, Martin I. Freed, em e-mail de 29 de março de 2001, falando dos resultados do estudo obtidos pelo jornal.
Os riscos de ataque cardíaco decorrentes do uso do Avandia vieram a público pela primeira vez em 2007, com um estudo de um cardiologista da Clínica Cleveland.
Ele usou dados que a empresa foi forçada a postar em seu site por ação judicial.
Nos meses seguintes, diretores da GlaxoSmithKline admitiram que sabiam dos riscos potenciais de ataque cardíaco ligados ao medicamento pelo menos desde 2005.
Mas os documentos mais recentes mostram que a companhia sabia disso desde que a droga foi posta no mercado, em 1999, e esforçou-se para impedir sua divulgação.
Em um documento, a empresa procurou calcular quanto perderia em vendas se os riscos do Avandia à segurança cardiovascular "se intensificassem". O custo seria de US$ 600 milhões entre 2002 e 2004.
Mary Anne Rhyne, uma porta-voz da GlaxoSmithKline, disse que a empresa não divulgou os resultados porque eles "não contribuíram com novas informações".
A empresa disse que o Avandia é seguro e que Freed não trabalha mais para a GlaxoSmithKline.
Uma comissão da FDA (agência reguladora de remédios nos EUA) está reunida desde ontem para decidir se o Avandia deve continuar a ser vendido.
Houve época em que ocultar os resultados de testes clínicos negativos era prática amplamente difundida na indústria farmacêutica.
Em 2007, o Congresso aprovou uma lei que torna obrigatória a divulgação dessas informações. Mas os posts divulgados com frequência não passam de referências de compreensão difícil, de maneira que a questão está longe de resolvida.
Tradução de CLARA ALLAIN
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Realmente, como ficou bem registrado no último documentário de Michael Moore, o capitalismo é, antes de tudo, uma obscenidade!
Este é mais um motivo da necessidade de existir um Estado forte, que tome as decisões sobre pesquisas médicas sempre em prol das pessoas e não da lucratividade.
Jornal do Brasil, 12/04/2010
Câncer e capitalismo
Glaucio Soares, Jornal do Brasil RIO - É irônico: há uma década, Gerry Potter era uma das esperanças dos cancerosos. Trabalhava em várias frentes, mas principalmente em duas. Desenvolveu, ou ajudou a desenvolver, dois medicamentos. Os direitos de um deles foram vendidos, vendidos outra vez e a companhia que o desenvolvia acaba de ser comprada por quase um bilhão de dólares. Quem padece de câncer da próstata e se informa já ouviu falar de abiraterona (de fato, acetato de abiraterona). Houve exagero a respeito dos seus efeitos e um festival midiático injustificável, mas é um dos remédios mais poderosos e eficientes contra esse câncer em muito tempo. Ainda está em testes. Em testes secos, diretos, sem mais nada, aumenta a esperança de vida (de seis a oito meses, segundo um estudo, um pouco menos, segundo outro); e é possível que, se tomada com um booster (outro medicamento, que não cura, mas aumenta o efeito do tratamento-base), a sobrevivência ganha possa chegar a 18 meses. Para quem está morrendo, não é pouco. Os dois ainda estão sendo aperfeiçoados. Abiraterona talvez funcione também contra cânceres da mama e do cólon.
A outra droga seria contra todos os cânceres. Nada menos...
Esse esforço não saiu grátis para Potter. Em verdade, ele leu nos jornais o oba-oba a respeito da droga que desenvolveu quando estava dentro um hospital para doentes mentais. Os problemas da profissão e da vida agravaram a bipolaridade de Potter.
Potter trabalha diferente da maioria dos pesquisadores das empresas de hoje. Não correlaciona tudo com tudo: muitos pesquisadores usam, inicialmente, centenas e até milhares de pratinhos Petri para ver o que funciona. Potter faz pesquisa inteligente: estuda a célula cancerosa, entra nela, a vê desde dentro, analisa seu funcionamento, estuda seus pontos fracos e dirige seus esforços para esses pontos. A pesquisa inteligente é direcionada.
O que piorou a condição mental de Potter? Duas coisas: as incertezas provocadas por instituições cujas atividades que não se direcionam para curar gente e sim para fazer dinheiro e as cartas dos pacientes. Sim, as cartas desesperadas de doentes e familiares de todas as partes do mundo que ouviram falar nas suas pesquisas e escreveram, seja pedindo para entrar num dos testes clínicos, seja desejando e pedindo que ele encontrasse a cura. Ou eram intercessórias e se referiam a terceiras pessoas que estavam morrendo, usualmente pais e maridos, ou eram diretamente escritas por eles. Mas as decisões da indústria farmacêutica são empresariais, não são curativas nem humanitárias. Promete dar dinheiro, a empresa faz; não parece que vai dar dinheiro, a empresa fecha o projeto. Não pense o leitor que sou um daqueles comunas que vivem do ódio ao capitalismo – nada disso! Mas a rationale baseada no lucro tem mandado muitos remédios promissores latrina abaixo porque não havia visão de que dariam lucro num prazo razoável. Estamos nas mãos de uma corja de bean-counters, inclusive MBA's e contadores. Eles tomam as decisões cruciais, não os pesquisadores, nem os médicos, e muito menos os pacientes.
No caso da abiraterona, seguimos a via dolorosa de sempre. Os testes e laboratórios são caros. Era preciso capital de risco. Apareceu. A empresa que investiu o capital de risco foi vendida. Depois de várias compras e vendas, foi parar na Johnson por um quase bilhão de dólares, depois de passar pela Cougar. Há quem estime que poderá trazer trinta a quarenta vezes isso depois de ser produzida em massa, para um mercado gigantesco que cresce ano a ano. Bem mais de mil pessoas são diagnosticadas e registradas diariamente com câncer da próstata nos países onde há estatísticas confiáveis. E onde não há registros válidos? A esperança dos cancerosos é forçada a acompanhar os cálculos financeiros das empresas. A abiraterona talvez seja aprimorada, aprovada e colocada no mercado. O prestigioso The Times afirma que o medicamento poderá salvar mais de dez mil vidas todos os anos. No momento, estão numa pesquisa com mil e duzentos pacientes, com grupo controle – Fase III. Se os resultados continuarem positivos poderão licenciá-la em uns países antes de outros mas, mesmo assim, não será rápido – um, dois, três anos. Há pressa: afinal, somos milhões de pacientes e estamos morrendo.
Tristemente, Gerry Potter leu tudo isso de dentro de um hospital mental em Leicester. Estava lá porque sua doença mental é a que tem a mais alta taxa de suicídios e a tendência suicida pode ser muito agravada pelo estresse. E poucas coisas são tão estressantes como cartas de moribundos e de familiares de moribundos ou ver seu laboratório comprado e/ou fechado porque um bean counter acha que não vai dar lucro no futuro próximo.
Mas Gerry Potter não parou aí, na abiraterona. Ele tinha reaparecido em 2001, quando seu laboratório na pequena De Montfort University anunciou que pesquisava um medicamento que buscava as células cancerosas e as destruía (seek and destroy). Células de cânceres de vários tipos, não apenas de próstata. Era uma droga “inteligente”, chamada de DMU 212. Mas os experimentos com células em pratinhos Petri são fáceis e relativamente baratos. Não requerem genialidade. São chamados de Fase I (há quem os chame de Fase I-A). Há, depois, muitos outros passos: experimentos com seres vivos, usualmente camundongos; se esses derem certo, a seguir vêm os experimentos Fase II, com alguns pacientes muito avançados, verificando efeitos, testando dosagens; se derem certo, um amplo Clinical Trial (Fase III) – longo, demorado e custoso - é o passo seguinte. Não acaba aí: revisões por comissões com outros cientistas especializados, pedidos às agencias reguladoras e negociações etc., etc. O processo inteiro pode demorar muitos anos, até décadas. E haja dinheiro para financiar isso.
DMU 212 é o amor de Potter, paixão que ele admite. Abiraterona foi a primeira droga que ele fabricou com sua equipe. E não veio devagar, juntando resultados de outros pesquisadores, adicionando uma gota, uma pequena melhoria, como é o padrão de muitas pesquisas. Veio de repente: estudou, analisou, pesquisou e, quando testou, deu certo. É o modelo clássico dos cientistas universitários, que trabalham fora das indústrias farmacêuticas. Há poucos assim hoje em dia, mesmo dentro das universidades. A idéia por trás da abiraterona era matar as células cancerosas de fome. Depois do tratamento hormonal convencional, algumas células, diabolicamente, começavam a fabricar seu próprio alimento. Para isso usavam uma enzima chamada CYP17. E a tarefa era dificultar ou impedir que a enzima funcionasse. Era um processo interno das células e, para bolá-lo, foi necessário analisá-las desde dentro.
Quando iniciaram os testes, 80% das células morriam no primeiro dia. Um resultado promissor. Mas até que esteja provado e comprovado, aprovado pelas agências, fabricado em quantidades e disponível nas farmácias, serão muitos anos a partir do início das pesquisas. Uma década não é uma estimativa pessimista. Durante essa década, muita gente que seria salva morrerá. É o preço pago pela certeza, para evitar erros graves.
Os pacientes de câncer não são os únicos que pagam um alto preço pelo difícil e tortuoso processo que vai das pesquisas iniciais até a cura ou clara melhoria. Os pesquisadores também sofrem e pagam seu próprio preço. Potter o está pagando. Tudo em nome do lucro.
Glaucio Soares é cientista político.
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