quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A juíza que condenou Abdelmassih

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A juíza que condenou Abdelmassih

    Publicado em 24/11/2010
Juíza Kenarik Boujikian Felippe
  
Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 9 de janeiro de 2010.

Justiça não é revanchismo
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE

É GROTESCO falar em "revanchismo", ato pessoal de desforra por ofensa recebida, em referência à responsabilização dos atos inumanos, catalogados como crimes de lesa-humanidade, praticados por agentes do Estado ou pessoas que atuaram com sua autorização, apoio ou consentimento no período da ditadura instaurada em 1964. Trata-se de tema de Estado, e sua correspondência é justiça.
Acolhido o pleito social e político de necessidade de construção da democracia, sobreveio a Lei da Anistia, que reconheceu a injustiça da situação de fato e da aplicação das leis penais vigentes para os que se opuseram ao regime militar e é exclusiva para aqueles que cometeram crimes políticos e conexos. Mas ainda não resgatamos a verdade e a memória nem fizemos justiça, o que se choca com o ideário de consolidação do Estado democrático de Direito.
O Programa Nacional de Direitos Humanos estabelece a modernização da legislação para a promoção do direito à memória e à verdade, como diretriz. Revisão imprescindível, pois há muito entulho autoritário, atinente à lei de segurança nacional, aos arquivos secretos etc. No tocante à impunidade dos torturadores, desnecessária a alteração da lei de anistia.
A OAB ingressou em 2008 com ação para que o STF interprete a lei e declare que ela não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, na medida em que aqueles delitos não são considerados políticos, tampouco conexos. O processo está com o procurador-geral da República desde fevereiro de 2009 e, devolvido, o ministro relator, Eros Grau, poderá colocá-lo em julgamento.
A sociedade clama ao Supremo a resposta necessária para a construção da paz. Não aceita a impunidade e não almeja vindita. Encaminha apelo, lançado pelo Comitê contra a Anistia aos Torturadores, assinado, entre outros, por Antonio Candido, Chico Buarque de Holanda, Aloysio Nunes Ferreira, Chico Whitaker, Alberto Silva Franco, Marilena Chaui, Leandro Konder, Hélio Bicudo, Boaventura de Sousa Santos e mais 11 mil pessoas (www.ajd.org.br).
Quer justiça, dentro dos parâmetros da dignidade humana, estabelecidos na Constituição, em convenções e em tratados internacionais.
Os regimes ditatoriais da América Latina adotaram um sistema penal paralelo e subterrâneo. Impuseram penas sem processo, cometeram homicídios, desaparecimentos forçados, torturas, suplícios, sequestros, crimes sexuais, tudo com requintes de crueldade.
Para enfrentar esse legado de violência, vários países já compreenderam o sentido do direito penal internacional. Revelam a verdade, resgatam a memória e examinam as violações ocorridas no período ditatorial à luz da Justiça, e o fazem na perspectiva de que os crimes contra a humanidade protegem bens jurídicos que extrapolam os limites do direito penal nacional e atinge a comunidade internacional. Atinge a humanidade.
É necessário que o passado de violação e impunidade não continue a ser o parâmetro do presente para que possamos consolidar a democracia e, no futuro, viver em um Brasil que não abrace a cultura autoritária de violência no seu dia a dia.
Hitler dizia que ninguém se lembrava mais do genocídio de 1,5 milhão de armênios. Assim tivemos o genocídio dos judeus
. Crimes que não atingiram apenas aquelas pessoas e povos, mas toda a humanidade.
Sobre a dor e o sangue deles é que foram forjadas as normas internacionais que não admitem a impunidade dos crimes contra a humanidade, que protegem direitos inderrogáveis acolhidos pelo direito internacional, tratando-se de "ius cogens", normas que vinculam independentemente da vontade dos sujeitos da relação jurídica e que todos os países signatários, como o Brasil, têm a obrigação internacional de investigar e punir - e para os quais não há anistia ou prescrição.
Afirmar que houve anistia para os torturadores é ética e juridicamente insustentável. Fere o patamar civilizatório em que a humanidade se encontra. Justiça! Já não é sem tempo.


KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE , juíza de direito em São Paulo, é co-fundadora e secretária da Associação Juízes para a Democracia.

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UOL, 24/11/2010 - 07h00

Supremo deve julgar habeas corpus de Abdelmassih; juíza diz que médico se acha "inatingível"

Rosanne D'Agostino
Do UOL Notícias
Em São Paulo
  • O médico Roger Abdelmassih responde em liberdade à acusação de 56 estupros em São Paulo O médico Roger Abdelmassih responde em liberdade à acusação de 56 estupros em São Paulo
O STF (Supremo Tribunal Federal) pode julgar nos próximos dias o habeas corpus que deve decidir sobre a liberdade do médico Roger Abdelmassih, condenado nesta terça (23) a uma pena de 278 anos de reclusão em regime inicial fechado. Ele responde ao processo solto, protegido por uma liminar do então presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes. A sentença foi proferida ontem pela juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 16ª Vara Criminal de São Paulo.
Abdelmassih foi acusado por  56 estupros contra 39 pacientes, cometidos, segundo denúncia do Ministério Público, entre 1995 e 2008, nas dependências de sua clínica de reprodução humana, na capital paulista. Mas a sentença o absolve por alguns desses crimes, em razão das alterações do Código Penal e na Lei de Crimes Hediondos com relação ao atentado violento ao pudor.
“Somente seria cabível novo decreto de prisão, se fatos novos surgissem, observando que sentença não é fato novo, mas consequências dos fatos”, escreveu a juíza, que classificou o processo de “singular”, pela “natureza do delito e circunstâncias, número elevadíssimo de vítimas (39) e testemunhas, cujo total se aproxima de 250 pessoas; 37 volumes, com número extraordinário de 10 mil páginas”. Abdelmassih foi ,denunciado pelo MP em junho.
O advogado do médico, José Luis Oliveira Lima, vai recorrer da decisão. A defesa já apresentou três pedidos de adiamento do julgamento do habeas corpus pelo Supremo, além de requerer ser comunicada com antecedência sobre a data. O habeas corpus já está nas mãos da relatora, ministra Ellen Gracie, que deve levá-lo a julgamento na 2ª Turma, formada por cinco ministros. A Procuradoria Geral da República apresentou parecer contra a liberdade do réu.
Se o Supremo revogar o habeas corpus, Abdelmassih deve começar a cumprir a pena preso. “Está comprovado que o réu está a delinquir de longa data, de forma reiterada, enfrentando as vítimas, com menoscabo à Justiça, assumindo posição de superioridade, de ser inatingível. A ordem pública encontra-se francamente abalada, como exposto nas decisões referidas, razão pela qual a decreto de prisão cautelar fica mantido”, afirmou a juíza na decisão.
O ato em si era absolutamente inesperado, pois jamais imaginariam que seria possível o médico, em quem depositavam confiança, pudessem praticar aqueles atos, beijá-las na boca, “com língua”, ou que ele pudesse passar a mão em seus corpos, e ainda, em alguns casos, praticassem ato libidinoso invasivo (conjunção carnal ou anal)
Kenarik Boujikian Felippe, juíza da
16ª Vara Criminal de São Paulo
Segundo a denúncia, as pacientes do médico que passaram por tratamento de infertilidade em sua clínica foram beijadas à força e tiveram partes íntimas do corpo tocadas. Os supostos ataques teriam ocorrido enquanto as pacientes estavam sedadas ou voltando da sedação.

Detalhes dos crimes

Conforme a juíza, a sentença foi divulgada à imprensa porque resguarda o anonimato das vítimas, mas descreve cada situação baseada nos testemunhos do processo. “Ele [Abdelmassih] usou de violência contra as vítimas para cercear a liberdade, a faculdade de agir de todas elas. Empregou de violência para praticar os atos sexuais e para sujeitá-las a que com elas se praticassem”, diz a magistrada.
Ela rebateu argumentos da defesa de que não houve lesões corporais comprovadas e de que os atos não podiam ser tratados como atentado violento ao pudor, como as condutas de beijar ou passar a mão sobre o corpo das vítimas, pois a pena prevista em lei fere o princípio da proporcionalidade. “O que importa é que atos sexuais são inconfundíveis e todas as pessoas adultas sabem o que representam e sabem diferenciar”, argumentou a juíza.
Em trecho sob o intertítulo “valor da palavra da vítima”, ela afirma que “várias foram as razões apontadas pelas vítimas para demorarem a procurar a Justiça e muitas são coincidentes, semelhantes e comuns”. Entre os motivos, elas relataram se tratar de “pessoa de renome”, terem vergonha, acharam que ninguém iria acreditar, não queriam expor familiares, entre outros.
Nas demais hipóteses o réu estava com as vítimas em sua sala de consultório, sozinhas e na maior das vezes, prensou-as contra a parede ou estante e imobilizou-as, de modo que não tinham como resistir ao ato. Algumas vezes, as mulheres não estavam sedadas, mas estavam em posição ginecológica e também imobilizadas, face a esta posição e de forma inesperada o réu as beijava ou passava a mão em seus corpos. Nestas circunstâncias, caracterizada a impossibilidade de reação a contento, porque tomadas de surpresa e quando se via, o ato estava realizado, sendo que o réu as segurava-lhes o corpo, fortemente, de modo que não pudessem escapar daquela situação
Kenarik Boujikian Felippe, juíza da
16ª Vara Criminal de São Paulo
“Todo o quadro do tratamento e as razões que cada uma delas apontou, são o suficiente e mais do que natural para compreender o gigantesco drama humano pelas quais passaram e absolutamente aceitável que somente sentissem encorajadas quando viram que não eram caso isolado, quando souberam que o réu fez o mesmo ou parecido com outras mulheres”, diz Kenarik.
Já sobre a alegação de que o propofol (anestesia usada nas pacientes) pode causar a alucinação de conteúdo sexual, a juíza afirmou que, “na metade dos casos as vítimas não estavam sob o efeito do medicamento, já que o crime não aconteceu após a sedação, quando elas se recobravam da mesma”. “Para a outra metade dos casos, as vítimas tinham sido sedadas e retornavam do efeito anestésico quando foram atacadas pelo réu e já tinham plena ciência da realidade e certeza dos atos.

Pena

Assim, para cada um dos delitos consumados, ela fixou a pena em seis anos de reclusão. “Não há circunstâncias atenuantes e agravantes a serem consideradas e nem causas de aumento.” Pela lei brasileira, entretanto, o tempo máximo de detenção é de 30 anos.
A juíza ainda classificou de “desastrosa” a Lei de Crimes Hediondos com relação às penas para casos de estupro. “Nossa legislação penal esta a exigir que se repense as penas nela previstas, pois as disparidades são flagrantes. É razoável que o crime de tortura tenha a mesma pena base que o crime de furto qualificado (dois anos)?
“Para cada um dos delitos que ocorreram na forma tentada, que totalizam cinco, reduzo a pena base em dois terços (...), especialmente porque a tentativa, conforme se depreende dos relatos das vítimas, não tiveram larga duração temporal e fixo a pena em dois anos”, concluiu.

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